Dia da Língua Portuguesa - Grande Entrevista ao Doutor Tiago Ramalho
- Jornal Tribuna
- há 2 dias
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A língua portuguesa tem vários e importantes desígnios em cada um dos dois grandes espaços geográficos e geopolíticos em que se integra, inseridos no todo do processo de globalização: a CPLP e a UE. No seio da CPLP, a partilha da língua portuguesa tem permitido o reforço das relações institucionais entre a Faculdade de Direito da Universidade do Porto e as Faculdades de Direito de Goa e Macau. De que modo se deve preservar a língua como elo de cooperação, comunicação e inter ajuda entre realidades distintas?
Penso que o fator linguístico não é o único fator relevante para a manutenção de laços especiais com países de língua portuguesa e, como referido, com Macau e Goa. Existem outros fatores, mais de natureza relacional e ligados à facilidade de interação humana com os principais agentes jurídicos (e não só) dos referidos espaços.
Mas, não sendo a língua o fator único, é um fator de primeira grandeza para a cooperação, porque cria a possibilidade de uma aproximação privilegiada em comparação com aqueles que não dominem esse instrumento comunicativo. A comunidade linguística é, porventura, um dos poucos fatores distintivos de que Portugal pode dispor, a nível internacional, como mais-valia na interação com alguns Estados terceiros. Considerando o conjunto de elementos caracterizantes de que dispõe – cultura, prática política, economia,… –, é a língua aquele fator em que, pelo menos num cenário europeu, Portugal dispõe de uma determinada mais-valia para o acesso a determinados espaços extraeuropeus que não estão ao dispor de nenhum outro Estado.
Deste ponto de vista, a língua portuguesa tem, para nós, mesmo do prisma da projeção internacional, uma importância absolutamente extraordinária. Basta recordar que a língua portuguesa é uma das dez línguas mais faladas no mundo, o que a coloca num grupo realmente seleto.
É indiscutível que o Direito sofreu grandes alterações ao longo dos tempos, fruto da natural evolução do mundo. Contudo, é no legado de gerações passadas que encontramos as respostas para muitas questões do presente. O Direito português atual encontra a sua base no Direito romano, perdurando uma herança romana, que se revela, por exemplo, no recurso ao latim. De que modo o uso da língua-mãe do português, num elevado número de expressões jurídicas, permite a continuidade do legado romano no sistema jurídico atual?
Eu penso que a enorme relevância da cultura romana, não só para o Direito português, mas, em geral, para todos os Direitos da Europa ocidental, sobretudo nos sistemas romano-germânicos — mas também, embora de modo mitigado, no Direito anglo-saxónico —, Direitos que sofreram uma fortíssima influência romana, não se manifesta, em primeira linha, no uso ou não uso de locuções em língua latina. Esse é um aspeto quase folclórico que não tem, enquanto tal, grande relevância.
A grande relevância da cultura romana e da língua latina para os Direitos ocidentais está, antes, no modo como conformou as formas básicas mediante as quais pensamos o Direito; a cultura romana influencia de forma implícita, pressuposta, a nossa compreensão da juridicidade. Assim, o nosso interesse na língua latina decorre de facultar a possibilidade de tomarmos consciência de modo explícito, intencional, desses mesmos pressupostos que usualmente passam inadvertidos.
Julgo que é aqui, nesta influência básica na nossa compreensão do Direito, e não tanto no uso proverbial de expressões latinas, que se encontra a herança da cultura romana, que naturalmente só pode ser plenamente assumida com o conhecimento da língua em que se expressa. E justamente dessa forma, com um tratamento assumido a partir do conhecimento da respetiva língua, a cultura romana, nos principais Estados europeus, continua ativamente a influenciar o modo como é pensado e experimentado o Direito nos dias de hoje.
A língua é um transmissor do património humano e um repositório de conhecimentos locais. Na Grécia Clássica, a língua era um fator de unidade cultural e, entre nós, já Fernando Pessoa afirmava “A minha pátria é a língua portuguesa”. Numa época onde se procura compatibilizar aquilo que alguns consideram ser a “deslocalização das identidades e particularidades culturais” e a globalização como elemento orientador para um bem estar comum, será a língua representação de uma barreira ou, ao invés, de uma ponte?
