1 – Como foi, para si, o seu percurso de aprendizagem? Como consta, licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade do Porto e concluiu o mestrado na UTAD. Pode-nos contar um pouco mais acerca desta sua escolha? Porque a fez, o que gostou mais no curso, alguma dificuldade que encontrou pelo caminho, alguma experiência que a marcou consideravelmente?
Vou sintetizar, pois esta é a história de uma vida. Eu já tenho 60 anos e isto é de um tempo muito recuado. Às vezes, parece que já foi há muito tempo; outras vezes, parece que foi ontem porque a nossa história está colada à nossa essência, à nossa existência. Por isso, não podemos esquecer-nos de nada. Muitas vezes, esquecemo-nos das coisas más e privilegiamos as coisas boas – o que considero que é uma forma de sobrevivência humana. Fazer renascer, quando estamos deprimidos, os momentos bons e mais agradáveis é uma estratégia do espírito humano.
Momentos bons tive muitos! Mas tive essencialmente momentos de luta. Eu nasci em Trás-Os-Montes e, portanto, vir para o Porto foi um dos grandes desafios da minha vida, uma vez que travei conhecimento com pessoas e vivências completamente diferentes. Frequentei a Escola Secundária de Bragança, estávamos ali circunscritos a um ambiente muito familiar, muito nosso e, de repente, vejo-me no Porto, num curso muito difícil, já que escolhi Línguas e Literaturas Modernas, variantes de português e alemão.
As pessoas, principalmente a família, colocaram em causa a minha escolha. Eu gostava muito de português e, fundamentalmente, de ler. Sempre vi os livros como fiéis amigos que me acompanham e que não são ingratos, não me prejudicam e que estão sempre comigo. Tenho recordações muito antigas de uma menina que era eu, na escola, sempre com um livro debaixo do braço.
Quando cheguei à Universidade do Porto, encontrei-me perante uma espécie de monumento. O maior obstáculo foi precisamente o curso porque tive de lutar contra mim própria. Aliás, no primeiro momento, pensei em desistir porque me matriculei num curso de português e alemão, considerada uma ligação estranhíssima porque normalmente os alunos escolhiam as línguas românicas ou germânicas, mas eu optei por escolher uma cadeira da língua românica e outra da germânica. No primeiro dia, quando cheguei a casa, chorei toda a noite. Porém, de manhã, levantei-me, com os olhos congestionados e prometi a mim mesma que iria enfrentar aquele desafio, que parecia ser o desafio da minha vida.
Não foi fácil, como é evidente. O alemão era uma língua pouco conhecida e pouco falada e os resultados não eram muito bons. Muitos colegas mudavam de curso, mas desistir para mim era uma palavra que não queria incluir no meu dicionário. Precisei de muita dedicação, de muita entrega e de muito trabalho. Foi, repito, um percurso com muita luta. Na vida encontramos sempre pedras no caminho que têm de ser retiradas, seja de que maneira for, com a ajuda dos outros, mas fundamentalmente com a nossa determinação. Só assim se consegue. Acredito que, quando se quer, tudo se obtém na vida, com maior ou menor dificuldade.
Agora, felizmente, os jovens são muito apoiados, não só pela escola, como também pelos seus pares e familiares. Antigamente não era assim! Eu fui “atirada para o mundo”, mas por vontade própria, porque era teimosa, perseverante e dizia “Eu quero continuar a estudar, este é o meu futuro, o meu destino, o meu desafio, o meu sonho!”.
Posteriormente, quando enveredei pelo no Mestrado, já tinha constituído família. Foi em 2006, e já tinha dois filhos. O meu marido apoiou-me muito. Achei que tinha de dar continuidade a esta minha necessidade de saber, a este “karma”, digamos assim, de aprender. No fundo, trata-se de um “karma”, ou um “darma”, aprender para partilhar, porque a grande mensagem é esta e o meu destino é mesmo este: aprender, partilhar e escrever. Sou professora, escritora e continuo a estudar. Há uns anos, ainda me inscrevi no Doutoramento, mas tive de fazer escolhas, pois estava em causa a continuação do sonho de escrever. Às vezes as escolhas são difíceis, por isso, não enveredei pelo Doutoramento. No entanto, há outras aprendizagens que são constantes, e acho que é sempre bom estarmos recetivos e abrirmos os horizontes para recebermos tudo aquilo que a vida nos dá, para podermos prosseguir.
