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doDireitoÀCriminologia: a nossa Cultura

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    Francisco Paredes
  • há 1 dia
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[*] Salvo indicação em contrário, todos os artigos referidos constam da Constituição da República Portuguesa de 1976.


Já muito se escreveu nestas paredes sobre a Revolução de Abril. E há-de continuar a escrever-se, enquanto a memória e a resistência forem vivas. Jean-Marie Le Clézio, certa vez, disse que «A ESCRITA É A ÚNICA FORMA PERFEITA DO TEMPO» (L’Extase Matérielle, 1999). É precisamente isso que, há já alguns anos, temos feito por aqui: escrever, escrever sem parar, como mentes fervilhantes que somos, sobre o tempo, dos outros ou do nosso. «CANTO, E CANTO O PRESENTE, E TAMBÉM O PASSADO E O FUTURO, / PORQUE O PRESENTE É TODO O PASSADO E O TODO O FUTURO» (Ode Triunfal, 1914).


Foi com esse propósito que quis revisitar «[aquilo que] muito se fez nas cinco décadas que já passaram, mas [que] muito ainda está por fazer», nas palavras da Professora Rute Teixeira Pedro a este desafio. Não o fiz, no entanto, sozinho: não por falta de engenho, mas por falta de sensibilidade para tão bem captar, por escrito, o nosso tempo. Tive a oportunidade de, no Direito e na Criminologia, e volvidos cinquenta e um (!) anos desde a Revolução de Abril, conhecer o quanto a nossa Cultura mudou e, por isso, saúdo os Professores que nesta iniciativa participaram, pois sem eles não seria o mesmo.

Sem me alongar muito mais, obrigado ao Cultural por me permitir (em princípio, uma última vez), ainda no espírito desta especial data, conhecer a nossa Cultura (pelo jogo de palavras, artigos 36.º e 37.º).


1. «O Ministro da Justiça, em 1977, apelou à «árdua empreitada de normativizarmos o nosso quotidiano». Com a Constituição de 1976, não só se procedeu à revisão do Código de Processo Civil, com vista à sua adequação ao regime democrático, como se aprovou a Lei de Organização dos Tribunais Judiciais. O que pensa sobre o nosso processo civil, desde 1976, tendo em conta o velho e o novo Código?»


A Constituição de 1976 teve um papel determinante na evolução do Código de Processo Civil (CPC) e na matéria da organização judiciária. Com efeito, era necessário adaptar as normas do CPC de 1961 aos novos valores e princípios constitucionais, em particular aquelas atinentes ao exercício dos direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição, e às normas constitucionais que, ex professo, se dedicam ao processo civil. Destaca-se o Decreto-Lei n.º368/77, de 3 de setembro, no âmbito da autorização concedida pela Lei n.º54/77, de 26 de julho: supressão da referência a províncias ultramarinas, equiparação jurídica do marido à mulher, possibilidade de juízes do sexo feminino, indiscriminação dos filhos nascidos fora do casamento, entre outros. Mas, desde logo, o legislador ordinário notou a necessidade de uma revisão mais profunda. Com a reforma de 95/96 (a mais importante, antes da aprovação do novo CPC), o legislador revelou a preocupação de reforço de princípios constitucionais, tal como o acesso ao direito e aos tribunais, através da adoção de mecanismos tendentes a conferir garantias de um processo legal.


As reformas no «período da troika» marcaram algum retrocesso, com reflexo na jurisprudência constitucional — em particular, a respeito da ação executiva. Atualmente, verificam-se tendências contraditórias. Por um lado, o CPC de 2013 reforçou os poderes do juiz (gestor do processo) e os mecanismos de tutela de direitos fundamentais (veja-se a consagração, nos artigos 878.º ss. do CPC, de um processo especial para tutela da personalidade). Por outro lado, incentiva-se o recurso a mecanismos alternativos de resolução de litígios, menos garantísticos. Na nova era digital que se nos apresenta, serão determinantes, a nosso ver, os mecanismos de tutela, inibitória e ressarcitória, de interesses difusos, assim como aqueles relacionados com a proteção de utilizadores de sistemas de inteligência artificial. Existe outro desafio muito importante: incorporar estas ferramentas, sem ferir os legítimos direitos das partes.


