Alex Couto nasceu em 1991, no Viso, em Setúbal. Vive e trabalha em Lisboa, sendo licenciado em Estudos Artísticos pela Universidade Aberta e pós-graduado em Artes da Escrita pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Refere que gostava de reencarnar num golfinho, idealmente num que desse sorte às pessoas sempre que fosse avistado. Nesta entrevista, fala-nos sobre o seu percurso enquanto escritor e copywriter, não esquecendo a importância do local que o viu crescer.
Viso, Setúbal. Qual o significado deste local para o Alexandre do presente e para o seu “eu” adolescente?
Para o Alexandre do presente é uma espécie de base, de sítio, onde, por mais que não volte, tenho sempre razões para voltar. É um local muito associado a vivências que tive que não foram as mais memoráveis pela positiva. Hoje em dia, é sobretudo um lugar de contrastes. A vida que eu tenho em Lisboa e que este percurso em várias áreas me tem trazido, sobretudo na indústria da comunicação e na literatura, é um profundo yin-yang de tranquilidade e conflito. Durante muito tempo, vi o Bairro do Viso como um sítio absolutamente normal para viver, porque era a minha realidade e porque não conhecia nenhuma outra.
O Alexandre de hoje olha e pensa “aquele bairro de onde eu quis fugir durante tantos anos e que me atormentava, que me causava terror e ansiedade em relação ao que seria a minha vida se continuasse lá, é hoje um sítio em que havia sinceridade e proximidade entre mim e os meus vizinhos, que é completamente diferente no cinismo lisboeta, em que as pessoas nunca dizem o que pensam”
Tenho muito orgulho em ser do Bairro do Viso, porque me deu um conjunto de ferramentas que me ajudam a viver a vida atual. Durante muito tempo achei que o Viso apenas me tinha equipado para ser uma pessoa conflituosa e que não deixava que os outros se metessem com ele, quando, na verdade, acabou por me tornar uma pessoa mais diplomática, capaz de ouvir interesses distintos em simultâneo e tentar mediar as coisas.
Eu nunca gostei de desavenças físicas, mas, por ser do Bairro do Viso, era praticamente uma obrigação enquanto homem heterossexual. Aliás, a grande maioria das vezes que as tive foi por acusações de homossexualidade. São coisas que hoje em dia eu lido bem. Ali era importante cada um defender o seu ponto de vista. Há esse contraste entre violência e paz, do que eu via do Bairro do Viso antes e agora.
Refere ter ganho uma certa sensibilidade para a classe social e símbolos de status no Bairro do Viso, prestando-lhe um grande tributo com o seu mais recente livro, Sinais de Fumo. O que o motivou a homenagear o bairro que o viu crescer?
Relativamente aos símbolos de status, é importante referir que, ao trabalhar em publicidade, vivo uma realidade urbana e social completamente diferente daquela que vivi no Bairro do Viso. Por exemplo, na minha indústria, as pessoas terem produtos da Apple é quase um status mínimo para falarmos a mesma linguagem.
Quando eu tive o meu primeiro iPhone 4s, no meu primeiro emprego, num ano no qual ainda ia e vinha do Bairro do Viso para Lisboa, eu era rico aos olhos dos meus amigos do bairro. Para eles, a perceção de status social era muito diferente da minha. Eu gosto muito de carros, enquanto objeto estético, mas nunca quis ser aquele rapaz que anda a 180 km/h e vive cenas de fugir de carro em alta velocidade, mas, no bairro, ter um modelo de carro absurdamente chunga era algo muito importante.
Até me lembro de colocar no meu romance “Sinais de Fumo” o “Honda Civic Del Sol" no início do 3º ato, para fazer ver às pessoas que aquele carro, que até consideramos um bocado pataqueiro, era o carro que no Bairro do Viso levava as pessoas a classificarem-se como verdadeiros “gangsters”. Eu fui casado durante 10 anos com uma fotógrafa e apaixonei-me, como considero ser necessário, pelo facto de ela ser boa pessoa, em conjugação com o seu talento e a sua intuição artística, mas para os meus amigos em Setúbal interessava “se ela era boazona”. As argolas de ouro, as tatuagens e a roupa da Nike são coisas que ficaram na minha cabeça como “cool” e que não passam.
