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Direito da Moda: Uma nova tendência

Hoje, trazemos-vos uma conversa com o ilustre Dr. João Fraga de Castro, sócio fundador da João Fraga de Castro & Associados, sobre os passos dados pela moda das vitrines até aos tribunais portugueses e as implicações que isso tem no nosso ordenamento jurídico.


Em que momento e qual a razão que determinou o surgimento do Direito da Moda?


O Direito da Moda é uma construção que poderá ter origem em 2010, nos Estados Unidos. A professora Susan Scafidi realizou, na Universidade de Fordhan, em Nova York, o primeiro curso (não lhe chamaria uma Pós-Graduação) subjacente a esta área. O curso foi organizado em torno de Diane von Fürstenberg, modelo e dirigente de uma marca de moda, e congregou um conjunto de conhecimento em torno daquilo que seriam as áreas de Direito que teriam contacto com o Direito da Moda.


Sumariamente, o Direito da Moda começou por agregar a propriedade intelectual e os contratos, mas ficou-se muito por aí.


Posteriormente, em diferentes geografias, nomeadamente em Espanha e França, deu-se uma construção teórica um pouco mais desenvolvida. Enquanto a versão americana é mais ligada à propriedade intelectual, nós, em Portugal, compreendemos que tínhamos de ir muito para além disso. Há aqui uma lógica de ser mais abrangente e, tal como acontece no Direito Desportivo ou no Direito da Farmácia e do Medicamento, o Direito da Moda é hoje em dia muito mais vasto do que as meras relações contributivas com a Segurança Social.


O Direito da Moda assume preponderância no nosso ordenamento jurídico? Olhando para os litígios que podem surgir, nunca ouvimos falar muito sobre o Direito da Moda. Em que medida é que surgem litígios e situações de conflito no nosso ordenamento?


De facto, com a denominação de litígios do Direito da Moda, não. Eu próprio, durante 20 anos, trabalhei numa área que não sabia que se podia chamar de Direito da Moda.


Durante este período comecei a aperceber-me que há 20 anos já existiam problemas de sustentabilidade: a Adidas fazia contratos para produção têxtil e já obrigava a que houvesse sustentabilidade social, salarial, económica e ambiental, com as ETARS não temos a desagradável tristeza de passar pelo vale do rio Cávado e ver as águas tingidas da cor da nova coleção da ZARA.


A preponderância, do ponto de vista formal, não existe com este nome, mas existe quando há um problema de uma patente de dimensão. Isto é muito importante, porque, atualmente, o têxtil está muito voltado para as tecnologias, os chamados wearables – tecnologias digitais que se podem traduzir na leitura dos níveis de colesterol e prever ataques cardíacos. Vemos a questão do Direito da Moda nos tribunais quando há contratos de transferência de tecnologia em que uma determinada imagem da GUCCI ou da DIOR é transposta para um determinado tipo de têxtil.


No âmbito da propriedade intelectual, temos Direito da Moda quando estamos perante uma exportação e temos de ver a pauta aduaneira do país destinatário. Vemos a questão de Direito da Moda quando estamos a falar dos marketplaces e dos meios electrónicos de pagamento.


Por fim, vemos o Direto da Moda nas relações laborais, em termos da propriedade intelectual em si mesma, mas também naquele ato criativo de cada um dos intervenientes, seja o empregador ou o subcontratado.


Ao nível digital, só podemos falar no imenso território que está ainda em aberto, por isso é que há muitos escritórios nos Estados Unidos, no Brasil, e agora a surgir em Portugal, como é o caso do nosso, que têm como vocação Intelectual Property and Fashion Law Media.


