1. Declaração de motivos: a minha família é espanhola. A minha avó nasceu em 1932 e passou parte da infância dela em Espanha, com a sua família. Em 1936 estalou um conflito fratricida (e muito complicado) em Espanha, que já andava a ferver há cerca de uma dúzia de décadas. Nesse ano foi viver para Viseu, com a tia, saída de Madrid – que se tornou num dos cercos mais sangrentos da guerra, tendo durado até 1939. Sou português, mas assumo a minha herança espanhola e, através dela, aprendi a história dos espanhóis, inclusive a das últimas décadas. Entre essa história, aprendi sobre a Euskadi Ta Askatasuna (conhecida pelo acrónimo ETA), uma organização terrorista que preconizava o nacionalismo basco e defendia um ideário revolucionário marxista-leninista através da força das armas. As estatísticas são claras e objetivas: desde a sua fundação, atormentaram Espanha, ceifando mais de 800 vidas. Só no ano de 1980, assassinaram 92 pessoas (ou seja, uma por cada quatro dias). Foram ameaçadas mais de 42 mil pessoas e feridas cerca de 16 mil. No entanto, o legado dos nacionalismos independentistas não é o terrorismo: para quem o defende, trata-se de democracia, que não se coaduna com carros-bomba, com ameaças aos democratas parlamentares, com assassinato de políticos (cfr., por ex., Miguel Ángel Blanco) ou de civis e com a sensação de mal-estar geral que sentimos todos há pouco tempo com o Estado Islâmico.
2. Contudo, este texto não é sobre a minha opinião nem sobre a minha vida: é sobre liberdade de expressão. Enquanto estudantes de Direito, temos de ser especialmente exigentes relativamente à forma como falamos, que tem de ser diferente da forma como geralmente se comunica na internet. Por um lado, no 2º Ano, nas aulas de Direitos Fundamentais, a Professora Doutora Luísa Neto remete-nos para as palavras de Alexis de Tocqueville, que fala da democracia como “uma sensação de barulho”, porque a democracia, que exige consensos, implica espaço de discussão, onde diferentes correntes de opinião se esgrimem, através da livre expressão de cada um. Todavia, também sabemos que as restrições aos direitos fundamentais existem e estamos rodeados delas – em particular, se o nosso nome for “A” ou “B”. Ainda assim, estes aspetos técnicos constitucionais não nos dizem o mais importante: o que é que devemos considerar justo?
3. Recentemente, foi preso o rapper catalão Pablo Hasél e Espanha, que anda a ombrear com os Balcãs enquanto barril de pólvora da Europa, iniciou um debate. No título falo de llibertat d’expressió, porque é a tradução catalã de liberdade de expressão: com efeito, o rapper é catalão e é fácil a discussão resvalar para a questão da independência da Catalunha. Apesar disso, não pretendo que isso seja o foco do texto, assim como tampouco tem sido o tema dos debates.
4. Os factos são os seguintes: neste momento, o rapper é uma espécie de mártir da liberdade de expressão e a sua condenação pelos tribunais espanhóis deu azo a vários motins e, em Portugal, há uma petição, em que vários (inclusive grandes) artistas nacionais exigem a sua libertação. A pena foi de 9 meses, apesar de lhe ter sido, poucos dias depois, aplicada outra pena por um Tribunal de Lérida, esta de 2 anos e meio, por ameaçar uma testemunha em pleno julgamento. Alguns insistem que foi preso por criticar a monarquia espanhola e a família real, mas se existissem prisões por críticas à família real espanhola (maxime, ao Rei Emérito), estaríamos quase todos presos. Na verdade, o rapper, que já tinha sido preso anteriormente, foi agora acusado de instigar terrorismo, em tweets e em músicas que fazem apelos à ETA (sim, aquela ETA), à GRAPO (braço armado do clandestino Partido Comunista Espanhol-reconstituído, que não se confunde com o centenário Partido Comunista de Espanha), ao Grupo Baader-Meinhof e à Al-Qaeda.