2 – É professora de Português na escola de Penafiel. O que a fez seguir este caminho? Como sabemos, atualmente, a profissão de professora está a ser cada vez mais posta à prova, apresentando grandes dificuldades. Contudo, relatos constam de que é apaixonada pelo seu trabalho e alunos e pela disciplina que leciona. Gostaria que nos contasse um pouco mais acerca deste seu percurso, das vantagens de ser professora e, claro, o que a faz exercer a sua profissão com tanta paixão.
A palavra mais adequada é precisamente “paixão”. Como disse, a paixão por aprender e depois partilhar, pois os professores são grandes “partilhadores”.
Considero que é uma profissão de risco porque nós sabemos que lutamos com algumas dificuldades no que diz respeito aos relacionamentos interpessoais. Temos à nossa frente uma turma não de 27 ou 28 números, mas de 27 ou 28 pessoas diferentes. Logo, temos de ter respeito por todos. Acima de tudo, sentimo-nos incapazes porque não conseguimos chegar a todos ao mesmo tempo, já que normalmente estão em causa quatro, cinco ou seis turmas diferentes, consoante a disciplina e a carga horária. Mesmo assim, independentemente de tudo isto, as pessoas estão à nossa frente e nós temos de ter um determinado tempo das nossas vidas para lhes dedicar, que nunca é suficiente.
Transmitimos aos alunos os nossos saberes, mas muitas vezes eles não estão recetivos, não partilham da nossa verdade – a nossa luta passa por aí: conseguir que o aluno nos ouça, aprenda e receba aquilo que nós temos para lhe oferecer. Atualmente o grande desafio é esse! Os alunos são inteligentes, mas são muito menos aplicados, comparativamente aos do passado porque estão a ser bombardeados por uma dinâmica social muito diferente. As solicitações são muitas e dispersam-nos. É aqui que reside a nossa desvantagem, pois esta é uma luta contínua e diária.
É uma missão ser-se professor, mas é uma missão reconfortante porque acreditamos sempre, continuamos a acreditar, que conseguimos que os alunos tenham sucesso. Se apenas alguns conseguirem, já é uma luta ganha!
O nosso querido Padre António Vieira, que gosto muito de citar, dizia “Falar é semear, ouvir é colher”, e é isso: ouvir é colher as aprendizagens, as mensagens dos outros. Por essa razão, muitas vezes dirijo-me aos alunos e só lhes peço para me escutarem porque eu partilho com eles, com muito carinho, tudo aquilo que sei. Eu não sou professora só porque preciso de sobreviver e de ganhar dinheiro, mas porque gosto! Amo com paixão aquilo que faço e é isso que me mantém viva!
3 – A sua tese de mestrado foi: “António Nobre: o homem, poeta e as pequenas grandes coisas”. Para além disso, é vice-presidente da Associação dos Amigos do António Nobre. Poder-nos-ia falar um pouco mais acerca deste senhor e do seu trabalho, porque o escolheu como tema da sua tese e algumas das suas opiniões em relação ao mesmo?
A tese de mestrado surgiu na minha vida quase por acaso.
Moro em Vilã Meã. Ora, estava a viver, naquele momento, mais perto da escola e uma colega lançou-me o desafio. Eu já escrevia na altura, tinha muitos livros publicados. Então, inscrevi-me no Mestrado de Cultura Portuguesa, já que a cultura é essencial por fazer parte da nossa História.
Na altura, eram mestrados de dois anos. Logo no primeiro ano realizei os exames sobre diferentes temáticas e uma professora aconselhou-nos a escolher, no 1º ano, o tema da nossa tese. Foi exatamente isso que fiz. Por isso, acabei de escrever a minha tese muito cedo, muito antes de terminado o prazo, visto que o prazo ia até março de 2006, mas apresentei a minha tese em dezembro de 2005. Tinha a vantagem de ter alguma prática da escrita. No 2.º ano, comecei a trabalhar de forma mais assertiva na tese, com muito mais insistência. Procurava concentrar-me nela todos os momentos.
Agora, porque escolhi o António Nobre? Ele é um homem, um poeta que me diz muito, pela sua resiliência, pela sua teimosia e pela sua sensibilidade também. Ele nasceu no Porto, os pais eram daqui da região, de São Mamede de Recezinhos e da Lixa, e foram para a cidade do Porto para facultar uma vida melhor aos filhos, para poderem estudar. Sempre me impressionou o facto de este poeta ter lutado contra a doença durante seis anos, tendo ido para a Madeira e até para os EUA, enquanto estava a lutar contra a tuberculose. António Nobre continuava a verter as suas mágoas, a sua saga, na poesia, enquanto lutava contra a doença. O seu único livro, publicado em vida, “o livro mais triste que há em Portugal”, o “Só” tinha sido publicado pouco antes, enquanto estudante em Paris.
