A todos é conhecido o desastre nuclear que ocorreu em Chernobyl a 26 de abril de 1986. Aliás, para os mais interessados, a HBO realizou uma minissérie envolta desta catástrofe, em 2019, que se tornou uma das apostas mais premiadas da plataforma. Considerado por muitos o pior desastre nuclear de todos os tempos, a par dos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki, a verdade é que Chernobyl está longe de ser o lugar mais radioativo do planeta. Antes de mais, é importante referir que a radioatividade das cidades, que apresentam os maiores níveis de radioatividade no mundo, tem causa, sobretudo, nos testes nucleares realizados em tais espaços durante a época da “corrida nuclear” que teve lugar ao longo da infame Guerra Fria entre as superpotências ex-União Soviética e EUA. Hoje em dia, só temos conhecimento da radioatividade destes lugares graças ao turismo negro que por lá ocorre. Enquanto que alguns Estados tentam ocultar os verdadeiros números radioativos (à semelhança do que a ex-URSS tentou fazer com Chernobyl), outros tentam revitalizar essas mesmas cidades – e eu irei falar em cada um desses casos.
Comecemos pelo Cazaquistão, país localizado na Ásia Central, e outrora parte do universo soviético, do qual releva para tema a cidade de Semey, onde se verificaram, entre 1949 e 1989, cerca de 468 explosões nucleares. Para termos uma perceção mais clara, estas explosões equivalem a cerca de 2500 bombas do tamanho da de Hiroshima. Estes testes nucleares ocorreram na área popularmente conhecida como “O Polígono”, ou apenas Área de Testes de Semipalatinsk, mais concretamente na sede científica de testes nucleares designada Kurchatov, em homenagem a um dos criadores do programa nuclear soviético: Igor Kurchatov. Atualmente, é possível visitar-se algumas das partes “menos” radioativas desta zona com as devidas precauções, embora este lugar tenha sido mantido em segredo até ao ano de 1991.
Para os chamados “dark tourists” mais corajosos, este é provavelmente um destino de sonho, apesar de existirem cientistas a considerar que esta seja, de facto, a área terrestre mais radioativa do planeta Terra. Na verdade, esta afirmação até acaba por funcionar como um incentivo para este tipo de turistas crescente. Um desses turistas corajosos foi David Farrier, o jornalista e protagonista da minissérie “Turismo Macabro” da Netflix, que data do ano de 2018.
Quando visitam o epicentro destas explosões nucleares, não é preciso muito tempo para que os turistas se apercebam da falta de população e de infraestruturas aí presentes. O hotel mais próximo fica a quilómetros de distância, sendo que o centro do Polígono se resume a torres de pedra altas, as quais antes funcionavam como vigias de controlo das explosões praticadas. As visitas são feitas sob a supervisão de um guia, que está obrigado a recomendar o uso de fatos especiais e de máscaras faciais próprias para o efeito. De mais a mais, o guia que ficou encarregue de mostrar a área ao protagonista da minissérie acima referida, chega até a reconhecer que a inalação do pó daquele lugar, caso chegue aos pulmões, pode provocar cancro. É, porém, inegável que estes guias nunca são muito precisos e/ou concretos na descrição do que realmente se passou nesses perímetros terrestres, acabando por declarar frases como: “não tenho muito entendimento sobre o assunto” ou, então, “não tenho conhecimento de que a radioatividade tenha, definitivamente, afetado vidas humanas”, e por aí vai.
Será que esta falta de minuciosidade, ou até secretismo, é fruto de alguma “pressão estatal”? Não é segredo o efeito que a radioatividade em grandes quantidades pode ter a longo prazo, e de um modo definitivo, em seres vivos, especialmente seres humanos. Um exemplo clássico de um efeito radioativo é, por exemplo, o surgimento de cancros agressivos, ou então de doenças cardio-respiratórias graves. Depois de Chernobyl, os estudos neste sentido incrementaram acentuadamente, o que fez com que fosse de esperar uma afirmação clara e direta também neste sentido por parte dos guias responsáveis por este tipo de visitas ao centro do Polígono, especialmente sabendo eles que lá se registaram valores seis vezes superiores aos das áreas interditas de Chernobyl. Contudo, apesar do perigo comprovado cientificamente, continuam efetivamente a realizar-se visitas a todo o Polígono, ainda que poucas.
Outro efeito das atividades nucleares em excesso, e possivelmente um dos mais preocupantes, é o impacto que estas podem ter para o futuro, sobretudo no que toca às gerações seguintes. Falo agora dos chamados “defeitos ao nascimento”. Defeitos esses que puderam ser comprovados, pelo menos, por David Farrier, numa visita a um orfanato local na cidade de Semey. Aí, o jornalista teve a oportunidade de observar e experienciar de perto o impacto desastroso dos testes nucleares realizados no Polígono: crianças com paralisia cerebral, bebés com macrocefalia, ou com problemas comunicacionais e de desenvolvimento, são apenas alguns exemplos das centenas de distúrbios provocados pela radiação nuclear. Todavia, esta é “a parte da História” que apenas alguns dos cidadãos do Cazaquistão têm a ousadia de revelar, continuando o local aberto para visitas aos mais interessados.