5. A título de exemplo, algumas letras diziam:
· "¡Merece que explote el coche de Patxi López!" ("O carro de Patxi López [político socialista basco] merece explodir!);
· "No me da pena tu tiro en la nuca, pepero. Me da pena el que muere en una patera. No me da pena tu tiro en la nuca, socialisto" (Não tenho pena do teu tiro na nuca, pepero [referente ao partido espanhol PP]. Tenho pena de quem morre num barco. Não tenho pena do teu tiro na nuca, socialisto”);
· "Que alguien clave un piolet en la cabeza de José Bono" (“Que alguém grave um machado de gelo na cabeça do José Bono [político socialista]”);
· "Pena de muerte ya a las Infantas patéticas, por gastarse nuestra pasta en operaciones de estética" (“Pena de morte às Infantas patéticas, por gastarem o nosso dinheiro em operações estéticas”).
Nas redes sociais, disse frases como: “Prefiero grapos que guapos. Mi hermano entra en la sede del PP gritando ¡Gora ETA! A mí no me venden el cuento de quiénes son los malos, sólo pienso en matarlos" (“Prefiro grapos [referente ao grupo terrorista GRAPO] que guapos. O meu irmão entrou na sede do PP a gritar Avante ETA! A mim não me vendem o conto de quem são os maus, só penso em matá-los”).
6. Contudo, não está em causa Pablo Hasél, o apologista de terrorismo; estará, contudo, em causa Pablo Hasél, o artista e o cidadão, livre de se expressar. Postos em questão os factos que incriminam o rapper, já nos podemos questionar corretamente: será que a liberdade de expressão deve ter limites?
7. Não conheço limites positivos à liberdade de expressão, ou seja, leis restritivas da liberdade fundamental de expressão que imponham conteúdo ao nosso discurso – o que não quer dizer que não sejam devidos limites positivos impostos pela ordem social. Por exemplo, o facto de não ser crime não usar os pronomes adequados para homens e mulheres transgénero não quer dizer que não o devamos fazer. Devemos e, efetivamente, quando não o fazemos, neste caso, há danos. Contudo, neste texto, estão em causa outro tipo de limites.
8. Há limites negativos à liberdade de expressão, ou seja, leis restritivas que nos proíbam de comunicar determinado conteúdo? Há e aqui ficam alguns exemplos do nosso ordenamento jurídico
É crime a ameaça, p. e p. no Código Penal (CP), no artigo 153º, até 1 ano. Também são crimes, previstos igualmente no CP, a difamação (artigo 180º), a injúria (artigo 181º) e a ofensa à memória de pessoa falecida (artigo 185º). Em especial, é crime a discriminação e incitamento ao ódio e à violência (artigo 240º), onde se criminaliza, inclusive, o incitamento a atos de terrorismo.
Merece menção honrosa o tipo legal de crime de ofensa à honra do Presidente da República (artigo 328º): uma atávico crime de lesa-majestade, cuja aplicação nos nossos tribunais civis tem sido especialmente parcimoniosa.
9. Internacionalmente, esta questão também dá que falar: o Tribunal Penal Internacional, no contexto específico e espinhoso do Ruanda, condenou um editor de um jornal e o chefe executivo de uma rádio por incitamento ao genocídio. Evidentemente, trata-se do contexto específico destes país e da comunicação social - sendo que a comunicação social, entre nós, tem um âmbito de liberdade marcadamente mais reduzido do que o da liberdade de expressão em geral, pela plataforma que constitui e pela sua relevância para a saúde de uma democracia o que inclusivamente entre nós tem um âmbito de liberdade marcadamente mais reduzido pela plataforma que constitui e pela sua relevância para a saúde de uma democracia. Ainda assim, não deixa de ser curioso. O Media Case merece uma leitura atenta, para os mais curiosos.
10. O outro prato da balança: a nossa Constituição, por ter aprendido com o regime que a antecedeu, proibiu, no artigo 37º/2 a criação de delitos de opinião. Trata-se da proibição de censura que, no caso concreto, também pode estar em causa.
11. Não tenho dúvidas de que Pablo Hasél cometeu – mesmo fora da aceção legal – um crime: ameaçou publicamente e incitou ao ódio. Tenho dúvidas em relação às penas: perante qualquer restrição, devemos sempre ser céticos, porque está em causa o silenciamento artificial de outro Homem, digno, como nós, do exercício da sua própria liberdade. Em particular, tratando-se da liberdade fundamental de expressão, devemos sempre ser particularmente parcimoniosos com qualquer restrição: na verdade, uma democracia não se faz através da imposição coativa da razão estadual, mas do diálogo e do consenso. Com este texto, limito-me a lançar esta complexa questão a cada um: no caso concreto e em abstrato, os limites da liberdade de expressão devem estar nos nossos códigos ou na consciência de cada um?
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