No dia 8 de novembro visitei, pela primeira vez, o estabelecimento prisional feminino de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos.
A visita decorreu no âmbito do projeto “CRP em 30 minutos”, um projeto organizado pela Associação de Estudantes da Faculdade de Direito da Universidade do Porto em parceria com várias escolas do distrito do Porto. Neste projeto, estudantes voluntários da FDUP deslocam-se às escolas para dar uma pequena palestra de 30 minutos sobre a Constituição Portuguesa, onde fazem referência à sua história, conteúdo e organização . Ora, no âmbito do projeto escolar elaborado pela Escola Secundária João Gonçalves Zarco e pelo Agrupamento de Escolas Eng. Fernando Pinto de Oliveira, o projeto abrange uma sessão no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, tendo-me voluntariado para a mesma.
Poucas foram as pessoas que não ficaram surpreendidas quando contei que ia visitar um estabelecimento prisional. Todos temos uma ideia pré-concebida da aparência do mesmo. Imaginamos um “castelo” enorme com muros altos, vedações, câmaras, guardas sérios,celas, reclusos tatuados de uniforme, etc.
Eu próprio tinha concebido esta imagem nos meus pensamentos. Foi a minha curiosidade para ver esta realidade com os meus próprios olhos, de falar com as pessoas que lá vivem e trabalham, de aprender um pouco sobre o seu dia-a-dia, que me motivou a fazer a inscrição. Estava nervoso, claro, mas havia um entusiasmo mais forte: o entusiasmo de fazer algo inédito na minha vida.
A partir do momento em que entrei em Santa Cruz do Bispo, todas essas ideias desapareceram. O edifício não tinha a enormidade imaginada, nem era de todo aterrorizante. O espaço ao ar livre, o jardim, as paredes pintadas de amarelo claro, pareciam querer combater um sentimento de detenção, de enclausuramento, e ser, em oposição, acolhedor e agradável. Nas palavras do Dr. Paulo, “se nos abstrairmos das grades da vedação à volta, o sítio não é muito diferente de uma escola”.
Antes de entrar no estabelecimento em si, tivemos de passar por uma entrada, onde deixamos os nossos pertences que não seriam necessários para a formação (telemóvel, carteira…). Os guardas (e “as” guardas, que também lá estavam a desmistificar outro preconceito) eram todos muito simpáticos e pacientes, tendo-me explicado todo o procedimento.
Depois de percorrer o pátio, entramos dentro das salas de aula, onde a analogia a uma escola fez ainda mais sentido, pois todo o edifício tinha sido construído e decorado como uma. Havia salas para cada turma, uma sala de professores, uma sala de informática. Penduradas juntos às salas estavam quadros com fotos de sítios da prisão com uma importância especial para cada aluna (os aviões a passar, que despertavam a saudade; a entrada do estabelecimento e o sentimento de liberdade…), junto de uma mensagem escrita por cada uma. Fiquei estupefato com todo este ambiente, e por uns momentos esqueci-me de onde me encontrava.
Foi aqui que fui apresentado a duas docentes da Escola Secundária da Zarco, que me explicaram um pouco mais sobre o conteúdo do projeto. Uma vez que muitas das reclusas que chegam a Santa Cruz do Bispo não têm o secundário feito, o objetivo é utilizar o tempo que têm enquanto cumprem a pena para poderem completá-lo e sair de lá com um diploma. Deste modo, as reclusas que se inscrevem são divididas em turmas, tendo um horário e aulas durante parte do seu dia. Isto garante o exercício do direito à Educação Básica à população reclusa, reforça condições de combate ao analfabetismo, desperta necessidades e expectativas das alunas em relação ao seu futuro e desenvolve a consciência de cidadania.
Depois de me indicarem uma sala, comecei a preparar a minha apresentação com a ajuda dos professores. Com o tempo, alunas de todas as idades foram entrando na sala e sentando-se nos seus lugares. E não podia deixar de admirar a relação entre elas, e entre elas e os professores. Estava perante uma verdadeira família (palavra utilizada por uma das professoras). Com o convívio e com o tempo, desenvolveram uma proximidade e criaram um verdadeiro espírito de união e amizade, verdadeiramente admirável. Senti desde o primeiro momento uma conexão com aquela turma. Mais do que reclusas, estava perante pessoas, seres humanos, que foram ali voluntariamente para aprender. O meu entusiasmo só aumentou, mas, mais do que isso, senti-me confortável e à vontade com elas.
A apresentação correu muito bem. O público estava interessado e atento, fazendo apontamentos ao longo do tempo. As perguntas, os comentários, as intervenções dos professores, tudo isso fez com que houvesse uma maior interação entre todos, assemelhando-se a uma conversa fluida plurilateral, e não a uma mera apresentação unilateral, onde eu falava e todos ouviam.
Foi um momento de partilha extraordinário, onde todos (inclusive eu) saímos de lá a aprender algo novo. Senti-me verdadeiramente grato pela oportunidade, e acredito que não poderia ter tido uma 1º sessão tão boa noutro lugar. Apesar de ter demorado muito mais tempo do que o previsto, não saí de lá cansado, mas contente pelas pessoas que conheci e pela ideia de que, de alguma forma, proporcionei uma experiência diferente do habitual e que tinha tido um pequeno impacto nas suas vidas.
Dar uma aula em Santa Cruz do Bispo “alargou os meus horizontes”. Quando pensamos num recluso, pensamos em todos os crimes que a pessoa pode ter cometido: aos nossos olhos, toda a sua identidade se baseia no crime. Mas um recluso é uma pessoa como outra qualquer. Simplesmente, e como disse uma das alunas do programa que tive a oportunidade de conhecer, são pessoas que não cumpriram com os seus deveres previstos na Constituição.
É o próprio Código Penal que, no seu art. 40º, nº1, estipula que a aplicação de penas visa a “proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Ora, não há como negar a eficácia do papel da escola para esta reintegração. A educação é um direito que assegura a condição de ser humano, pois, é a partir dela que se constrói um laço com a sociedade. Trata-se de um direito individual, a ser garantido plenamente. Se defendemos a educação como forma de apoiar a diversidade e de combate às desigualdades sociais, então não há como não defender a educação a favor dos excluídos e marginalizados pela sociedade, possibilitando (e nunca impondo) a construção de novos conhecimentos e uma 2º oportunidade na vida.
Para além disso, uma prisão deve ser um espaço que, embora restrinja a liberdade das pessoas e as submeta a regras rígidas, de modo a que, através da educação e trabalho, seja possível reintegrá-las na sociedade, promover o convívio social e o desenvolvimento de relações pessoais, assim como um sentimento de respeito e apoio.
Uma última mensagem a todas as alunas que assistiram à minha apresentação: queria agradecer pela forma como me receberam, e por toda a atenção e boa disposição durante a apresentação. Foi um gosto poder estar e falar convosco. No curto período de tempo que tivemos juntos, posso dizer que todas vocês são pessoas incríveis, e que merecem que tudo de bom vos aconteça. Fizeram de mim uma pessoa melhor, e espero que os nossos caminhos se cruzem de novo.
Queria também agradecer ao professor Paulo Silva, responsável pela minha sessão, assim como à professora Cristina Azeredo e Raquel Ribeiro (acima referidas), por toda a ajuda e acompanhamento que me deram ao longo do dia.
Francisco Simões
Mundo Universitário
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