Eu tentei com o romance puxar por essa sensibilidade e por esses símbolos de status, porque era muito importante que o livro fosse contado por alguém que tivesse saboreado aquele território, não apenas um devaneio, uma tentativa de escrita sobre uma realidade que está na moda (acho estranho as pessoas na escrita aproximarem-se de temas que lhes dizem nada ou muito pouco).
Quanto à segunda parte da pergunta, a discrepância entre a forma como a minha vida parecia que ia correr quando comparada com a forma como a vida de alguns amigos que ainda mantenho estava a correr e o desejo de garantir que conseguia dizer às pessoas que existem outras com muito talento em bairros um bocado inóspitos.
Numa entrevista recente, disse que a autodeterminação dos Homens é um conceito muito lindo, mas, quando falamos em pobreza, esse conceito tende a não ser tão desabrochante como poderia ser. No bairro vi pessoas a serem encostadas a vidas no setor operário, nomeadamente à pesca, e vi pessoas com capacidades a não conseguir dar uso a essas capacidades. Eu não recomendo a ninguém escrever um livro com a intenção de homenagear os velhos amigos, mas, no meu caso, achei que era importante falar sobre esse assunto, de forma a garantir que alguém está a olhar para essas pessoas. Ainda nesse sentido, eu faço muito voluntariado em bairros problemáticos, porque não quero perder o contacto com pessoas que podem beneficiar da voz de uma pessoa que diz para continuarem e não desistirem.
Eu fui uma dessas pessoas e existiram outros à minha volta que perderam tempo para me incentivar a escrever e a perseguir este percurso, como a minha professora de português e o meu professor de história.
Escreveu o livro Nova Lisboa, dedicando-o à sua senhoria, que lhe aumentou a renda para que a sua filha pudesse seguir, curiosamente, uma carreira enquanto escritora. Colou vários posters na cidade “onde o teu bitoque é uma tosta de abacate” e “onde o teu vizinho do lado te diz bonjour”. Como encara este processo de gentrificação, cada vez mais notório, nas cidades portuguesas?
Eu acho que fazia muita falta alguma modernização da paisagem e das fachadas. A Lisboa, quando eu me mudei para cá, em que só havia restaurantes de hambúrgueres e todos os dias pensava que tinha de abrir um restaurante coreano para conseguir comer um bimbimbap, porque não havia, também era um bocado deprimente.
Acho que, no fundo, há uma espécie de alinhamento entre capitais. Quando falo em capitais, estou a falar de Lisboa e do Porto, que eu acho que, apesar de haver esta rivalidade de uma ser capital ou não, são as duas capitais em simultâneo, ou pelo menos são duas cidades profundamente simbólicas e onde a gentrificação se sente com muita força. A gentrificação começou a chegar à minha cidade natal, Setúbal, também agora.
Eu acho que tem de haver um papel político que permita que haja um progresso autónomo das cidades, ao mesmo tempo que isso não venha à custa da população, de um esforço gigantesco para suportar o custo de vida que a cidade exige.
Em Lisboa, o que vi foi um crescimento com tanta força que as pessoas eram literalmente cuspidas para fora da cidade. Não foi esse o meu caso, porque era já um menino privilegiado, com ordenado publicitário. Eu fui para Algés, saí de Lisboa, mas podia ter ficado pelo preço de renda que tinha em Algés. O que me custou foi perceber que, como eu fui para perto e continuava a ter um emprego, houve gente que começou a ir para longe e não era para fazer esta travessia de ir e vir para a cidade. Isso fez-me alguma confusão, perceber que a cidade está disposta a expulsar aquilo que é mais valioso para ela, o seu capital humano.