Professor Fernando Pereira (Direito)



2. «Com a Constituição de 1976, as crianças e os jovens adquiriram um novo estatuto: passaram a ser titulares de direitos — que se têm revelado, desde então, cada vez mais garantísticos, aos níveis da proteção, da família, da educação e da justiça. Neste quadro, qual é o papel da Delinquência Juvenil?»


O 25 de abril veio iniciar a transformação de um «Direito de Menores» num verdadeiro «Direito das Crianças e Jovens». Logo em 1978, através da revisão da Organização Tutelar de Menores, ou em 1991, através da criação das Comissões de Proteção de Menores (atuais CPCJ), assistiu-se a uma circunscrição da justiça juvenil nos princípios trazidos pela Revolução de Abril — liberdade, garantias processuais e direitos fundamentais.

A (re)abertura ao exterior levou, igualmente, à ratificação de variados instrumentos e recomendações internacionais que guiam a atuação junto de crianças e jovens segundo princípios basilares (por exemplo, superior interesse da criança, dignidade e prevenção precoce da delinquência juvenil).


Atualmente em vigor, a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo e a Lei Tutelar Educativa edificam o nosso sistema, que pela primeira vez distingue a intervenção entre crianças e jovens em perigo e jovens que cometem atos qualificados como crime, respetivamente. Assiste-se, assim, a uma intervenção que se quer como responsiva às necessidades dos jovens e que se demarca de sistemas puramente assistencialistas ou paternalistas-repressivos, típicos de épocas não muito antigas. Celebrar estas conquistas é, por isso, essencial para manter viva a memória do caminho percorrido — e, quem sabe, contrariar a tendência para a sua efemeridade.


Professora Patrícia Damas (Criminologia)



3. «O Direito português, com a Constituição de 1976, tornou-se permeável (ou, pelo menos, sensível) à comunidade jurídico-comunitário-internacional. Alargaram-se os horizontes, mas quais foram, ou quais são, os perigos que daí resulta(ra)m?»

A Constituição de 1976 reflete-se, por um lado, na configuração da própria regra de conflitos portuguesa (influência direta), e, por outro, na não aplicação da solução jusmaterial estrangeira, por força da cláusula excecional da reserva de ordem pública (influência indireta).


Diretamente, e por exemplo, as regras de conflitos reguladoras das relações familiares e sucessórias (artigos 49.º a 65.º do Código Civil) foram ou alteradas ou revogadas, porque, ao indicarem como aplicável a lei pessoal do marido ou do pai ou preverem uma lei reguladora da filiação ilegítima, resultavam desconformes ao novo texto constitucional: o artigo 36.º, ao abrigo do princípio da igualdade (artigo 13.º), consagrou a igualdade dos cônjuges no casamento, a não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento e a cooperação na orientação da vida em comum. Indiretamente, o recorte da figura da reserva de ordem pública é feito pelos novos valores constitucionais, que densificam o seu conteúdo, e os seus pressupostos e limites; a título exemplificativo, uma lei nacional estrangeira que ainda vise a distinção entre «filhos legítimos» e «filhos ilegítimos» belisca de forma real e impressiva o sentimento jurídico da comunidade (BAPTISTA MACHADO e FERRER CORREIA).


E é neste contexto que, hoje, se discute em que medida ou até que ponto é que se pode traçar uma linha vermelha entre aquilo que contende, ou não, com os valores fundamentais de um Estado: paternalismo ou defesa de um certo quadro civilizacional? Em abstrato, o repúdio da mulher, no Direito islâmico, é contrário aos nossos princípios constitucionais, por permitir a dissolução unilateral do casamento apenas pelo marido, contudo, e se a própria mulher quiser o divórcio nesses mesmos termos, com vista ao seu reconhecimento no seu país de origem? Quão longe pode ir a imposição do respeito pela igualdade perante a vontade e os interesses próprios das partes? Do mesmo passo, o nosso sistema jurídico consagra, ao lado do princípio da verdade biológica, o estabelecimento da filiação pelo consentimento, na procriação medicamente assistida; sendo assim, por que motivo não podem ser considerados outros critérios (por exemplo, a filiação socio-afetiva do Direito brasileiro)?


Atualmente, e mais do que nunca, é necessária uma ponderação do caso concreto e uma avaliação da vontade real das partes, num equilíbrio muito difícil entre o respeito pela identidade cultural do outro e o nosso quadro civilizacional. E isso é prova indelével da fragilidade da linha vermelha que se tem vindo a traçar.