Há um livro que me foi enviado por Tiago Oliveira - “Proteção Jurídica das Criações de Moda” - um livro pequeno, mas que não precisa de ser maior, cada linha é para saborear. Tudo isto é, hoje em dia, Direito da Moda, ainda não há uma sistematização, mas já existe um livro editado pelo nosso escritório, que em mil páginas trata precisamente de sistematizar tudo quanto tem a ver com o Direito da Moda. Na nossa humilde opinião, esperamos que haja mais gente a tomar iniciativa e dizer ainda mais do que nós.


Falámos da propriedade intelectual, é o Direito da Moda mais específico que a propriedade intelectual? De que forma é que podemos distinguir os dois?


A propriedade intelectual, na nossa visão, é uma área já sedimentada e com jurisprudência nacional e internacional devidamente consolidada que integra, mas não esgota o Direito da Moda.

A nossa Pós-Graduação na Universidade Católica, que coordenamos em conjunto com a Professora Ana Afonso, já tem isso em conta. Nós chamamos-lhe Fashion Law & Business precisamente porque entendemos que o Direito da Moda não se basta pela propriedade intelectual.


Se adequarmos o Direito da Moda a cada país, compreendemos que os focos e preocupações podem divergir, por exemplo: temos de considerar que nós, Portugal, temos uma elevada produção têxtil à medida, a chamada “marca branca”, logo, há muitas preocupações e implicações próprias sentidas por quem tem uma marca própria. Podemos olhar para esta questão como se de um filho se tratasse. O filho cresce, vai-se desenvolvendo e nós temos que ir acompanhando todos os seus passos, mas acontece que, se o filho não é nosso, então não estamos tão preocupados com cada etapa dele.


Para trabalhar na área do Direito da Moda tem que se conhecer necessariamente de moda? Exigem-se alguns conhecimentos específicos sobre o mercado?


Começo por dizer algo transversal a qualquer pessoa que queira ser advogado, têm de saber Direito, e convém saber muito Direito. Para trabalhar nesta área é importante ter alguns conhecimentos base, nomeadamente aqueles conceitos básicos e estruturais da Teoria Geral do Direito Civil, a parte geral das Obrigações, saber um pouco de Direito Internacional Privado e ter uma noção de Direito Fiscal, mas sobretudo há que ter uma curiosidade muito grande.


Eu faço uma confissão, o meu pequeno-almoço, antes do pequeno-almoço físico, é visitar quatro ou cinco newspapers: Modaes, Apiccaps, ATP (Associação dos Têxteis de Portugal), Vogue e The Business of Fashion. Ou seja, a curiosidade vem parar precisamente aqui.


Eu estarei em melhores condições de defender uma cliente se conhecer o processo produtivo e criativo que leva à concretização da peça, ou o processo comercial - leia-se a pegada digital da peça. Ou seja, eu diria que no meio de isto tudo, se nós conhecermos e tivermos alguma sensibilidade para dourar e aumentar a nossa curiosidade de ver coisas bonitas e bem feitas é um plus, mas não uma necessidade.


Em suma, o que não é despiciendo é conhecer o processo produtivo e o processo criativo, agora se sabe ou não colocar o lencinho branco e fazer combinações de cores, isso não é o mais importante.


Nas últimas décadas assistimos a um aumento de falsificações proveniente do fenómeno da internet e das compras online. Por conseguinte, assistimos ainda à violação dos direitos de autor, como é que resolvemos este problema na ótica do Direito da Moda?


O primeiro mecanismo que podemos utilizar para resolver este problema é precisamente a utilização do mesmo instrumento do crime, ou seja, a tecnologia.


Um exemplo muito simples: a marca Salvatore Ferragamo desenvolveu uma aplicação - que já não é propriamente uma novidade - que tem uma leitura de QR Code, permitindo determinar não só se o produto é verdadeiro, mas também se o mesmo é sustentável (entram aqui sobretudo a sustentabilidade ambiental, económica e social).


Outro mecanismo prende-se com os acordos alfandegários. A vontade de exportação para a China levou a que na Organização Mundial de Comércio se desse a consciencialização de que eventualmente seria necessária a entrada de produtos chineses. Nesse sentido, realizou-se o acordo multifibras que determinou que em 91/92 os produtos chineses viessem para o Espaço Comum Europeu.