Por outro lado, sinto que olho com a minha realidade do Bairro do Viso em que certas pessoas não estavam a ter a atenção que mereciam, ou não encontravam forma de estar à altura dos seus valores. Lisboa também teve um efeito parecido, para as pessoas que estavam na cidade a dar o seu melhor e queriam fazer parte do seu microuniverso, as coisas começam a tornar-se pequenas. Vejo muitas cidades assim, parece uma algo enorme, mas depois começas a trabalhar na comunicação e percebes que somos 1000, e em 3 anos conheces metade. Pensa-se que a literatura é um mundo enorme e são 3 editoras que têm 50 chancelas.
Conhecendo as pessoas, percebi que havia um quase bullying financeiro para com elas e, desde o tempo que escrevi Nova Lisboa, em que achei que estávamos numa espécie de clímax da gentrificação, até hoje, em que acho que está muito pior do que o que estava, senti que era preciso alguém falar sobre o assunto. No meu caso, eu usei a literatura, que era uma arte como qualquer outra, mas que dá para ser mais profundo a tentar falar dos assuntos e das razões que levam os assuntos a acontecer. Achei que era muito importante fazer um alerta vermelho de que a cidade estava a ficar descaracterizada e que as pessoas estavam a ser brutalmente corridas.
Quando, com a gentrificação, há uma profunda descaracterização, as cidades vão muito rapidamente perder aquilo que as torna únicas. Eu sinto isso em Lisboa e no Porto, em que continuamos a ter a traça arquitetónica e a ter grandes painéis em azulejaria, mas começamos a perder sabores típicos, conversas, marcas no discurso, elementos culturais, sejam eles mais amplos ou mais específicos geograficamente.
Acho que é muito importante não deixarmos a gentrificação uniformizar tudo, tornar tudo parecido. Por exemplo, o meu barbeiro, o Belarmino, trabalhava num sítio que era a “Barbearia Campos”. Eu adorava ir lá, porque sou muito obcecado com o património da literatura, quer seja físico (livros), quer seja imaterial (locais). Eu ia à Barbearia Campos porque era a barbearia dos escritores e estava lá desde 1886. Agora é um McDonalds. Olhando para esta história em 2 ou 3 pontos, é um bocado triste que isto aconteça. Se calhar, um sítio como aquele merecia ser preservado
No caso de Lisboa, em que se tentaram os Programas de Lojas com História e fecharam, desde 2000 e até 2023 cerca de 83 (Fonte: Jornal Público [1]), claramente não foi feito um esforço assim tão grande para preservar a história. Isso para mim é importante e foi por isso que escrevi Nova Lisboa.
Sendo formado em Estudos Artísticos e como um próspero escritor, que aspetos gostaria de ver mudar relativamente ao valor que os portugueses atribuem, em geral, às artes e, particularmente, à escrita?
Eu já pensei pior acerca deste tópico. Acho que estamos numa fase de renascença em relação ao cuidado que os portugueses têm com a cultura. Não sei se são bolhas que carregam estes fenómenos avante, mas acho que determinadas bolhas, especificamente digitais, estão a fazer de tudo para uma reavaliação e reapreciação, sobretudo da literatura.
Não posso negar que comecei a ler livros sem serem de ficção literária, como o “Triângulo Jota”, romances mais românticos e não altamente literários, e depois fiz o caminho até à literatura. Considero que muita gente que vai começar por ler Colleen Hoover, vai passar para uma Isabel Allende, depois para a Lucia Berlin, até chegarem à Annie Ernaux, percursos que são naturais, nós flutuamos nestas coisas! Eu gosto de Dostoievski, mas também gostei de ler “Gone Girl”, então acho que fenómenos digitais de bolha estão a fazer muito para uma perceção nova e fresca do lado cultural.
Em relação ao geral, acho que Portugal é um país que ignora muito, muito, muito a força das suas tradições e a espetacularidade dos seus campos artísticos. Antes de ser escritor, sou apaixonado por pintura e agora estou a escrever um romance que se passa no universo da arte (funciona como uma desculpa para fazer descrições de quadros enquanto escritor).