Fascinou-me, de igual forma, o facto de o autor se concentrar nas pequenas coisas, daí que tenha atribuído à minha tese o título de “As pequenas, grandes coisas”, pois para mim também são grandes as pequenas coisas, como olhar para uma árvore, para uma fonte ou para um homem do campo, a forma como ele se relacionava com as pessoas, a forma como ele, em Paris, enquanto estudante, recordava e vivia momentos e elementos da nossa identidade cultural associados ao mar, aos pescadores, às festividades, por exemplo. Estas pequenas coisas, imbuídas de uma sensibilidade singular, completam o retrato de uma vida, o percurso dos 33 anos.
Como dizia Agustina Bessa-Luís, o “poeta é um homem que se queixa”. E ele queixou-se! No entanto, fê-lo de uma forma tão poética, de uma forma tão bela, que eu tive de lhe prestar homenagem numa tese de mestrado, dando a conhecer a sua vida e a sua obra, onde me projetei completamente. Considero que entrei, de certa forma, no sentimento, na emoção, na escrita, de uma forma literária, mas também na sua individualidade. Com muita paixão, digo. Acima de tudo, ele foi um guerreiro, um lutador. A vida não lhe foi facilitada por motivos de saúde, mas ele continuava a escrever e fê-lo durante alguns anos, mesmo doente.
4 – Desde 2018, é diretora do jornal de Vilã Meã. Desde já, gostaria de saber mais acerca deste tema para si, como enveredou pela via do jornalismo e qual o aspeto que mais gosta em relação a esta área. Resumidamente, pode-nos falar um pouco acerca do seu percurso enquanto jornalista?
Este foi o resultado de um convite feito por um ex-aluno meu, Presidente da Associação Empresarial de Vila Meã, à qual pertence o jornal. Aceitei-o, pois, por um lado, era uma forma de conhecer esta gente, de entrar mais na sociedade, de entrar na dinâmica cultural e de sentir-me mais próxima das pessoas, porque quando se faz uma entrevista conhece-se a pessoa, conhece-se o contexto, aquilo que a circunda. Por outro lado, tratava-se de um desafio relacionado com a escrita, já que não só analiso as notícias, como também revejo os textos e também escrevo alguns artigos.
O meu grande papel é, ainda, fazer os editoriais e estes proporcionam-me a oportunidade de apresentar a minha opinião sobre determinados assuntos. Nos meus artigos enveredo mais pela área da cultura. Por exemplo, estamos a dar prioridade a Agustina Bessa-Luís, que nasceu em Vila Meã, todo este ano lhe foi dedicado. Neste momento, passamos também a priorizar o centenário do Saramago.
É um jornal de província, do interior, mas damos atenção, de igual forma, a assuntos culturais porque as pessoas não estão só interessadas em saber o que se vende na loja X e os cursos que estão a decorrer na Associação Empresarial. É importante ligarmo-nos à região através da Cultura porque há muita coisa que a História esquece. Felizmente, os Homens da Cultura, os Homens das Letras, os Homens das Artes, permanecem, mantêm-se na História e alimentam-na, e penso que este é mais um contributo para dignificar esta região, que viu nascer Amadeu de Sousa Cardoso, Teixeira de Pascoaes, Acácio Lino e Agustina Bessa-Luís, já referida.
5 – Escreveu cerca de 60 livros. Isso é um verdadeiro feito! Como já percebemos, a Cidália é uma pessoa multifacetada, mas gostaria de saber o que a fez se interessar pela escrita e seguir esta carreira, pois acredito que para tal é preciso ter imensa perseverança e amor pela profissão para escrever tantos livros. Para além disso, como escreve livros tanto para adultos como para crianças, gostava também que nos falasse um pouco das diferenças de escrever para duas faixas etárias tão diferentes. Pergunto, ainda, se tem alguma preferência entre alguma destas faixas etárias?
A vida, as experiências e as leituras são uma fonte inspiradora. Elas contribuíram e continuam a contribuir indubitavelmente para a fecundação do meu percurso na escrita.
Considero sempre que a escrita me permite uma partilha alargada. Enquanto professora, tenho as minhas turmas e determinados alunos circunscritos a um ano, mas com a escrita não funciona assim, pois os meus livros chegam a muitos lados: chegam às pessoas, às crianças e, porque não me conhecem, é a mensagem que chega e não a pessoa.
O meu percurso começou na faculdade, com a poesia, género do qual sempre gostei muito. Já em criança adorava ler poesia, mesmo quando estava sozinha. A poesia fascinou-me, apaixonei-me por ela e fui escrevendo poesia. Contudo, ela foi sendo colocada de lado, na gaveta, como toda a gente faz (penso eu).