Durante muito tempo nós não percebemos que fomos autenticamente tomados pela produção chinesa, e acontece que levámos muito tempo a reagir, desde a questão da falta de sustentabilidade ambiental, à produção sem condições ou até mesmo camisolas que dizem ser algodão, mas são 100% fibra. Ou seja, só mais tardiamente é que fizemos um maior controlo dos produtos que davam entrada no nosso mercado. Ainda nos dias de hoje, não podemos considerar a situação ideal, mas estamos mais perto do pretendido, estamos, sobretudo, muito longe da rebaldaria que foram os primeiros 10 anos do acordo multifibras.


Tem o Direito da Moda mecanismos preventivos e repressivos para serem aplicados no caso em apreço?


Os mecanismos preventivos podem ser divididos em dois níveis de abordagem. O mecanismo preventivo mais forte é o educacional, a percepção de que a qualidade tem um preço associado - isto está muito ligado à consciencialização para o impacto das produções incentivadas pela fast fashion.


As pessoas perderam um bocadinho a noção e o respeito pelo ato criativo que se traduz, por exemplo, numa peça de roupa. Ao entrarmos na fast fashion estamos a enganar-nos a nós próprios, a durabilidade associada a uma peça de qualidade, consequentemente mais cara, sobrepõem-se em larga medida à quantidade sem qualidade.


Temos ainda a prevenção a nível da repressão. Aqui falo em repressão no sentido de maior controlo alfandegário. Em Roterdão, por dia, estamos a falar da movimentação de 230 mil contentores, isto é uma brutalidade, que pode, no entanto, ser diminuída se prescindirmos de controlo físico em prol de controlo através de meios eletrónicos, como é o caso das etiquetas RFID (emitem um sinal rádio que permite identificar o conteúdo).

Considera que as soluções jurídicas contempladas no nosso ordenamento são satisfatórias para tutelar as posições jurídicas ou poderiam ser melhoradas?


As soluções que estão mais em falta no edifício jurídico, onde se encaixa o Direito da Moda, são as conexas com a propriedade intelectual.


Não há soluções, do ponto de vista económico, que sejam viáveis para um produtor de moda que tenha de se precaver de uma feira ou da produção chinesa, mexicana, etíope, prontas a contrafacionar as suas peças. Levanta-se a questão: Como é que protejo a minha obra quando a revelo?


Um famoso empresário na área dos sapatos obrigava a que nas feiras internacionais que organizava fosse verificada a ausência de qualquer tipo de câmara. A segurança era levada ao limite, era um autêntico Bunker, confirmavam inclusive os botões de camisas, não permitiam malas de mão, havia quase que uma necessidade das pessoas irem despidas. Isto acaba por não ser prático ou realista, independentemente de todos os cuidados há sempre forma de captar imagens.


Outra questão é a abordagem judicial, a falta de sensibilidade ainda é muito sentida nos nossos tribunais criminais de 1ª instância. Imaginemos que foram apreendidas camionetas com contrafações dos sapatos da estilista X em Odemira, Bragança, Castelo Branco e ainda em Portalegre. X só está agora a começar, está a vender elevadas quantidades, mas ainda não é o suficiente para arrecadar as custas de um bom advogado, sabendo que é necessário um perito distinto para cada local. Tem ainda que ir buscar a mercadoria se não quiser que a mesma seja doada a uma instituição de caridade e ainda tem de determinar como vai destruir o produto.


Se não houver uma sensibilidade do juiz da comarca, onde foi detetado o crime, então ainda teremos um problema acrescido: pode o juiz não perceber que uma cunha de sapatos (forma que permite fazer o sapato) custa 50.000€ e permite fazer uma quantidade ínfima do modelo.


Julga conveniente a criação de um código para o Direito da Moda?


