“Ficam em silêncio. “Cabrão preto”, pensa o português. E logo se envergonha do pensamento. Raio de lapso racista, como é possível ter pensado uma coisa destas? Talvez seja melhor retirar-se, deixar que o ar fresco lhe esfrie os nervos” (Venenos de Deus, remédios do Diabo- Mia Couto, 2008, p. 93-94).
Numa das suas passagens por Portugal (1945), a filósofa francesa Simone de Beauvoir lançou sobre a sociedade portuguesa um olhar lúcido influído por um pensamento progressista e sobretudo consciente da cruel realidade que as belas paisagens e os traços edénicos do pequeno país à beira-mar plantado escondiam: “um país onde o culto do passado é erigido como sistema mais do que qualquer outro: é o Portugal de hoje; mas é à custa de um desprezo deliberado pelo homem".
Numa das suas anotações reconhece que "o povo era deliberadamente mantido na porcaria e na ignorância” por um regime excessivamente paternalista. As distorções sociais no Portugal salazarista são mote para uma crítica à ‘tirania capitalista’ apontando que “a violência de tal reflexo ilustra bem o ódio que os ricos ali têm pelas pessoas pobres. Eles os temem, porque sabem muito bem que sua fortuna é fruto de uma exploração vergonhosa”.
A memória surge como uma das preocupações culturais e políticas fundamentais das sociedades ocidentais: a busca incessante pela monumentalização e registo do Passado, a dialética entre a lembrança e o esquecimento. A memória coletiva cria uma necessária ilusão de continuidade e estabilidade, através de uma atualização constante da realidade social, mas que perpetua mitos desse mesmo passado.
O imaginário coletivo português parece insistir numa visão romântica do colonialismo, oscilando entre um certo sentimento saudosista, ainda hoje muito vivo, que parece esquecer a posição subalterna do colonizado, e a redescoberta do legado colonial. Esse passado tem estado sempre presente.
O professor Boaventura de Sousa Santos salienta que o colonialismo surge como um “modo de dominação assente na degradação ontológica das populações dominadas por razões etno-raciais (…) Às populações e aos corpos racializados não é reconhecida a mesma dignidade humana que é atribuída aos que os dominam”.
Somos desde cedo doutrinados a acreditar na “especificidade colonial portuguesa” como forma de mascarar o racismo e a violência que sustentaram este sistema de exploração.
Uma tarefa de manipulação da identidade foi levada a cabo pelo fascismo salazarista, na ânsia de reabilitar a imagem do velho império português das glórias camonianas que buscou um significado de Portugal no mundo enquanto colonizador.
Com o Ultimatum inglês e a humilhação pública dessa derrota, os portugueses parecem despertar para a importância dos seus territórios em África, na Índia e na Ásia, considerando-os como um ‘direito histórico’, baseado no seu ‘direito de propriedade’. Toda a arquitetura colonial reside no mito da superioridade branca. África era a terra do degredo, das populações ‘incivilizadas’ que precisavam de alguém que lhes “desse o Ser”.
Na perspetiva de preservar a integridade e manutenção do “império” no pós-segunda guerra mundial, o Estado Novo, confrontado com a pressão internacional favorável à autodeterminação dos territórios coloniais - princípio consagrado na Carta da Organização das Nações Unidas (1945) e concebido como direito fundamental na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) - desenvolveu uma teorização sociológica legitimadora da manutenção do status quo nas colónias ultramarinas portuguesas, baseada numa “quase-teoria” desenvolvida pelo brasileiro Gilberto Freyre, ainda que numa versão nacionalista.
Nas décadas de 1930-1940, a política colonial do Estado Novo rejeitou totalmente a tese do luso-tropicalismo, aliando-se na velha conceção de “darwinismo social”. Armindo Monteiro, ministro das Colónias entre 1931 - 1935, “não consegue conceber um relacionamento harmonioso e fraterno, numa base igualitária, entre brancos e negros. Atribui a Portugal o ‘dever histórico’ de civilizar as ‘raças inferiores’ que se encontram sob o seu domínio. Trata-se de proteger os ‘indígenas’, de os converter ao cristianismo, de os educar pelo (e para) o trabalho, de os elevar moral, intelectual e materialmente”.
Na década de 1950, o aparelho de propaganda luso-tropicalista entra em ação: desenvolve-se uma política de assimilação, de integração dos “colonizados” nos valores da civilização europeia. Num jogo de semântica privilegia-se a utilização da designação “províncias ultramarinas” ao invés de “colónias” ou “Império Colonial Português”. Portugal surge como «nação pluricontinental, composta por províncias europeias e ultramarinas, integradas harmoniosamente no todo nacional uno e indivisível». Inicia-se, então, a construção de uma autorrepresentação identitária dos portugueses, completamente mergulhada (e isolada) numa lógica imperialista. A sociedade colonial estava estratificada em três grupos populacionais: os indígenas, os assimilados e os brancos.
Em teoria, vigorava o princípio da igualdade de direitos de todos os habitantes das províncias além-mar (que são obviamente exploradas económica e financeiramente, residindo aqui a tónica do colonialismo, enquanto forma de exploração, dominação e poder constituinte). No fundo, a “utilização dos territórios coloniais” justifica-se para que “ocorra uma ação civilizadora sobre as pessoas”. Há um ‘dever moral de colonizar’. Os portugueses teriam um “colonialismo diferente”, tolerante e até bondoso que promovia a mestiçagem.