Professora Helena Mota (Direito)



4. «Com a Constituição de 1976, premente foi a necessidade de adequar os códigos legislativos ao novo regime democrático. Em 1975, 1976 e 1977, o Código Civil foi sucessivamente revisto, especialmente em matéria jurídico-familiar-sucessória. Em que sentido caminhou o nosso Código Civil em matéria familiar e sucessória?»


O 25 de abril teve um impacto profundo na regulação jurídica da família com repercussões importantes também na disciplina substantiva aplicável ao fenómeno sucessório. Com a entrada em vigor da Constituição de 1976, a igualdade irrompeu na área familiar, no que se pode ver o epicentro de um abalo sísmico que atingiu a área jusfamiliar tradicional e que ditou profundas alterações ao regime jus-civilista que se lhe aplica, nomeadamente o que se encontra nos Livros IV e V do Código Civil.


Sem prejuízo do princípio geral consagrado no artigo 13.º, encontramos no texto constitucional, normas que, especificamente, consagram a igualdade entre os cônjuges (artigo 36.º, n.º2) e proíbem a discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4).


A família, enquanto grupo hierarquicamente organizado sob a direção de um chefe a quem cabia o exercício do poder marital e do poder paternal, é substituída por uma família formada por membros que se apresentam iguais, no sentido jurídico bem conhecido, que, evidentemente, não ignora a existência de diferenças relevantes. Nesse sentido, de forma expressiva, se fala comumente do fenómeno da democratização da família. Ademais, dá-se relevo à família como meio privilegiado de realização pessoal dos seus membros, a par da dimensão institucional que continua a reconhecer-se-lhe. Inaugura-se, pois, uma nova ordem jusfamiliar que se desenvolve sob a égide da igualdade e da liberdade, o que se revela em muitos pontos de regime que, desde então, foram sendo reformados.


Pense-se, a título meramente exemplificativo, na proclamação da liberdade de cada cônjuge exercer qualquer profissão ou atividade sem necessidade de consentimento do outro; na determinação da codireção da vida familiar; na possibilidade de dissolução, por divórcio, de todos os casamentos, independentemente da forma de celebração; na aceitação de formas diversas de constituição de família, nomeadamente, através da atribuição de efeitos (crescentes) à coabitação more uxorio em união de facto; no reforço da proteção sucessória do cônjuge sobrevivo ou ainda no tratamento sucessório igual dos filhos nascidos dentro e fora do casamento. Muito se fez nas cinco décadas que já passaram, mas muito ainda está por fazer.


Professora Rute Teixeira Pedro (Direito)



5. «O direito ao ambiente está programaticamente fixado no art. 66.º, n.º2 da Constituição de 1976. Sem prejuízo das incumbências do Estado, e ante a emergência deste novo bem jurídico que é o ambiente, qual é o papel da Criminologia Verde?»


A Criminologia Verde, em sentido estrito, estuda os crimes ambientais e a reação social aos mesmos. No nosso ordenamento jurídico, são exemplos de crimes ambientais os artigos 278º (Danos contra a natureza), 279º (Poluição) ou 279º-A (Actividades perigosas para o ambiente), todos do Código Penal. Repare-se que a Diretiva 2024/1203 do Parlamento Europeu e do Conselho, de abril de 2024, e que ainda terá que ser transposta para Portugal, vem pedir aos Estados-membros que persistam na proteção do ambiente através do Direito Penal, em complementaridade com o Direito Administrativo. Assim, a Criminologia Verde procura produzir conhecimento fundado na evidência científica sobre, por exemplo, as características dos ofensores e suas motivações, ou a eficácia da polícia na deteção e investigação, bem como as tendências das decisões dos tribunais nestas matérias.


Num sentido mais amplo, a Criminologia Verde olha não apenas para os ilícitos que afetam o ambiente, mas para todas as atividades humanas que criam danos ao ambiente, a habitats específicos, a uma grande variedade de espécies não-humanas e, claro, aos seres humanos também, particularmente às pessoas em situação de maior vulnerabilidade, como crianças, idosos ou populações rurais e costeiras em situação de mais direta dependência económica de recursos naturais finitos. Neste sentido, procura ter uma abordagem mais crítica sobre o modo como o excesso de consumo e de produção, promovidos pelas sociedades capitalistas atuais, no contexto de histórias coloniais de exploração ambiental, causam amplos danos e progressiva depleção de recursos naturais e deterioração, contribuindo mesmo para as alterações climáticas.


