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Do orgulho em ser português, ou da falta dele.

  • Foto do escritor: Ricardo Martins Silva
    Ricardo Martins Silva
  • 6 de dez. de 2020
  • 8 min de leitura

Atualizado: 7 de dez. de 2020

Pugnando pelo renascimento do país e concentrando-se no ato revolucionário, as instituições democráticas portuguesas acabaram por falhar no mais importante: não conseguiram reconhecer e, por conseguinte, combater a humilhação deixada por 48 anos de ditadura. Acreditando que a simples evocação de uma data bastaria para varrer para debaixo do tapete a castração, o medo e a mediocridade, permitiram que estes permanecessem entre nós, que se camuflassem e entranhassem na nossa conceção do mundo.


A identidade nacional portuguesa, isto é, aquilo que nos une enquanto grupo e nos distingue dos demais, continua a ter elementos da identidade nacional salazarista.

Com efeito, a identidade nacional foi uma importante ferramenta do Estado Novo, que a reescreveu através da propaganda. Foi ela que, em parte, justificou a longa duração da ditadura: quanto mais nos identificamos com aquilo que nos rodeia, mais nos conformamos. O objetivo do regime era simples: reinventar, através da manipulação da memória coletiva, a história e a alma popular, enfatizando determinados factos e silenciando outros, de modo a que os valores proclamados pelo poder político fossem aceites pela população como naturais e evidentes. Só assim se garantiria a distinção entre “nós” e “os outros”; só assim se protegeria o país da mudança proveniente do estrangeiro, vista como antinatural; só assim permaneceríamos “orgulhosamente sós”.


Ao longo deste texto procurar-se-á estudar a ação propagandística do Estado Novo e os seus efeitos sobre a identidade nacional passada e presente. Por outras palavras, tentar-se-á encontrar aquilo que, discretamente, ficou daquele regime e chegou até aos nossos dias.


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Castelo de São Jorge. | © Eduardo Portugal/Arquivo Municipal de Lisboa

Comecemos pelo bocado de pano que orgulhosamente hasteamos em cerimónias oficiais. Ensinaram-nos, ainda na escola primária, que o verde da nossa bandeira representa a esperança e que o vermelho representa o sangue por aqueles que morreram a servir a nação. Mas isso é um mito, como muitos outros que o Estado Novo criou. Na verdade, as duas cores estão associadas aos movimentos revolucionários republicanos do século XIX.


Além da bandeira, os castelos e monumentos. Quando visitamos o Castelo de São Jorge, pisamos os passos de D. Afonso Henriques e sentimos nos ombros o peso de séculos de história de uma nação. Ou pelo menos era isso que queriam que sentíssemos. O Castelo sofreu, nos anos 30, profundas obras de requalificação que lhe acrescentaram torres e lhe deram a imponência que hoje tem. Estas obras enquadraram-se num plano nacional de requalificação de monumentos, cujo objetivo era enaltecer as conquistas do povo português. Também o Castelo de Guimarães foi objeto de restauro nesta época; mais tarde, associaram-lhe a figura do primeiro rei de Portugal e a cidade passou a ser vista como o berço da nacionalidade. Foram, ainda, erguidas várias construções, nomeadamente construções alusivas aos Descobrimentos, como o Padrão dos Descobrimentos e a rosácea junto a ele.


Esta manipulação da história legitimaria a ação política presente, que teria como fim a construção de um futuro melhor. O Estado Novo, na pessoa de Salazar, figura central do regime e muitas vezes associado a Afonso Henriques, fundador da Pátria, era o meio para o povo português atingir o seu grandioso destino, que, devido ao caos que representou a I República, havia sido esquecido. Aos portugueses, povo abençoado, empreendedor e de marinheiros aventureiros, fora atribuída, tal como no século XV, a missão de guiar um mundo desorientado.

Para a executarem, deveriam regressar às suas origens humildes, à pobreza e à pacatez, pois eram elas as virtudes essenciais do Homem – a regeneração fazia-se pela moral e pelo trabalho, portanto. E que bom é não ter o que comer e, ainda assim, calar.