Chocou-me, ao fazer a licenciatura em Estudos Artísticos e com o conhecimento do mundo da arte que já detinha, conhecer, no âmbito da cadeira de História da Pintura Portuguesa, a Aurélia de Sousa (que se tornou uma das minhas pintoras preferidas), cujo corpo de trabalho merecia ser brutalmente mais falado. Nós não podemos esperar que o povo vá ganhar subitamente um apreço pela cultura ou pela arte, mas deve haver antes um trabalho feito, na base, pelo Estado e pelas instituições para colocar nestas pessoas o “bichinho” da arte e da cultura. É muito bom perceber que certas coisas que sentimos e achamos exclusivamente nossas são brutalmente partilhadas.
Neste momento em que estamos a viver uma grande mudança demográfica, em que as cidades recebem pessoas de outros países, seja aquele emigrante económico que vem à procura de uma vida melhor, seja aquele que tem uma ambição maior, como abrir um negócio mais cool, é positivo que estejamos sintonizados com todos e não só com quem já tem as antenas no ar, e eu fiz um grande esforço para meter as minhas!
Eu tenho sorte, porque a minha mãe mesmo ganhando, à época, o ordenado mínimo, levou-me aos 16 anos a Madrid. Fomos de carro e ficámos num parque de campismo nos arredores da cidade, e fui aos três museus mais conhecidos. Essa viagem teve um grande peso na forma como a minha vida se desenrolou, porque depois decidi levar a escrita mais a sério e percebi que nem sempre a frase “se te esforçares muito e fores bom no que fazes, as coisas vão acontecer” se torna verdadeira. Aconteceu comigo, mas também já vi muitas pessoas que são boas e que se esforçam muito a não conseguir.
Acho que tem de haver um trabalho de promoção não só geral, mas também regional. O Bocage foi determinante na forma como eu me apaixonei pela literatura, porque, quando aprendi este “sabor local” na escola, quis escrever um auto-retrato dele, uma tarefa que foi bastante difícil. Acabei por escrever tantos textos que comecei a gostar desse exercício de escrita, então acho que se a minha escola não tivesse uma programação dedicada ao Bocage eu não tinha seguido esta via da escrita. Acredito, por isso, que tem de existir um papel, em primeiro lugar, macro, por parte do Estado, em que a cultura deixa de ser aquela coisa que nem 1% do OE merece e, depois, um papel, ao lado de instituições e pessoas, de promoverem aquilo que gostam na sua cultura regional.
Em Portugal, até fazemos isso bem com a doçaria e com a gastronomia, por isso devemos beber um pouco mais da forma como celebramos entusiasticamente estas coisas e celebrar também outras.
Trabalha como copywriter em Lisboa e já venceu inúmeros prémios como reconhecimento pelo seu trabalho. Qual é a chave-mestra para o sucesso nesta área?
Eu acho que tem de ser um bocadinho a obsessão e eu odeio ser assim, odeio ser uma pessoa que pratica um mindset hustler. Eu faço pela minha carreira, sobretudo a minha carreira literária, às vezes durmo menos, não combino programas com amigos e é claramente uma escolha ativa e calculada que eu faço para tentar levar as minhas ambições mais longe.
Eu tenho de ser sincero, durante alguns anos da minha carreira como criativo de agência, sinto que não me dediquei o suficiente. Sinto que confiei muito no facto de que era uma pessoa engraçada, que tinha uma sensibilidade natural para escrita, então conseguia, sem grandes dificuldades, fazer um headline giro para aqui e para ali e isso mudou tudo. Chegou uma altura em que percebi que, só com a minha graça natural, eu não ia conseguir atingir os objetivos ambiciosos que tenho para mim mesmo.