Depois, fiz o curso, constituí família – e aí é que está! Foi depois de o meu primeiro filho me pedir para lhe contar uma história, não para lhe ler uma, mas para lhe contar uma história minha, inventada por mim. De início, recusei, mas o meu filho argumentou que já tinha lido imensos livros e, por isso, estava na altura de contar uma história da minha autoria. Foi assim que o “bichinho” despertou! Comecei e, a partir daí, nunca mais parei. Escrevo para crianças e também para adultos. Atualmente, tenho livros infantojuvenis, livros técnicos de apoio ao estudo, manuais escolares, de poesia e romances.
O que gosto mais de escrever? Não sei muito bem. No entanto, tenho muito mais cuidado quando escrevo um livro infantojuvenil. Faço muitas revisões! As editoras têm de ter efetivamente muito cuidado com a escrita infantojuvenil, pois as crianças estão numa fase de aprendizagem, de assimilação de saberes. E se um adulto já compreende uma falha qualquer, muitas vezes não diretamente relacionada com o autor, por exemplo uma falha gráfica da editora (perfeitamente natural), uma criança não percebe as falhas, não desculpabiliza nenhuma. Portanto, se há um erro, esse erro é muito grave porque a criança “bebe” tudo. Desta forma, o escritor tem uma responsabilidade acrescida, e é por essa mesma razão que aprecio muito a escrita para o público infantil, ainda em formação.
Lembro-me de que houve um tempo em que pedia a Deus para nunca perder a inspiração. Felizmente, acho que nunca aconteceu porque a vida vai-me dando sempre temas, oportunidades diversificadas. São portas que se vão abrindo e eu vou enveredando por elas, vou escrevendo. Portanto, a vida é mestre e é tudo isto que se abre para eu poder escrever, para partilhar com os outros, porque a escrita é uma partilha, sem dúvida. Aliás, qualquer arte deve ser uma grata partilha com os outros.
6 – Em 2013, a Cidália foi premiada com o 2.º lugar no concurso “Saramago – Uma História de 90 Anos”, da Fundação José Saramago. Pode-nos contar um pouco mais relativamente ao processo de escrever uma obra para este prémio, porque o decidiu fazer e qual foi a sua sensação quando percebeu que tinha conseguido ganhar este prémio? Visto que é uma verdadeira honra!
Tratou-se de um concurso direcionado para as bibliotecas, para alunos e professores, e eu concorri! Foi um desafio e as regras consistiam em ter de escrever algo partindo de uma obra de José Saramago – e eu escrevi! Escrevi com base na obra “A maior flor do mundo”, ao dar continuidade à sua história.
José Saramago dizia que não sabia escrever histórias para crianças e então coloquei-o a ele e à Pilar, sua esposa, na história, criando um menino chamado José que estava a ler uma história e que depois teve um sonho. De salientar que esta minha obra é um e-book, podendo ser folheado por quem o desejar.
Quando soube que tinha sido premiada fiquei muito feliz! Aliás, os desenhos que estão no e-book foram feitos por uma professora de Paços de Ferreira, tendo estes sido posteriormente fotografados e adicionados ao texto. Atualmente encontram-se na Fundação José Saramago. Assim, a maior alegria que senti foi encontrar o meu livro lá, foi receber o prémio lá, e ver todos os livros naquela linda biblioteca (os livros escritos sobre José Saramago, inclusive o meu). Está lá esse e mais outro livro, “Páginas de Saramago”, sobre a obra “Memorial do Convento”, direcionado para os alunos de 12º ano, por ser uma análise desta obra. Este constitui, de facto, um grande momento na minha vida.
Penso que temos, ao longo da nossa vida, estes momentos de alegria que nos tornam “mais pessoas”, mais humanos. São estas pequenas coisas que nos realizam e que nos trazem felicidade e que tornam maior a nossa alma!
Também gostei imenso de conhecer a Pilar del Rio, esposa de Saramago; é uma pessoa extraordinária, gentil, simples, uma pessoa verdadeira que está a dar continuidade à obra de José Saramago, divulgando-a e universalizando-a.
7 – Escreveu uma obra chamada “Chamo-me José Saramago”. Comemorando-se neste mês o centenário do autor, não poderia deixar de lhe perguntar qual a sua opinião acerca deste, qual a sua relação com o mesmo e, ainda, se tem alguma obra preferida?