A questão é realmente muito interessante. Penso que, claramente, as línguas são uma fronteira. Em boa medida, o interesse na conservação e no desenvolvimento de uma determinada cultura linguística encontra-se precisamente aí, na medida em que, constituindo uma fronteira, reserva também um espaço para o desenvolvimento de uma cultura particular.
Sem diversidade linguística, também ficaria seriamente colocada em risco a diversidade cultural, uma vez que a língua é um dos meios privilegiados para a manifestação das singularidades de cada comunidade particular de falantes. Portanto, a língua é, inequivocamente, uma barreira, só que é uma barreira que propicia qualquer coisa de muito bom, que são justamente os desenvolvimentos particulares de cada cultura.
E importa acrescentar: muito embora a língua seja uma fronteira, é uma fronteira que pode ser transposta, mediante a sua aprendizagem. Portanto, não é uma fronteira que crie um obstáculo derradeiro à comunicação e convivência humanas, mas, pelo contrário, é uma fronteira que nela própria tem já a possibilidade de gerar, proporcionar, uma convivência qualificada. Todos aqueles que tenham tido a experiência de aprendizagem de uma língua estrangeira e, sobretudo, de se sentirem entendidos por um falante natural dessa língua ao falarem-na, já transpuseram essa fronteira e já sentiram quão profunda é a comunhão humana gerada por essa mesma transposição.
Por isso, a língua tem esta ambivalência muito interessante: ela afasta, mas, uma vez percorrido o caminho de sua aprendizagem, propicia também uma forma de comunhão humana extremamente profunda. A língua é simultaneamente um elemento de alguma separação, mas também que, inequivocamente, proporciona uma profunda comunhão. E só o é na medida em que é plural, em que existam variadíssimas formas, realizações, em que se desdobre, porque um contexto de puro monolinguismo não permitiria essa experiência humana de diversidade e de profunda comunhão.
Prevalece, nos nossos dias, ainda, a ideia de que o Direito pode encerrar algumas portas a nível internacional, dadas as diferenças entre os vários ordenamentos jurídicos. Contudo, há influências e elos de ligação, como acontece com o Direito português e o Direito alemão. Efetivamente, o estudo de textos e teorias de autores alemães tem sido uma parte importante do nosso sistema jurídico, em particular no âmbito do direito civil. De que modo a promoção da aprendizagem de novas línguas, como o alemão, pode influenciar o modo como olhamos o Direito e interpretamos as normas jurídicas?
Influencia de modo absolutamente decisivo. No caso do Direito português, no exemplo que foi dado – o da relação com o Direito Alemão –, essa influência manifesta-se talvez de forma mais intensa no Direito Civil, sobretudo no Direito Civil patrimonial, que conduziu a que a cultura jurídica portuguesa fosse adotando gradualmente modelos normativos e metódicos próprios do espaço germânico.
Mas a razão pela qual se dá essa influência é, na verdade, muito mais profunda: a aprendizagem de uma língua estrangeira é uma gradual aculturação a uma experiência humana distinta. Aprende a língua estrangeira aquele que, gradualmente, faz seus modos de expressão, de compreensão, também eventualmente de ação, que, à partida, lhe eram estranhos/estrangeiros. Isto significa que aquele que percorre o caminho de aprendizagem de uma língua estrangeira se vai gradualmente transformando por essa mesma aprendizagem, tendo de rever as suas formas iniciais de compreensão da realidade, que se exprimiam de determinado modo, no confronto de outras que, agora, vai gradualmente assumindo.
