A vontade do povo deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar-se periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto. A certeza da realização de uma eleição significa que os cidadãos terão a oportunidade de remover ou renovar o mandato dos seus representantes políticos, para além de ser um garante da democracia.
Ao mesmo tempo, fruto de circunstancialismos verdadeiramente imprevisíveis, podem ocorrer desastres naturais ou epidemias, o que significa que a realização de uma eleição poderá introduzir sérias ameaças à saúde pública. Alguns dos clássicos rituais democráticos em tempos eleitorais - como as famosas arruadas dos candidatos pelo país, as campanhas eleitorais frenéticas e sedentas de contacto humano; os fóruns de discussão e de debate, o recolhimento de assinaturas, as filas numerosas de cidadãos para votar nas respetivas secções de voto ou os funcionários públicos a contar votos em salas lotadas- de repente, tornaram-se em potenciais focos de propagação de doenças infeciosas.
Em tempos de COVID-19, o impacto nas eleições foi verdadeiramente global, demonstrando que mesmo os sistemas eleitorais mais robustos requerem ajustes e flexibilidade, ainda que revelem lacunas e pontos fracos.
As próximas eleições presidenciais irão ocorrer no dia 24 de janeiro de 2021. Com os números da pandemia a crescer - e com a previsão, inclusive, de uma terceira vaga já em fevereiro do próximo ano - é urgente repensar em alternativas aos modelos tradicionais de voto, sem nunca restringir direito de sufrágio. Antes de mais, é necessário haver uma coordenação com as autoridades sanitárias de forma a ter-se em consideração todos os fatores de saúde pública relevantes, ao passo que se assegura a tomada de decisões sensatas para proteger os eleitores. O evoluir da situação epidemiológica vai ser crucial para compreender a complexidade do contexto eleitoral.
Ao longo deste ano, absorvidos pela pandemia, ‘assobiámos para o lado’ fingindo que não iria haver eleições. Ainda que tenhamos tido pelo meio as eleições legislativas regionais nos Açores, é certo que estas não se comparam à dimensão das Presidenciais, com milhões de cidadãos a exercer em simultâneo o voto. A data do primeiro sufrágio para a eleição para a Presidência da República deve ser marcada pelo Chefe de Estado com uma antecedência mínima de 60 dias. Com grande parcimónia, o Presidente da República - bem ao estilo português - deixou o anúncio para o último dia do prazo. Convém salientar que se nenhum dos candidatos ultrapassar mais de 50% dos votos, “o segundo sufrágio realizar-se-á no vigésimo primeiro dia posterior ao primeiro” entre os dois candidatos mais votados (que será no dia 14 de fevereiro, se tal for o caso). Para além disso, a campanha eleitoral vai decorrer entre os dias 10 e 22 de janeiro.
Marcelo Rebelo de Sousa chegou mesmo a excluir a hipótese de adiamento, afirmando que “a alteração da data das eleições implicaria uma revisão constitucional”. Assim a aceleração da pandemia não adia eleições presidenciais.
Então que medidas estão a ser equacionadas para salvaguardar a integridade do processo eleitoral em tempos de pandemia? A Lei Orgânica n.º 3/2020 de 11 de novembro vem estabelecer o regime excecional e temporário de exercício de direito de voto antecipado para os eleitores que estejam em confinamento obrigatório, no âmbito da pandemia COVID -19, em atos eleitorais e referendários a realizar no ano de 2021.
Nos termos do nº1 do artigo 3º, «Os eleitores que, por força da pandemia da doença COVID-19, estejam em confinamento obrigatório, no respetivo domicílio ou noutro local definido ou autorizado pelas autoridades de saúde que não em estabelecimento hospitalar, podem votar antecipadamente, desde que se encontrem recenseados no concelho da morada do local de confinamento ou em concelho limítrofe».
No entanto, há uma limitação importante: para se conseguir exercer esta modalidade de voto antecipado, a medida de confinamento obrigatório deve ter sido decretada pelas autoridades competentes do Serviço Nacional de Saúde até ao décimo dia anterior ao sufrágio e por um período que inviabilize a deslocação à assembleia de voto.