O historiador Fernando Rosas salienta que "essa ideia do colonialismo bondoso e amigo dos africanos ficou e manteve-se como uma espécie de doutrina oficiosa do Estado português, em democracia (…) O colonialismo português foi nas suas relações com o africano violento, racista, recorreu ao trabalho forçado, às culturas obrigatórias, ao estatuto dos indígenas, tal como o colonialismo francês, inglês ou belga. Não há grandes diferenças. Pode haver diferenças do ponto de vista administrativo, mas do ponto de vista doutrinário as diferenças não são nenhumas".
Ao longo de várias décadas, o Direito esteve ao serviço da ideologia do regime, refletindo a interferência da metrópole na dominação da relação colonial.
Os indígenas das províncias da Guiné, Angola e Moçambique gozavam de um estatuto especial, que se justificava devido ao “facto de os nativos das províncias portuguesas da África continental se encontrarem ainda em determinado grau inferior de civilização” o que “implica a necessidade de se processar um ordenamento jurídico adequado à possibilidade de efetivação de poderes e deveres por parte desses nativos”.
Partindo da elaboração do Professor Marcello Caetano: «temos assim que os indígenas são súbditos portugueses, submetidos à proteção do Estado português, mas sem fazerem parte da Nação, quer esta seja considerada como comunidade cultural (visto faltarem-lhe os requisitos de assimilação de cultura), quer como associação política dos cidadãos (por não terem ainda conquistado a cidadania).» Os indígenas eram então considerados meros súbditos, podendo ser recrutados pelas autoridades para o trabalho forçado. Verdadeiramente, apenas em 1961, pelas mãos de Adriano Moreira, o Estatuto do Indigenato foi revogado. Até esta data, os negros não podiam obter a cidadania portuguesa de uma forma direta.
De certa maneira esta velha conceção do país dos “brandos costumes” já tinha sido anteriormente legitimada através de diversos diplomas legais, de entre os quais se destaca o Regulamento do Trabalho Indígena, na versão de 1914, cujo preâmbulo desenvolvido por juristas constava a seguinte ideia:
«Os portugueses são, de todos os colonizadores, os que melhor e mais facilmente trazem ao seu domínio os povos africanos, pois que não temos o preconceito exagerado da separação de raças e somos levados, pelo nosso modo de ser, a tratar o indígena com tolerância e bondade, respeitando-lhes os usos e instituições, tanto quanto possível. Se em África sofremos a influência do preto, auxiliado pela do clima que inibe o europeu de se entregar nos trabalhos mais rudes, e que nos levou, a pouco e pouco, a considerá-lo como devendo ser-nos sempre subordinado e inferior, a verdade é que nunca chegamos a excessos que noutros países se praticaram e se praticam talvez ainda».
O próprio início da guerra colonial, em desrespeito das pretensões auto-deterministas dos povos africanos é inicialmente concebida enquanto “ações de pacificação”. O próprio Estado Novo limitou nas colónias a criação de Universidades/Escolas Superiores, de modo a que estas não se tornassem centros propulsores de ideias independentistas ou nacionalistas. A emigração branca para África era controlada pelo Estado. O trauma dos que participaram na guerra é ainda recente. A maior parte da população foi mobilizada devido ao serviço militar obrigatório e não por uma qualquer motivação ideológica ou patriótica assinalável. Mas como dar significado a uma guerra aparentemente inútil? Há uma certa dificuldade orgulhosa em lidar com o passado colonial.
A revolução de abril traz uma descolonização inevitável, mas não consensual, que provocou o regresso de milhares de portugueses das ex-colónias (os ‘retornados’) - que “afinal não viviam em África há 500 anos”. A necessidade de acolhimento de meio milhão de portugueses contrasta com a rejeição da atribuição da cidadania portuguesa a grande parte da população negra que fugia ao conflito armado e guerras civis dos seus países.
As memórias da ditadura e do colonialismo estão ainda muito presentes e alimentam polémicas, algumas delas bastante recentes: Marcelino da Mata - herói ou vilão? O historiador Francisco Bethencourt lembra que “no 25 de abril houve uma espécie de pacto implícito de não se fazer averiguações sobre a guerra colonial. A democracia (...) agora está a sofrer a paga por essa generosidade”.
Quem ousa criticar e desconstruir a história colonial ao não decidir louvar determinados “heróis” de um determinado espectro político (órfão e, por vezes, nostálgico do passado) é recebido com uma certa hostilidade (e se for negro até surgem petições a ‘demandarem’ a sua imediata deportação, ora não fôssemos o país dos brandos costumes). Independentemente da opinião de cada um, Marcelino da Mata não é uma figura consensual e terá o seu lugar na história, sem revisionismos. Estes discursos inflamados e identitários dizem mais sobre a história do presente do que sobre o passado.
O retomar do interesse sobre o passado colonial tem acontecido através de uma redescoberta (e revisionismo histórico) de um sentimento saudosista instrumentalizado por determinadas forças políticas que pretendem atribuir um significado romantizado do indivíduo português em África, que expugna por completo a perspetiva do indivíduo colonizado. Refletir criticamente sobre o passado é a melhor forma de conhecer os meandros de um país.
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