A resposta só pode ser negativa. Demolir um monumento com aquelas dimensões seria, no mínimo, maçador, quer a nível logístico, quer a nível financeiro. Além disso, que paisagem esperaria os turistas, carregados de caixinhas de Pastéis de Belém? Um silêncio desconfortável junto ao Tejo? Não, não pode ser.
Que não haja margem para dúvidas: acho mesmo que a sua demolição seria inútil. Não que o Padrão (ou mamarracho, como lhe chamou Ascenso Simões, deputado do PS) tenha especial valor ou seja particularmente agradável à vista, atenção, mas parece-me que de nada serviria uma demolição desacompanhada do necessário debate público sobre o que lhe está subjacente – e, enfim, sobre aquilo que na verdade tem gerado tanta discórdia: os Descobrimentos.
Sendo esta uma discussão sobre História, importará, antes de mais, referir que, embora – e infelizmente – faça já parte da nossa cultura, o Padrão dos Descobrimentos não é história (a menos que queiramos seguir caminhos desonestos – mas não tecnicamente errados – e considerar tudo história, o que levará a que até este texto possa ser visto como uma pedaço da história); quando muito, será uma representação de um período histórico. Assim, eliminá-lo jamais equivaleria a apagar a história, que, aliás, está abundantemente documentada.
Acrescente-se que o Padrão dos Descobrimentos não só não é história, como também não desempenha a função que muitos lhe atribuem, e que atribuímos à história em geral, que é a de lembrar-nos de erros passados para que não os repitamos no futuro, até porque, quando olhamos para ele, orgulho é o que sentimos, ou devemos sentir, ou somos instruídos para sentir.
Seguindo esta linha de raciocínio, e partindo do pressuposto de que se manterá de pé o Padrão, contextualizá-lo e demarcarmo-nos daquilo que ele representa não traria mal nenhum ao mundo. Os monumentos valem, se entretanto nada se alterar, com o significado que aquele que os ergueu lhes quis dar – e este foi erguido pelo Estado Novo, que quis celebrar o que não é celebrável. Há que entender a origem deste tipo de construção: os livros, os museus e os documentários podem ser repositórios de história, mas os monumentos vão mais longe, porque expressam o modo como queremos ser vistos enquanto comunidade; erguemos estátuas que representam valores nos quais nos revemos. Ora, portugueses de bem não se reveem no colonialismo, pois não?
O passado português é sombrio. Contudo, numa tentativa de dourar a pílula, impomo-nos a imagem do bom colonizador, responsável pela criação de sociedades multiculturais, bem como de uma globalização avant la lettre, e por levar a inovação aos quatro cantos do mundo. Mas os Descobrimentos não foram aquilo que gostamos de imaginar, ainda que tenha havido, de facto, muita noz-moscada envolvida: por onde passámos, subjugámos outros povos, eliminámos a sua cultura, roubámos-lhes riquezas e marcámos os seus membros com um ferro em brasa, para que depois os pudéssemos escravizar, sujeitá-los ao trabalho forçado e até vendê-los, como se de objetos se tratassem.
O racismo dá a forma e é o resultado direto do colonialismo e das suas práticas. Insistir na defesa de um monumento e, consequentemente, daquilo que ele representa pelo simples facto de sentir orgulho na história do nosso país é contribuir para a manutenção das desigualdades que constituem o sistema que é o racismo (do qual todos fazemos parte e dentro do qual todos temos responsabilidades, embora, por vezes, gostemos de, tal como Pilatos, lavar as mãos e assobiar para o lado). Dizer tudo isto não é mais do que dizer que uma coisa é não querer apagar o passado e outra, completamente distinta, é querer revivê-lo constantemente.
Este exercício de reconhecimento e de autocrítica não é, ao contrário do que se diz por aí, olhar para a história através dos olhos do presente; é, sim, uma mudança de perspetiva, é olhar para os acontecimentos do ponto de vista do oprimido, em vez de o fazer, como sempre fazemos, do ponto de vista do opressor. A história não gira em torno da Europa ocidental e da sua mundividência. Podemos afirmar que, para nós, ao contrário do que acontece hoje, a escravatura era algo aceitável, mas não podemos dizer que o era para os que foram escravizados, sob pena de, uma vez mais, tirarmos a voz àqueles que nunca a tiveram.
De qualquer modo, sempre seria de rejeitar a tese de que a história não pode ser analisada de acordo com os valores que regem a vida em comunidade no presente. Em primeiro lugar, porque analisar a história não é reescrevê-la. E, depois, porque é isso que fazemos constantemente: a evolução, fim último da análise histórica, implica sempre um confronto entre o que se passou e o que queremos para o futuro – a título de exemplo, os instrumentos de proteção internacional de direitos humanos surgiram como resposta às atrocidades cometidas pelos regimes fascistas na primeira metade do século XX, tendo por objetivo evitar que as mesmas se repetissem. A história é um grande processo de encadeamento, não de segmentação de épocas e respetivos modos de pensar. Reavivar a memória histórica é, por isso, a única forma de afastar a não-tão-inevitável ciclicidade da história.
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