Isto significa que quem estiver em isolamento profilático, impossibilitado por isso de se deslocar presencialmente para votar, pode recorrer ao voto antecipado desde que esse confinamento tenha sido decretado pela respetiva autoridade de saúde até dia 14 de janeiro, ou seja, quem for diagnosticado com COVID no período de dez dias que antecedem as eleições (de dia 14 a 24 de janeiro) não poderá votar nem antecipadamente nem no respetivo dia.
Planear uma eleição nestas condições implica ter em mente diferentes estratégias, tais sejam: o voto antecipado, horários alargados, vários dias de eleições de forma a alargar possibilidades de participação eleitoral. Não é preciso ter grande sensibilidade jurídica para perceber que o diploma aprovado pelo Parlamento coloca fortes entraves ao voto de milhares de eleitores.
De acordo com o Público, “se a média diária semanal de novos infetados no início de janeiro for semelhante à das últimas semanas - sempre acima ou por volta dos 5 mil - isso implicará que pelo menos 50 mil pessoas fiquem automaticamente impossibilitadas de votar”. Em declarações ao mesmo jornal, o porta-voz da Comissão Nacional de Eleições (CNE), João Tiago Machado, afirma ser impossível abranger toda a gente e lembra os casos de pessoas que adoecem nas vésperas das eleições e não votam.
Como salienta a politóloga Marina Costa Lobo, “em vez de se facilitar o voto está-se a montar uma enorme desmobilização para as eleições presidenciais”. Segundo o relatório ‘COVID-19, Election Governance, and Preventing Electoral Violence’, publicado pelo CIC (Center on International Cooperation), as decisões de realizar ou adiar eleições no meio de uma pandemia devem ter em consideração diferentes observações e guidelines de saúde pública relacionadas com eventos eleitorais com participação em massa, como campanhas eleitorais ou operações no dia da votação. As medidas impostas para prevenir infecções podem resultar em limitações de oportunidades de campanha, diminuição da participação dos eleitores e, consequentemente, fragilizar a legitimidade democrática.
Vários países têm inovado na forma como conduzem os processos eleitorais, sempre de acordo com as regras de saúde pública. Alguns exemplos: nos EUA o voto por correspondência foi alargado a um número grande de Estados, tendo atingido níveis recorde. Na República Checa foram organizados "drive-through" de votos, a Suíça utilizou urnas de voto móveis para que os idosos ou as pessoas em quarentena pudessem votar; a Índia estendeu o voto por correspondência; a Nova Zelândia estabeleceu um call center especial para fornecer informações aos eleitores e a República Dominicana criou assembleias de voto distanciadas umas das outras e desinfetou todos os cartões de identificação, marcadores e boletins de voto.
O CIC acrescenta que, no contexto de eleições em tempos de pandemia, é essencial a implementação de medidas especiais para votar como o voto por correio, por procuração, de forma móvel ou antecipada (em Portugal apenas este último está disponível).
Em entrevista à Visão, Marina Costa Lobo sugere que “é mais fácil alargar medidas já implementadas nos outros países – e o voto antecipado já existe em Portugal”, pelo que a resposta do governo português tem de ser rápida e eficaz. Conclui dizendo que “vivemos um momento em que, por um lado, não há campanhas políticas devido à pandemia e, por outro lado, o principal candidato à presidência ainda não apresentou a sua candidatura.”, o que poderá originar “uma situação de despolitização e descredibilização destas eleições”.
Estão reunidas todas as condições para haver uma alta taxa de abstenção. De notar que a abstenção tem vindo a aumentar de forma expressiva desde as eleições fundadoras de 1975. Em 2016, mais de metade dos eleitores inscritos não votaram nas eleições Presidenciais - a taxa de abstenção atingiu os 51,16%. Se as pessoas não podem votar quando deveriam, pode haver uma sensação de perda de voz. Uma situação de pandemia não deve implicar necessariamente a restrição do sufrágio dos cidadãos, mas, sim, uma reinvenção e adaptação do sistema às circunstâncias verdadeiramente excecionais em que se vive. O voto por correspondência pode não oferecer a segurança do voto secreto e presencial, mas seria de ponderar o alargamento do recurso a esta opção em última instância.
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