Curiosamente, muitas destas conceções ainda fazem parte do nosso imaginário. As Descobertas foram uma grande conquista (o presidente da Câmara Municipal de Lisboa até queria construir um museu em sua homenagem – assim se cumpriria o desejo de Salazar, que sonhou com um Palácio do Ultramar), fomos os responsáveis pela primeira globalização – só um povo como o nosso poderia atingir algo com esta dimensão (a crueldade, as mortes e a exploração que representaram têm uma importância secundária, não podemos analisar a História aos olhos do presente [mas não será mais justo fazê-lo do ponto de vista dos oprimidos, em lugar do dos opressores?]). Somos campeões europeus de futebol e ganhámos a Eurovisão porque tinha de ser assim, porque o mundo está destinado a reconhecer-nos como superiores (é isto, certo?). Os currículos escolares reforçam estas mentalidades; a sociedade não se demarca desta sua messianização. De facto, este não é apenas um problema de identidade, mas também de ego: se nos tiram isto, o que resta? A debilidade económica? A pequenez territorial?


Ainda assim, pensará o leitor: queríamos nós ter líderes tão incorruptos como Salazar. E pensará mal. Não, não se aplica aqui a velha máxima “Isto no tempo de Salazar é que era!”.

A corrupção não foi inventada nos anos 80, já nos importuna há alguns séculos, e o Exmo. Prof. Dr. Oliveira Salazar não era nenhum santo. Antes de mais porque um regime opaco, como era o Estado Novo, tenderá a favorecer o nepotismo, o tráfico de influências e a corrupção. Depois porque a Justiça não atingia os membros do regime, os tribunais não eram independentes do poder político. Por fim, havia, à sombra do regime, uma grande concentração de capital nos grandes grupos económicos, muitos deles encabeçados por famílias que hoje conhecemos bem, como os Champalimaud, os Santos (Grupo Jerónimo Martins), os Espírito Santo e os Mello (Grupo CUF).


Abordemos, finalmente, os dois temas que continuam a incomodar o mais português dos portugueses: o machismo e o racismo estrutural.

Comecemos pelo primeiro. O Estado Novo queria uma mulher submissa, em casa, na cozinha, dedicada às lides domésticas e aos filhos, sem existência própria além da família; que servisse de complemento ao homem, chefe da família – o homem lidava com a vida no exterior e a mulher recebia-o, ao final do dia, de braços abertos. Foi neste ambiente que cresceu a mãe que leva o filho a um programa de televisão para que este encontre uma esposa à sua altura, que saiba cozinhar e tratar da casa, assim como o vizinho que, vendo o marido que agride a sua companheira, não intervém, porque “entre marido e mulher não se mete a colher”. É também aqui que muitos agentes da Justiça vêm beber a sua inspiração, com base na qual decidem casos que são submetidos à sua apreciação – relembremos o acórdão da Relação do Porto de 11 de outubro de 2017, que, invocando a bíblia, descredibilizou a prática do crime de violência doméstica em relação à mulher que praticou adultério, por ser este um atentado à honra do seu marido. O Estado Novo não é inocente do machismo existente na sociedade portuguesa; é, pelo contrário, responsável por reforçar, nomeadamente através da lei, muitas das ideias que hoje se procura combater.


“O homem casado que achar sua mulher em adultério (…) e nesse acto matar ou a ela ou ao adúltero, ou ambos, ou lhes fizer alguma das ofensas corporais (…) será desterrado para fóra da comarca por seis meses.

(…)

§ 3.º Aplicar-se hão também as mesmas disposições, em iguais circunstâncias, aos pais a respeito de suas filhas menores de vinte e um anos e dos corrutores delas, enquanto estas viverem debaixo do pátrio poder, salvo se os pais tiverem eles mesmo excitado, favorecido ou facilitado a corrupção.”

Artigo 372.º do Código Penal Português de 1886

“A igualdade perante a lei envolve o direito de ser provido nos cargos públicos, conforme a capacidade ou serviços prestados, e a negação de qualquer privilégio de nascimento, nobreza, título nobiliárquico, sexo, ou condição social, salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família (…).”

Parágrafo único do artigo 5.º da Constituição Portuguesa de 1933

“1. É válido o contrato de trabalho celebrado directamente com a mulher casada.

2. Poderá, porém, o marido não separado judicialmente ou de facto opor-se à sua celebração ou manutenção, alegando razões ponderosas.”