Aconselho sempre às pessoas que não conhecem José Saramago, ou que o criticam, ou que dizem que é muito difícil de entender, a lerem primeiro o livro de crónicas “Deste Mundo e do Outro”, onde vão encontrar outra faceta do autor, a sua origem. Nesta obra, há um homem sensível, aberto à família, e aos outros; encontramos os textos mais belos que podem ser escritos sobre os avós.
José Saramago começou pela base, pela família, e eu acho que a família é o grande centro da nossa sobrevivência, é o grande pilar que nos protege e guarda, os pais e os pais dos pais são os alicerces da nossa árvore. São as raízes da humanidade e o autor começou pelas suas. A sua grande árvore perpetuou-se através da escrita. Aliás, a esse propósito, as cinzas do escritor estão em frente à Fundação José Saramago, nas raízes de uma oliveira, árvore que ele tanto amava.
Pois bem, este livro “Deste mundo e do Outro”, é de facto essencial para entrarmos na dinâmica da escrita do autor. A partir de “Levantado do Chão”, a dinâmica muda e então é preciso conhecer as suas regras. Existem muitas pessoas que se recusam a lê-lo porque não respeita a pontuação, dizem. Todavia, há uma forma de se chegar ao texto e nós temos apenas de entrar nessa dinâmica para conseguir compreendê-lo. E é muito fácil para quem gosta de ler. É como se existisse uma espécie de hall onde está inscrito que ele escreve de certa maneira e, a partir daí, entramos perfeitamente nos restantes compartimentos da sua “casa”, da sua escrita. Portanto, é este processo que se torna difícil, e alguns jovens que começam a ler Saramago apenas no 12º ano e que não são bem-aconselhados, acabam por rejeitá-lo.
Este é um autor que se perpetua no tempo, que não pode ser esquecido de maneira alguma, as suas obras estão traduzidas em diversas línguas. É um verdadeiro ícone nacional! A atribuição do Prémio Nobel confirma-o.
O autor entrou na minha vida já há muitos anos – aliás, até possuo um exemplar de “Memorial do Convento” de 1985, que foi autografado por ele. Foi uma experiência fantástica!
Tenho homenageado Saramago nas escolas e em muitos outros lugares, falando da sua vida e obra, fazendo inclusivamente a dramatização das mesmas. A propósito, tenho um canal no Youtube que se chama “Viajar com…”, no qual divulgo a vida e a obra de vários autores e onde já fiz um vídeo dedicado a Saramago. Porém, devo dizer que a melhor forma de homenagear um autor consiste precisamente em ler as suas obras, em divulgar as suas ideias e as suas crenças. Fernando Pessoa dizia “Para crescer, ou viajar ou ler.”
8 – Em 2019, a maioria dos 7.469 alunos inquiridos num estudo do Plano Nacional de Leitura e do ISCTE admitiu ter lido menos de três livros por prazer nos 12 meses anteriores ao inquérito. Como acha que podemos incentivar os jovens a lerem mais?
É difícil responder a esta questão, devido às circunstâncias sociais e políticas instaladas e das quais todos dependemos. Na educação não é fácil virar a página de um momento para o outro. Promover atividades de leitura nas escolas, implicar os pais, criar uma escola aberta à leitura, são exemplos de ações que podem ser tomadas. Sem leitura não há o incentivo também à escrita, e quem incentiva à leitura são os professores.
Uma sugestão, por exemplo, para o Ministério da Educação, seria criar um grupo de professores na pré-reforma, que se deslocassem às escolas dos primeiros ciclos escolares para lerem para os alunos, pois a leitura é fundamental e considero que falta isso nas escolas. Os professores têm de respeitar um programa e não podem dedicar o tempo necessário à dinamização da leitura recreativa. Seria fantástico, e penso que não seria difícil, encontrar um grupo de professores que se interessasse pela leitura e pela promoção da mesma nas escolas.
Dinamizar atividades de escrita criativa, como já fiz há dois ou três anos, também é um bom exemplo.
Temos de facultar ao aluno a capacidade de ser criança-leitora, de sair da escola e viajar pelo interior do livro, percorrer o livro, sem ser necessário estudar, sem ser necessário esventrar o texto. Ou seja, incentivar à leitura por prazer, apenas para viver as aventuras com as personagens, o texto. Deixá-lo sonhar livremente. A interpretação e a descodificação do texto surgem naturalmente.
No fundo, implicar pais e professores e criar alternativas, atividades lúdicas, ler com prazer – é isso que importa para as crianças de hoje, bombardeadas por tantas solicitações externas, que condicionam o seu crescimento como verdadeiros homens. A leitura forma e transforma, concluo.
Maria da Conceição Marques Ramalho
Departamento Grande Entrevista
Comentarios