Antes mesmo de se falar numa certa influência da cultura jurídica alemã sobre a cultura jurídica portuguesa, temos de reconhecer, portanto, que a simples aprendizagem da língua alemã — ou de qualquer outra língua — já deixa naquele que percorre esse caminho um conjunto de transformações que conduzirão a uma mudança da sua interpretação da própria realidade. Assim, a aprendizagem de uma determinada língua estrangeira, mais do que conduzir a este ou àquele resultado prático, conduz a uma mudança integral do horizonte desde o qual alguém se coloca perante a realidade, horizonte que se torna mais rico. Ora, é essa mudança de horizonte que, num segundo momento, proporciona eventualmente algumas transferências culturais mais circunscritas, limitadas, que apenas operam na medida em que alguém, conhecendo uma língua de partida e uma língua de chegada, está capacitado para ser um mediador cultural.
Isso, no fundo, foi o que aconteceu na relação entre a cultura jurídica alemã e a cultura jurídica portuguesa. Gradualmente, alguns juristas portugueses familiarizaram-se com a cultura jurídica alemã e, mediante essa familiarização, releram a sua experiência do Direito a partir de uma nova síntese que foi proporcionada por este encontro de línguas. E isto que aconteceu historicamente entre a cultura jurídica alemã e a cultura jurídica portuguesa pode acontecer com outras línguas.
Interessante é sempre observar este elemento: quando se dá a abertura para uma determinada língua ou cultura estrangeira, dá-se não apenas a aprendizagem de novos conteúdos, mas uma certa convergência de horizontes entre aquela que era a experiência, à partida, de quem se dedicou à aprendizagem da língua e a experiência pressuposta pela língua que passou a dominar. E esta síntese é extremamente rica; enfim, é a grande valia do poliglotismo. Embora só consigamos ter uma sua experiência muito limitada, mediante o domínio de porventura só uma ou outra língua estrangeira, mesmo assim conseguimos já inferir que, se conseguíssemos expandir essa experiência para um domínio irrestrito de línguas, o resultado seria uma visão caleidoscópica da realidade, que nos permitia pensar com um nível de profundidade, complexidade, pormenor, absolutamente inantecipáveis da posição atual.
No espectro constitucional, há autores que defendem que o direito à língua é um direito linguístico de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. O Regulamento do Tribunal Internacional de Arbitragem consagra, no seu art. 21º, a importância da língua na interpretação dos contratos internacionais. A língua reflete a cultura de uma comunidade e, consequentemente, o sistema jurídico que a rege. No plano internacional, será a diversidade linguística uma fonte de conflitos jurídicos?
Podemos fazer duas observações. A primeira é: evidentemente que, sendo a língua um dos fatores mais relevantes para formar uma identidade cultural, questões linguísticas podem ser aproveitadas como meios ou instrumentos para cimentar divergências que agudizam conflitos políticos. Por exemplo, vemos que no continente europeu um dos fatores principais para a organização das comunidades políticas é a língua (Portugal é o país dos falantes de português, França é o país dos falantes de fancês, …); a língua é, assim, um dos fatores mais relevantes para fundar e exacerbar uma identidade nacional. Isto levar-nos-ia a dizer que a diversidade linguística é, porventura, um fator que contribui para o agudizar de conflitos internacionais.
Mas, ao mesmo tempo, esta conclusão revela-se absurda – ninguém estaria disposto a conceder que, se não houvesse diversidade linguística, acabariam os conflitos. Isto é de uma tremenda puerilidade. Assim, percebemos que, se a diversidade linguística pode servir de pretexto para agudizar alguns conflitos, ela não é, na verdade, a sua causa real. Os conflitos existem porque o ser humano, entre outras características, é conflituoso, propenso à violência, e encontra os pretextos que lhe parecem mais adequados para justificar o exercício dessa mesma violência. Se pode apelar à língua, recorre à língua; mas, se não houvesse diversidade linguística, recorreria a outro qualquer pretexto. De outro modo não haveria guerras civis, que são guerras internas entre aqueles que (não raro) fazem parte da mesma comunidade linguística.
Em suma: embora, aparentemente, a língua possa ser um aspeto que contribui para alguns conflitos, bem analisadas as suas causas, elas são, infelizmente, mais radicais, e não seriam uma neutralidade linguística ou um monolinguismo total que, sem mais, pacificariam as relações políticas.
Mariana Resende e Marta Torres – Grande Entrevista
Francisco Paredes – Cultural
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