Estudar Direito pode ser uma jornada desafiante para muitos discentes. Se até para os estudantes portugueses esta trajetória é complicada, para os estudantes estrangeiros a experiência académica está longe de ir ‘de vento em popa.’
Diferentemente dos estudantes que apenas se inserem nos programas de mobilidade de intercâmbio no espaço eurocomunitário, os alunos internacionais que, por definição, não têm cidadania portuguesa nem de um Estado-Membro da União Europeia (UE), além de terem de lidar com a vida académica e as saudades da família e dos amigos que estão longe, também necessitam de passar por vários processos burocráticos pesados e morosos, como o pedido de visto, concessão e renovação do Título de Residência, solicitação do Número de Contribuinte, de Segurança Social, do Número de Utente, entre outros.
Com a falta de apoio estruturado e de sensibilidade cultural que podem ser observados no seio da nossa faculdade, muitos alunos internacionais têm em comum o facto de se sentirem marginalizados e quase ‘invisíveis’. O Departamento do Mundo Universitário teve a honra de poder contactar com vários alunos internacionais da Casa Amarela dos Bragas de diferentes anos, cursos e origens, que partilharam connosco a sua experiência pessoal como estudantes estrangeiros fora da UE na Faculdade de Direito da Universidade do Porto (FDUP).
A Conversa Fiada de Internacionalização
Em comparação com outras instituições de ensino superior públicas, no âmbito de curso de Direito, a FDUP é uma das faculdades menos internacionalizadas, tendo apenas 5% de estudantes internacionais entre todos os alunos matriculados, ao passo que a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, têm, respetivamente, 13% e 21%.
Embora a faculdade tenha a intenção de promover a internacionalização e o programa de mobilidade, surpreendentemente os serviços de acolhimento e integração liderados pela Universidade do Porto, não se destinam aos alunos internacionais que vêm de fora da UE e farão o curso completo na faculdade. É de notar que, até este ano letivo, ingressaram 64 estudantes internacionais em ambas as licenciaturas da FDUP (Direito e Criminologia), contudo ainda não existe um núcleo específico para a representação destes estudantes na comunidade estudantil da faculdade, nem uma plataforma ou canal de comunicação entre eles.
Além disso, o concurso especial para estudantes internacionais é bastante competitivo. A título de exemplo, no presente ano letivo (2023/2024), candidataram-se 68 estudantes internacionais, sendo que apenas oito destes foram colocados, em ambas as fases do Concurso Especial de Estudante Internacional da FDUP para o curso de Licenciatura em Direito. Note-se que estes estudantes têm de assumir o pagamento de uma propina extraordinariamente elevada cujo valor oscila entre três a seis vezes mais que o valor de uma propina de um estudante nacional, dependendo do passaporte que possui.
“Somos uma parte já significativa da universidade, ressaltando que as iniciativas e incentivos resultaram à receção de estudantes internacionais e, ao mesmo tempo, quando aqui chegamos somos quase que esquecidos”, confessou Isabel Sumihara, estudante nipo-brasileira do 1º ano do curso de Direito, ao Mundo Universitário.
O Desafio de Babel
Não obstante o principal motivo que leva a grande maioria dos alunos internacionais a optarem por Portugal para estudar Direito estar relacionado com a língua portuguesa e a proximidade entre sistemas jurídicos resultante da história colonial, curiosamente, constata-se que muitos destes alunos não falam português como língua materna. De facto, em mais de metade dos países lusófonos, o português não é uma língua maioritária, mas somente língua oficial. O desconhecimento da língua portuguesa, da linguagem e até da velocidade de fala, podem contribuir como entraves à integração.
“A minha dificuldade é a língua portuguesa. Mesmo que português seja a minha língua oficial, mas não falo diariamente no meu país”, referiu Thómas Miranda, aluno timorense do 4º do curso de Direito. “Nos exames da faculdade, às vezes não compreendia o sentido das perguntas ou entendia mal as perguntas e respondia tudo errado. Até as vezes me pergunto será que sou mais burro da faculdade? Mas na verdade não. A questão é a língua”, acrescentou este estudante austronésio e bolseiro de estudo, que fala fluentemente a língua fataluco, tétum e bahasa, além de português.
Um estudante de Macau, que preferiu manter a sua identidade anónima, revelou que encontrou algumas barreiras linguísticas, apenas conseguindo capturar informações fragmentadas e descontextualizadas das aulas. A região administrativa especial chinesa de que este aluno asiático-oriental é oriundo, uma vez colonizada e administrada por Portugal, só tem 2,3% de população que domina o português, sendo que cantonês, mandarim, e inglês são as línguas mais faladas no território que fica ao lado de Hong Kong.
Outro caso mais extremo ocorreu com um aluno ucraniano, Mykyta Balaiants, que foi colocado no curso de Direito da FDUP no ano passado sob o contexto de desdobramentos da guerra na Ucrânia. No entanto, este aluno, que se encontra ao abrigo do estatuto de estudante em situação de emergência por razões humanitárias, não fala português. Como todas as aulas são lecionadas exclusivamente em português, criou-se uma ‘missão impossível’ no percurso de aprendizagem desse estudante eslávico, que não conseguiu ser aprovado em nenhuma cadeira.
É-nos contada também uma situação intrigante, testemunhada pela aluna de 22 anos, do Brasil, Isabel Sumihara, “a primeiro momento eu tive muita dificuldade em entender o português daqui, sinto que me prejudicava muito nas aulas”, acrescentando ainda que, “para mim, que sou brasileira, o jeito dos portugueses se confundia muito frequentemente com uma certa grosseria. Teve situações em que não ser contextualizada com a realidade daqui fez com que alguns portugueses tentassem me diminuir, tanto em prestações de serviços do quotidiano quanto outros diálogos com pessoas até a minha idade”.