Isso mudou a forma como levo a indústria da comunicação e o meu trabalho como copywriter, porque comecei a transportar mais da forma como levo a minha vida enquanto escritor também para a publicidade. Portanto, se consigo estar um fim de semana inteiro a escrever, porque eu amo escrever e amo literatura, se calhar também tenho de ficar no trabalho até às 20:00h, 2 vezes por semana, porque estou a trabalhar com um amigo sobre uma ideia com a qual estamos os dois entusiasmados.
Eu tive muitas dificuldades em conseguir ser assim, quando achava que ficar horas mais tarde no trabalho era ser roubado pelo patrão.
A dada altura tive de perceber que, se calhar, se queria atingir determinados objetivos na indústria da criação, na criatividade e na comunicação. Como copywriter, tinha de dedicar um bocadinho do que dedicava à literatura, à publicidade. Curiosamente, a grande maioria dos prémios aí falados chegou desde que mudei o chip. Eu diria que foram cerca de 5 anos em que eu achava que sendo giro e engraçado a coisa funcionava.
Nos últimos anos, claramente liguei o modo workaholic. Isto vem do facto de ter tido uma relação romântica de 10 anos com uma fotógrafa de moda, que era igualmente dedicada à carreira dela e que sempre me incentivou a levar o meu trabalho com intensidade. Fiz um trabalho com a minha terapeuta acerca das minhas ambições, onde percebi que era uma pessoa brutalmente ambiciosa com a literatura, dedicando-lhe mais tempo que a maior parte das pessoa dedica ao que quer que seja. Só nesse dia em que percebi que era ambicioso com a literatura, é que percebi que queria também ser ambicioso com a criatividade.
Agora estou numa agência, a Ogilvy. Em princípio vou lá ficar a trabalhar como copywriter sénior e vou ter de fechar a minha empresa de copywriting por conta própria. Foi muito bom ganhar os prémios do Clube de Criativos de Portugal, é uma instituição que me tem ajudado muito. Tem-me dado muito apoio e promovido a minha literatura. Mas gostava de dar o passo seguinte, de em vez de ganhar prémios do Clube de Criativos em Portugal, ganhar aquele Leão em Cannes, ou o Lápis do D&AD, e para isso tenho de me dedicar.
Isto é transversal em todas as fases da carreira. Eu fui loucamente dedicado quando estava à procura de emprego e arranjei um emprego rápido por causa disso. Por isso, acho que avancei um bocadinho durante uns tempos em que o meu objetivo era claramente escrever qualquer coisa na literatura e agora estou muito mais em paz com o facto de que há dias como ontem, em que só saí da agência às 21h. É terrível para arranjar uma namorada, mas é ótimo para fazer o projeto com mais concentração e tentar levá-lo a bom porto, quer seja para ganhar o respeito dos meus pares da indústria, quer seja algo que a mim me diz muito mais, que é fazer trabalhos que as pessoas notam, reparam e acham engraçados.
Na indústria da comunicação há dois cavalos diferentes e as pessoas escolhem qual querem montar: há o do ego, ganhar prémios, ter um salário mais alto; e há o do impacto geral, que é fazer coisas que as pessoas em casa veem e gostam. Eu acho que sempre fui muito mais do segundo e agora estou a perceber que o segundo é a forma de chegar ao primeiro. Enquanto vejo em muitos meus colegas o oposto, que é fazer coisas para dentro do próprio universo da criatividade e o “povão” fica em segundo plano. Eu dediquei 5 anos do meu romance ao “povão”, é um objetivo nobre. Por isso, não me identifico tanto com essa parte.
De acordo com a mitologia grega, os golfinhos são os mediadores entre os Deuses e os Homens, estando o seu ciclo de vida e comportamentos interligados com a cultura e o comportamento do Homem. Gostava de reencarnar num golfinho para poder espalhar alguma mensagem que ainda não tenha exprimido através dos seus livros?
