Quo vadis?
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
(…)
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
Luís Vaz de Camões, Lírica.
Pese embora a pertinência que assumiria tal recensão, não caiamos no imediatismo de antever esta como uma reflexão crítica acerca do esquecimento ou aparente despeito pela obra camoniana, a que muitos, não raras e, talvez, não ainda suficientes vezes, vêm aludindo; apropriemo-nos, antes, da dimensão sociológica nestes versos patente para compreender, a partir deles, o quadro em que se configura socio-politicamente a sociedade portuguesa e, por conseguinte, o momento colossal de que nos avizinhamos.
No dia 10 de março próximo, o país é chamado a fazer aquilo por que tem demonstrado, progressivamente, maior aversão: votar, na sequência de uma quase novela queirosiana de acontecimentos jurídicos, políticos, meramente mediáticos, quiçá inconstitucionais - uma multitude de conceitualizações cuja referência, ao momento, não apraz.
Como é já hábito, erguem-se, a pouco e pouco, mais ou menos frenéticas bandeiras, mais ou menos ecológicos materiais de escrita, promessas vãs, tautologias de arremesso como munição para debate, enquanto se aviva, nas veias do Povo, uma divisão setorial, quase clubística diga-se, que breve se esbate.
Todavia, apesar do até agora aludido ceteris paribus no modus operandi propagandístico, o próprio quadro político-eleitoral “não se muda já como soía”; e exemplo magno disso é, precisamente, o paradigma do Partido Socialista, consolidado neste século como a base de apoio ao poder político de caráter institucional mais imbricada na sociedade portuguesa; virtude, ou resultado circunstancial, de que, aliás, como veneno, vai padecendo.
Saído de uma disputa interna tradicionalmente não fratricida; ao contrário do que, putativamente, se esperasse em casos análogos, o partido que mais tempo governou durante o século XXI, em Portugal, assume-se perante um paradoxo: abandona um governo maioritário num quadro de plena instabilidade, o que lhe recorta, desde logo, uma situação díspar do seu statu quo ante: não um quadro de conquista, mas de conservação, ou manutenção do exercício de poder.
Bem visível é tal imperativo de ação que o próprio “jovem turco”, Pedro Nuno Santos, que a comunicação social, num ato de revivalismo distópico, relembrou capaz de incitar o tremor nas pernas dos banqueiros alemães, o pré-concebido perigoso radical de esquerda, temido e adorado, é ilustrado, a 1 mês do ato sufragista a que submete, como um neutro filho sistema - alguém a quem vestiram um fato de estadista, cuja solidez lhe confrange os movimentos.
Poderemos aqui, como contraponto, evocar a questão da governabilidade, como da responsabilidade a ela inerente- já empregue pelo secretário-geral socialista na sua estreia da época de debates televisivos com Rui Rocha (IL).
A par desta aparente transfiguração, tida como inverso da revelação messiânica, as corporações; esse sentimento classista enxertado no seio da portugalidade pelo Estado Novo, e que, verdadeiramente, nunca se extinguiu, apenas assumindo mutações nos seus recortes sociais, económicos e mesmo políticos. Parece mesmo ressurgido em massa tal afloramento, ameaçando, afinal, concretizar a máxima cantada por Ary dos Santos “dai ao povo o que é do povo” (in As portas que Abril abriu) com a virtude de, após um interregno quase coevo à nacionalidade, de alheamento político (pontualmente rompido), se configurarem como instrumentos de rutura com a estrutura governativa, arrogando-se meios de instabilização à qual vimos assistindo.
É nesta miscelânea de efervescências, sintonizadas com um paradigma internacional de tensão e recessão económica, que o Partido Socialista procura, não acorrer a uma vitória, não conquistar eleitorado; acima de tudo, não o perder, retê-lo, não sair derrotado do ato eleitoral;
Já experimentados foram, pelos dois quadrantes políticos dominantes, os vícios de maiorias absolutas; o desaire delas tendente a brotar; procura-se, hoje, a partir do largo do Rato, conter as chagas, elencando mais do que o que se possa executar, o perfeito (não na dimensão qualificativa, antes como realidade consumada), as realizações dos últimos anos de governo socialista, sob o leme de António Costa; aparentemente, de boa memória para a faixa etária superior a 65 anos, onde o partido domina hegemonicamente, sobretudo desde o despotismo económico da Troika, de que foram, a par de alguns outros setores sociais, a maior vítima, mas de repulsa entre os mais jovens - não cabendo no discurso imediatista, e sobretudo por representarem um espelho do que tem sido Portugal nos seus enleios e que, por regra, estes jovens, procuram refutar.
À atração pelo discurso comprimido, pela fluidez a idealismos que vão pautando os meios digitais, despertando a população até aos 35 anos, há, entre a classe económica média, a mágoa com o PS, de António Costa, do não benefício da redistribuição encetada, bem ou mal, pelos seus mandatos e políticas, boas ou menos boas, de coesão social; justifica-se a comunicação socialista com a lógica de construção basilar, almejando atingir a elevação de um teto; aguarda-se a sua concretização e a descompressão da classe média do esmagamento ascendente de quem, ainda que não idilicamente, vá vivendo algo melhor (aponta, aqui, em debate, o PS, para medidas como creches gratuitas, passes sociais de transportes públicos, aumentos do salário mínimo, entre outras).
Parece, ainda, configurar-se como novo alvo, do assumido recorrentemente social democrata Pedro Nuno Santos, o interior do país; a região sucessivamente adiada no seu progresso e integração no discurso político e que tem sido resgatada em projetos de investimento industrial ou de atenuação de taxas de portagem rodoviária, visando realizar um êxodo urbano, há muito prometido, como nunca, agora, urgente, mais não fosse pela crise de habitação nas grandes cidades e, a que os Socialistas respondem com a memória da sua ação primordial nas primeiras políticas de habitação do Portugal democrático, erradicando os típicos bairros de lata das 2 urbes do país, ou com a necessidade de habitação social que, dizem, ter já encetado, cabendo-lhes, agora, robustecer a sua máquina operatória.
E assim, por entre acusações de apropriação da máquina estadual para fins menos lícitos a que se vem fazendo referência desde os primórdios da Operação Marquês - como marco para o surgimento do conhecido em países como Itália (operação mãos limpas), do justicialismo no sistema português - um motor de instabilidade, paradoxalmente contrário à conquista, em 30 de janeiro de 2022, de um quadro absolutamente maioritário, a grandes expectativas (por muitos tidas como defraudadas) inerentes, alegações de imperiosa rotatividade partidária, ou simples desejos de disrupção que vai serpenteando o ímpeto de pré-campanha socialista, enquanto aguardam, os fiéis à social democracia em Portugal, pela emoção, o arrojo, a revelação, enquanto amantes do verbo “fazer” (como se configurou Pedro Nuno Santos, à rubrica “em 120 segundos” TVI).
Bruno Martins
Departamento Sociedade
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