Não, de todo. Nem eu que trabalho nesta área dou ao assunto qualquer tipo de ponderação. Quando nós pensamos neste livro, que está à venda na Amazon - “Fashion Law” de João Fraga de Castro - procuramos congregar todas as matérias, estamos a falar da propriedade intelectual, do Direito Laboral, do Direito Fiscal, dos meios de pagamento eletrónicos e ainda dos marketplaces. Digamos que aquele livro vai buscar a parcela que interessa para tratar especificamente da área do Direito da Moda em que toca.


Na sua opinião trata-se de um ramo promissor para futuros juristas?


É uma pergunta difícil, mas eu diria que sim. Entre ourivesaria, calçado e indústria têxtil, temos uma realidade económica que representa 7,8 mil milhões de euros de exportações de Portugal. Ora, se esta realidade não tem dignidade para ser representada por um conjunto de assessores, então não sei que realidade em Portugal teria.


Se me diz que se quer especializar em Direito da Moda, isto não seria mais ou menos difícil do que trabalhar nas áreas de Direito Administrativo ou Direito Fiscal, implica apenas encontrar um escritório que se dedique à área e ir para uma área geográfica em que haja muitas empresas.


Nesse sentido, eu acredito que há mercado, o que eu faço Pro Bono passa muito por dar o meu testemunho de que há uma área muito importante de especialização de assessorias. Ou seja, isto existe e tem uma realidade económica por trás, o que nós pretendemos é que haja uma progressiva consciencialização desse facto.


Temos feito isso através do livro que mencionei previamente, do instagram @fashion_business_law_institute, da Associação Portuguesa de Direito da Moda, da Pós-Graduação da Universidade Católica, que já teve a sua 2ª edição, e dos cursos breves de Direito da Moda que vamos realizando em função dos convites que nos são feitos, costumamos dizer que já namoramos com todas as Elsas do país.


O que o levou a dedicar-se a este novo ramo?


Isto foi quase uma exigência familiar. O meu pai tinha estabelecimentos comerciais na área do pronto a vestir e, portanto, eu percebi desde cedo os problemas inerentes a quem vende um produto.


Ainda por via familiar, havia uma participação na área têxtil na zona de Barcelos através de uma fábrica e, aos poucos, fui sendo convocado, primeiro por curiosidade e depois quase por osmose. Comecei a perceber o que era um contrato com uma multinacional, a ter contacto com as questões ambientais, sociais e laborais em primeira mão, com as questões da transferência da tecnologia, que estão na propriedade intelectual, e ainda as pautas aduaneiras.


Ou seja, isto foi quase que por osmose, mas demorou algum tempo. Eu demorei a perceber que esta matéria tinha dignidade para escrever um livro sobre isto e para dar corpo na visão portuguesa àquilo que nós entendemos que é o Direito da Moda.


Que perfil deve ter um jurista nesta área? Que percurso aconselha alguém percorrer para ingressar nesta área?


Repetindo só uma palavra do que já disse, é importante ter uma boa formação jurídica de base, mas o indispensável é ter curiosidade pelo processo produtivo e criativo.


Neste sentido, uma boa sugestão seria assinar umas newsletters simpáticas que possam ser motivo de aumento dessa mesma curiosidade ou inscreverem-se numa associação, por exemplo: em Espanha nós somos fundadores da Associación de Expertos em Derecho de la Moda (AEDM).


A curiosidade é importante, o estudo é importante e ainda estar associado a um escritório de advogados que pratique isto num cluster têxtil ou trabalhando na Farfetch, ou para um grande site de moda.

Esta é a receita que vos dou, sendo que nada acontece de imediato em nenhuma área de Direito.


Inês Melo e Tatiana Santos

1 comentário

1 Comment


Bárbara Pedrosa
Dec 06, 2021

Entrevista muito bem conseguida e super interessante. Parabéns ! Leiam !

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