A Criminologia Verde pode ajudar a perceber de que modo o sistema de justiça reage aos crimes ambientais, eventualmente em função da (falta de) gravidade atribuída; pode determinar e avaliar a eficácia de mecanismos para prevenir crimes, como seja a compra e venda de espécies protegidas; pode ajudar a repensar a vítima, assumindo-se que não apenas os seres humanos podem sofrer mas que serão vítimas em sentido amplo também as espécies de fauna e flora ou ecossistemas afectados pelos crimes e danos ambientais; e pode ajudar a repensar uma justiça ambiental menos antropocêntrica e mais justa para com as comunidades afetadas pelos riscos e danos ambientais. Finalmente, pode ajudar a entender de que modo os crimes/danos ambientais se relacionam com outros problemas sociais, como sejam as migrações forçadas por populações que perdem acesso a recursos naturais essenciais para a sua sobrevivência económica, ou se conectam com outras formas de crime, como seja o crime organizado no tratamento ilegal de resíduos, as violências causadas por conflitos no acesso a recursos naturais escassos, ou a corrupção e fraudes económicas que facilitam o tráfico de vida selvagem, entre outros.


Professora Rita Faria (Criminologia)



6. «Durante o Estado Novo e na vigência da Constituição de 1933, a economia portuguesa adotou um modelo corporativista e protecionista. Com o 25 de abril e o novo texto constitucional, previu-se, no art. 61.º, n.º1 da Constituição de 1976, o direito à livre iniciativa económica. Quais foram os principais desafios e/ou objetivos, no âmbito do Direito Comercial e do Direito Societário, destas novas motivações?»


O Estado Novo foi marcado por um modelo protecionista e corporativista. Desse caráter resultavam, por exemplo, as regras de controlo à importação de produtos que fizeram com que produtos como a Coca-Cola (devido à potencial concorrência que fariam ao vinho e a outros produtos nacionais) tenham apenas conseguido entrar em circulação em Portugal depois do 25 de abril.


O 25 de abril deu início a um processo onde se foi (rectius, onde se vai), paulatinamente, encontrando um equilíbrio entre o papel regulatório e interventivo do Estado (por exemplo, para proteção de interesses da comunidade em geral, dos trabalhadores, dos consumidores ou do meio ambiente) e a aceitação dos princípios associados a uma economia de mercado, nomeadamente a promoção da concorrência e a liberdade empresarial. No Direito societário, esta evolução passou pela modernização dos diplomas legais em vigor, visando fomentar o empreendedorismo — este havia ficado entorpecido pelos limites impostos à iniciativa privada pelo Estado Novo. Igualmente relevante foi, num segundo momento, a adesão à Comunidade Europeia, a entrada no mercado único e a receção dos seus normativos.


Nunca é demais recordar, contudo, que este é um processo de evolução ainda em curso e que também caberá aos juristas zelar por ele.


Professor Rodrigo Rocha Andrade (Direito)

 



Muito se escreveu, mas muito ainda está por escrever. Desde a Revolução de Abril, a forma como pensamos e aplicamos o Direito, e a forma como estudamos a Criminologia sofreram profundas transformações, à luz dos novos valores constitucionais. «FITA, COM OLHAR ESFÍNGICO E FATAL, / O OCIDENTE, FUTURO DO PASSADO. / O ROSTO COM QUE FITA É PORTUGAL» (O dos Castelos in Mensagem, 1934).


Hoje, a 30 de abril, encerro formalmente as comemorações desta data tão especial e o Tribuna, com o tema «Fronteiras», lança a sua 46.ª Edição Final. Atrevo-me a dizer que «ao longo dos tempos, definimos os nossos extremos [...]. E questionar o poder que nos foi dado, e o que fizemos com ele, pode arredar-nos para os confins da nossa existência. Até lá, por cima de limites, faz-se história» (Na fronteira, vive(m)-se a(s) cultura(s) in 46.ª Edição Final, 2025). Por cima de limites, fez-se a Revolução de Abril.


Francisco Paredes

Departamento Cultural

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