Amigável, mas não Amizade
Muitos alunos internacionais admitem que os portugueses são um povo caloroso, no entanto, este aconchego não implica necessariamente a facilidade de estabelecer um laço de amizade com profundidade.
Para Dennis Félix, aluno angolano de 2º ano do curso de Direito, a adaptação é muito difícil. “Acho que são [os portugueses] mais fechados em relação a mim, não falo no sentido de eles serem tímidos, mas talvez sejam mais reservados. E cria-se muitos grupos entre eles, e, normalmente, estes grupos são grupos fechados. Também acho que eles são muito desconfiados. Posso dizer que ainda não fiz nenhuma amizade profunda, (...), eu sinto que aqui não dão muita importância, não abrindo todos, mas algumas pessoas”, apontou o estudante africano.
Thómas Miranda partilha do mesmo ponto de vista e contou francamente a sua experiência, “(...) os portugueses são mais individualistas, até posso dizer que muitos são superficiais, porque eles cumprimentam e conversam comigo na faculdade, mas depois saindo na rua, como se fosse nunca tivéssemos nos conhecido. Não é tão fácil fazer amizade profunda em Portugal. Acho que é por causa do individualismo de cada pessoa ou por causa da cultura”. Ainda que o finalista timorense já uma vez tenha tido participação na Praxe e Tuna Académica no primeiro ano, resumiu ainda que esta tentativa de integração “não correu muito bem” e “não deu certo”.
Normalmente, no início da faculdade, ninguém se conhece, e será essa a oportunidade que se tem para conhecer o maior número de pessoas e optar por aquelas com que mais nos identificamos. Porém, muitas vezes, os alunos internacionais vão sendo obrigados a atrasar o seu início da faculdade, devido aos diversos motivos de força maior, como o processo demorado de obtenção do visto de longa duração, a alteração de voo transcontinental ou medidas relativas às viagens internacionais no contexto de Covid-19. Por conseguinte, estes contratempos podem dificultar a ingressão nos ‘grupos estabelecidos’ . O caso de Emily Castro, estudante brasileira do 3º ano de Direito, que sentiu dificuldades em se introduzir nos “grupinhos formados”, acabando por não ter uma rede de apoio. Ainda que se tenha tentado integrar com alunos de intercâmbio, eles ficaram um semestre e partiram rapidamente.
O Preconceito Permanece Ainda
No que diz respeito a fenómenos de xenofobia e racismo em Portugal, a maioria dos alunos internacionais considera que o povo português em geral é mais inclusivo e tolerante, ainda que existam esporadicamente tratamentos discriminatórios e de microagressão.
“Acredito que os portugueses são intrinsecamente xenófobos”, comentou Mykyta Balaiants, adiantando que “especialmente as gerações mais velhas”. Relembra-se o caso da morte de um cidadão ucraniano que resultou de uma situação de tortura evidente nas instalações do extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, no aeroporto de Lisboa, em 2020.
“Houve uma situação ou outra que me chateou bastante, quando a questão de xenofobia e preconceito racial, mas isso não transmite a opinião da maioria do povo português. Tive muitas dificuldades em fazer amizades com pessoas portuguesas, até hoje ainda sinto um pouco”, revelou Emily Castro.
Da mesma forma, Isabel Sumihara, estudante brasileira, revelou sentir-se discriminada dada a sua ascendência japonesa e a sua aparência física, “[isso] na altura do Covid-19 me trouxe algumas situações de xenofobia que foram quase que traumáticas. Entendo que o sentimento anti-amarelo foi algo a nível mundial, mas o meu primeiro contacto com esse tipo de situação foi ainda em Portugal”. Além disso, uma estudante latino-americana acrescentou, “acredito que uma parte apenas tolere ou não se importe com estrangeiros e outra seja absolutamente contra”.
A Valorização da Diversidade Cultural
Estudar no estrangeiro é uma experiência única e transformadora, uma vez que não só oferece a oportunidade de conhecer melhor a realidade de outra parte do mundo, mas também - e mais importante ainda - espoleta um processo de autorreflexão sobre a nossa própria cultura e identidade. Como nem todas as pessoas têm acesso nem recursos para estudar noutro país, os estudantes internacionais podem tornar-se pioneiros na promoção de um ambiente universitário mais diversificado, enriquecendo a dinâmica de aprendizagem com perspetivas diferentes. Esta é uma ótima maneira de aprender as experiências de outros indivíduos e desenvolver a nossa sensibilidade à pluralidade cultural.
Ka Iao Lee, estudante macaense do 3º ano do curso de Direito, salientou que “a nossa cultura também nos compõe enquanto pessoa, e, por isso, existe e existirá sempre diferença, como por exemplo na nossa história, na música que já ouvimos, livros que leram, etc., mas isto não significa que não queremos participar na cultura portuguesa. Muitos alunos internacionais também estão a fazer grande esforço para integrar”.
O Direito que estudamos prende-se sempre com a necessidade de assegurar a convivência numa comunidade humana. Estrangeiro (peregrinus), como a figura uma vez operada à margem da sociedade e depois consagrada no Direito Romano, representa uma relação de inclusão ou tolerância num mundo centrado nos seus cidadãos. É de extrema relevância, igualmente, incluir estes estudantes estrangeiros, já que pode levar-nos a conhecer outras culturas e viver a multiculturalidade, sendo a maneira ideal de ter uma vida intelectual, afetiva, moral e espiritual mais rica.
Dinis Chan
Departamento Mundo Universitário
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