Artigo 117.º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, Decreto-Lei n.º 49408, de 24-11-1969


Já o racismo estrutural tem uma forte relação com o colonialismo. Como sabemos, o Estado Novo defendia a manutenção do domínio, pelo Estado português das colónias – ou províncias ultramarinas, como lhes viria a chamar.

O posicionamento da metrópole em relação às colónias não foi o mesmo no pré e no pós-Segunda Guerra Mundial. Contudo, há um elemento comum a estes dois períodos, que se manifestou, por exemplo, no Acto Colonial (1930): a unidade do império devia sobrepor-se à autodeterminação destes povos – por isso, as colónias não tinham importância per se, eram relevantes apenas na medida em que serviam o império.

Num primeiro momento, prevalecia um paternalismo, um darwinismo social, a ideia de que o homem branco era superior e que, portanto, tinha o dever de civilizar os indígenas, vistos como exóticos e primitivos. Mais tarde, no início dos anos 50, fruto de uma grande pressão internacional relacionada com os movimentos de descolonização do pós-Guerra, a relação entre os dois polos do império passou a estabelecer-se de acordo com a doutrina do lusotropicalismo. Segundo esta, o povo português, naturalmente empático, tinha um jeito especial para colonizar, graças à sua grande capacidade de adaptação e à aptidão que tinha para se relacionar com os outros. Onde quer que vá, o português adapta-se – não é o que se diz?

“A ironia do africano, o seu admirável senso crítico, o riso, aquela fortuna dos pobres de que nos fala S. Francisco de Assis, que êle expande a cada passo na sua vida social, é o sentimento próprio das almas simples, a quem Deus dá a quietude interior, mesmo que elas não vivam na graça de conhecê-Lo.

Eu sempre encontrei pretos alegres na minha vida em África. Desde o espírito gracioso do cabinda, à ironia prescrutante do landim. Nunca encontrei homens tristes em África que não fôssem brancos, mormente da nossa gente, não porque os atormente a nostalgia da pátria longínqua, mas porque os absorve o tédio resultante apenas de não possuírem nem vida interior, nem cultura, nem vontade sequer de organizarem uma vida mental.

Afirmava Vieira de Casto, em Luanda, onde foi morrer no degrêdo, que ali não se vivia, nem pensava. Não. Não era possível naquela ambiência de degredo pensar, nem viver, aos que lhes faltava por completo um espírito de solicitações mais elevadas do que a satisfação imediata de desejos brutais ou de materialidades rasteiras.”

Excerto do texto “Do riso e da ironia na raça preta”, de Pinto de Magalhãis, publicado no Acção colonial – Número Comemorativo da Exposição Colonial do Porto


Acrescentemos à equação os milhões de portugueses que foram enviados para a guerra colonial e os milhares que, depois da independência das colónias, tiveram de regressar ao país, e só assim percebemos que são tantas as famílias portuguesas que não souberam – e ainda hoje não sabem – lidar com este assunto.


O colonialismo continua a marcar as vidas dos jovens e jovens adultos afrodescendentes: herdaram a pobreza dos seus avós e bisavós, que sujeitámos à violência da colonização (o racismo não tem apenas uma dimensão psicológica, tem também implicações aos níveis económico e social) e vivem em guetos – afinal, é lá que pertencem, longe dos nossos olhares, porque só assim é possível vivermos com o que enquanto nação lhes fizemos e porque só desta forma protegemos o nosso privilégio.


O ano de 1974 não foi o nosso ano zero. Ainda que introduzindo um corte dogmático, ele deu seguimento temporal a um período de opressão e violência, pelo que, de modo a cumprir os seus desígnios, terá de resolver os problemas que este lhe deixou. Não há um automatismo da democratização de mentalidades, ainda que se proceda a uma democratização das instituições.


Como sabemos, a história, tal como a verdade, não se apaga, nem se segmenta. Ela ilumina. Mas, para que o possa fazer, tem de ser acompanhada de um trabalho de desconstrução dos nossos dogmas e de autocrítica.

Apenas assim será possível aproximarmo-nos de uma verdadeira democracia (com tudo aquilo que ela implica: da efetivação de uma igualdade consagrada em textos legais ao acesso democrático a bens e direitos).



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