Quando disse essa frase foi sobretudo para efeito cómico e uma piada privada para mim. Quando parti o meu braço (tinha por volta de 10 ou 12 anos), fui para o Hospital do Outão, em Setúbal, um hospital que já é na Serra da Arrábida e tem uma vibe de “Montanha Mágica” do Thomas Mann, em que as pessoas vão para um sítio meio surreal se tratar. Todos os dias, ao final da tarde, quando recebia um Bongo, eu ia ver o pôr do sol e via os golfinhos a saltar e só pensava: “era mesmo bom ser estes golfinhos”.
Desconhecia essa componente mitológica, mas, agora que penso nisso, faz muito sentido, porque tudo na minha vida e carreira tem uma componente mitológica. Eu sou um rapaz com educação católica, sem ter tido muita opção nisso (acho que, em Portugal, essa é a coisa mais frequente de acontecer). A minha mãe queria que eu fosse catequista e eu fui fazer a catequese. No início da minha atividade de escrita, os meus livros eram altamente católicos. O verão no qual escrevi essas histórias foi um verão durante o qual vivi um grande desgosto amoroso, que coincidiu com o momento em que o meu professor de história, o Professor Alberto Lopes, me deu a “Divina Comédia”, de Dante, para ler, por achar que eu era um rapaz que através da escrita poderia encontrar alguns caminhos. Li a obra, penso não ter entendido muita coisa, ou pelos menos tive de utilizar muitas notas de rodapé de contextualização para perceber alguma coisa. Nos meus primeiros poemas falava da Maria Madalena, do Olimpo, e noutros já falava de uma coisa “mais Virgílio das Eneidas, mais Eneidas do Virgílio”. Ainda há uma componente de mito no meu trabalho e, entretanto, por causa dos estudos artísticos, fiquei a perceber que há determinadas narrativas que são tão importantes para nós que parece que se metem em tudo.
Ao sermos europeus, nós temos um património de milénios, uma carga mitológica gigantesca nas coisas que fazemos e na vida que vivemos. Eu lembro-me de ser mais jovem e ir fazer uma visita a um bairro em Setúbal onde existia uma casa com quatro cabeças em pedra e chamavam-lhe a “casa das 4 cabeças”, porque foi um sítio onde se tinha verificado uma tentativa de regicídio. Portanto, eu acho que estes mitos e estes territórios de grande profundidade e simbolismo, de certa forma, metem-se nas nossas coisas. Na capa do meu segundo livro, “A ponta de um corno”, tentei utilizar um elemento figurativo que eram os golfinhos, ainda antes de dizer que gostava de reencarnar num golfinho, porque era o símbolo da freguesia de São Sebastião, em Setúbal, local onde eu nasci. Isso reforçou um bocado a minha relação com golfinhos. Tive muitas colegas de turma que, ao longo dos anos, tatuaram no ombro o golfinho a saltar no pôr do sol (tornou-se uma tatuagem bastante "brega” depois, mas que, por associar à minha juventude, continuo a gostar muito). Em relação à pergunta em si, eu não tenho interesse em deixar nada por dizer.
Se reencarnar num golfinho que seja para ser feliz a nadar livremente e não tanto para dar recados. Sou uma pessoa muito ansiosa em relação à minha própria produção literária, mas acho que, se conseguir escrever estes três ou quatro livros da minha primeira fase como autor, em que eu estou muito agarrado aos conselhos do Rogério Casanova e ao Pós-Modernismo, eu fico muito contente. Se conseguir ir um pouco mais longe, gostava muito de fazer um mestrado em Estudos Portugueses e a minha ambição com esse mestrado é fazer uma trilogia de romances que decorrem na era da expansão marítima. Se um dia estiver a escrever livros, que hoje ainda não sei quais vão ser, gostaria de escrever sobre um bobo da corte que não detém agência, porque considero que, hoje em dia, apesar da possibilidade de nos encontrarmos em situações muito difíceis, conseguimos decidir o que queremos ou não fazer. Gostava de escrever sobre alguém sem agência, pois era o que pensava ser na minha adolescência.
Mariana Resende e Marta Torres Departamento Grande Entrevista
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