Viajando para outro país, desta vez iremos até ao Japão, mais concretamente até à província de Fukushima, onde teve lugar um dos piores desastres naturais dos tempos modernos, que vitimizou mais de 20.000 pessoas. A 11 de março de 2011, a província de Fukushima viu-se assoberbada com uma cadeia de desastres naturais. O dia 11 começou por ver um terramoto, ao qual se seguiu um tsunami, levando este a um acidente nuclear com consequências percetíveis até aos dias de hoje. A onda de 15 metros, provocada por um maremoto com uma magnitude de 8,7 na escala de Richter, atingiu a Central Nuclear de Fukushima e provocou o derretimento de metade dos seus reatores nucleares. Apesar disso, e apenas passados 9 anos desde a tragédia, o Estado Japonês parece interessado em dar uma nova vida a determinadas cidades que integram a província afetada, nomeadamente ao promover a repopulação de algumas das suas áreas. Esta ambição japonesa demonstra ser, portanto, uma atitude completamente diferente face ao primeiro Estado referido. Porém, será este um desejo ponderado?
Independentemente de esta ser uma opção ponderada e corretamente calculada ou não, a província já se encontra dividida em três “zonas”: a “zona [alegadamente] segura para voltar”, a “zona difícil de regressar” e a “zona interdita/proibida”. As duas primeiras estão abertas ao público, que pode ter direito a um guia turístico especializado na matéria em questão. No entanto, o acesso à zona difícil de regressar só é possível através de uma autorização especial do Governo.
Quanto à área selecionada pelo Governo Japonês como - segura para residir, uma das cidades escolhidas é a cidade de Tomioka, onde tudo parece ter sido deixado para trás intacto, funcionando como um reflexo claro do desespero por detrás da evacuação populacional. Os especialistas em radioatividade e até mesmo os próprios guias responsáveis pelas visitas turísticas a este tipo de cidades mencionam que, a partir dos 0,20 SV/h, o local em questão pode se tornar perigoso para morar. Em contraste com esta afirmação, a verdade é que, pelo menos em 2018, através de um contador Geiger, se poderiam registar valores como 0,72 SV/h, valor esse que não só é superior ao valor recomendado, como também ultrapassa o de algumas das áreas interditas ao público de Chernobyl. Como é que o Governo pode recomendar o regresso a cidades como Tomioka, quando os 0.20 SV/h recomendados são facilmente ultrapassados? Assim é, devido ao Estado de Emergência declarado nestes locais, precisamente para permitir ao Governo “ignorar” os níveis recomendados, de modo a facilitar a residência nos mesmos.
A Ciência indica ser necessário, pelo menos, mais 200 anos até que Fukushima regresse a uma espécie de “normalidade”. Apesar de todos os esforços por parte do Governo Japonês, designadamente a construção de restaurantes nas periferias de Fukushima, e da contratação de artistas de rua para atrair turistas, os planos não têm corrido conforme o planeado. Na cidade de Tomioka, segundo estatísticas de agosto deste ano, a população ronda os 1.489 habitantes. Este número tão pequeno manifesta a relutância dos cidadãos em regressar. Para colocar estes números em perspetiva, a cidade do Porto tem 41.42 km² e mais de 216 mil habitantes, tendo por base os dados fornecidos pela PORDATA, no ano de 2019. Em contraste, Tomioka tem uma área de 68.39 km², e quase menos 200 mil habitantes do que a cidade portuense.
No que toca às zonas às quais dificilmente se poderá regressar, a radiação registada varia entre os 1,43 SV/h e os 8 SV/h. Tal poderá fazer-nos questionar quais serão os valores de radioatividade nas zonas totalmente fechadas ao público, onde nem sequer se pode parar um carro, sob pena de possível repreensão policial e até mesmo de pena de prisão.
De mencionar ainda é a existência das popularmente conhecidas “lonas verdes” por toda Fukushima, que correspondem a sacos com solo e plantas removidos das áreas infetadas com a radioatividade. Estes sacos foram criados para terem uma durabilidade máxima de cerca de 2-3 anos, mas ainda hoje existem, 9 anos após a primeira catástrofe. Existem quase dez milhões de sacos deste género, e ninguém sabe qual o seu propósito, ou o que o Governo pretende fazer com eles. Contudo, a sua existência também poderá contribuir para o não regresso da população às áreas selecionadas.
Depois da exposição dos factos, deixo aqui a pergunta final: qual será a atitude mais correta por parte dos Estados face a estes desastres nucleares? Deverão estes assumir uma posição mais “passiva”, e não fazer grandes apostas nas áreas afetadas nuclearmente, acabando até por cair em algum secretismo face a estas ocorrências, como o Cazaquistão? Ou deverão fazer grandiosos investimentos, criar atrações turísticas e outras medidas com o intuito de colocar o “passado para trás das costas”, e revitalizar a grande parte das áreas afetadas, como o Japão? Talvez não exista nenhuma resposta certa para este tipo de situações, mas há uma verdade que ninguém pode negar após este artigo: Chernobyl não é, infelizmente, a única afetada pela energia nuclear, embora seja a que detenha a faixa de “miss popular”.
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