Entrevista a Miguel Herdade
- Inês Oliveira
- 17 de abr. de 2023
- 18 min de leitura
Miguel Herdade trabalha em desigualdades educativas e integração social.
É Director Associado no Ambition Institute no Reino Unido e é também Governador de uma escola primária em Londres. Em Portugal é ainda co-fundador da Orquestra Sem Fronteiras, a primeira organização portuguesa a vencer o Charlemagne Youth Prize, do Parlamento Europeu.
Foi docente na Nova SBE – School of Business and Economics - e co-fundador e Director Executivo da Academia do Johnson, na Amadora. Posteriormente trabalhou no The Challenge/National Citizen Service, o maior projecto de integração social no Reino Unido.
Nesta entrevista fala-nos do estado da Educação em Portugal, o especial interesse pelas desigualdades educativas e integração social e o que é preciso mudar para termos um país mais justo e rico.

És responsável por vários projetos relacionados com desigualdades educativas e integração social no Reino Unido, Portugal e Espanha. De onde é que surgiu o interesse para trabalhar em projetos relacionados com estes temas?
Eu venho de um meio privilegiado, nasci em Lisboa, os meus pais são os dois licenciados, e, portanto, eu nasci assim numa espécie de bolha lisboeta.
Acho que a primeira vez que eu percebi que havia mesmo um grande problema de desigualdade e que o que nós conseguimos fazer na vida não era completamente dependente do nosso esforço, mas sim de outras circunstâncias que nós não escolhemos, foi no liceu. Tinha uma colega que trabalhava no Mc Donald´s quando tinha as tardes livres e lembro-me de irmos lá a seguir às aulas e ela estar lá a servir.
Durante muito tempo, eu pensava que, sendo ela mais velha e já tendo repetido uns anos, que só não tinha boas notas porque não estudava e porque não se esforçava. Depois pensei nisso e, de facto, enquanto eu tinha as tardes livres para estudar ou para me divertir e descansar, ela não tinha isso e tinha de ir trabalhar todas as tardes.
Ela licenciou-se passado uns anos e eu percebi que ela teve de se esforçar o dobro do que eu tive para chegar ao mesmo sítio e isso não é justo. Percebi que era importante fazer alguma coisa com isso e que devia ser algo que gostava de fazer na minha vida, precisamente por ter tido a sorte que a maioria das pessoas nunca teve.
Lembro-me que esse foi o primeiro grande marco na minha vida fora da bolha em que nasci e, ao longo da minha carreira, devido às minhas experiências profissionais, isso ainda se foi adensando e cada vez mais tenho essa noção que o que nós fazemos muitas vezes é ditado por circunstâncias completamente aleatórias e que estão fora do nosso controlo.
Um dos projetos em que participas é a Orquestra sem Fronteiras, sediado em Portugal, e que já venceu vários prémios. Em que consiste este projeto?
É um dos projetos que temos em Portugal e este ano ganhámos o prémio Carlos Magno para a Juventude, que é do Parlamento Europeu. Foi a primeira vez que Portugal ganhou esse prémio e, basicamente, a nossa missão é diminuir as desigualdades entre o interior e o litoral de Portugal através da música. As desigualdades entre o litoral e o interior de Portugal são das mais marcantes da geografia portuguesa. Os rendimentos do trabalho são até 40 % inferiores e é muito difícil ter uma carreira e construir uma vida no interior de Portugal, precisamente por causa dessa desigualdade.
Por isso, o que nós fazemos é apoiar o talento jovem e os jovens músicos de todos os distritos do interior de Portugal e Espanha para tentar construir uma sociedade mais justa através da música, onde a cultura é acessível para todos, independentemente do sítio onde nasçam. Não é justo que uma pessoa que tenha nascido em Idanha-a-Nova tenha menos oportunidades para ser músico do que uma pessoa que tenha nascido em Lisboa.
E uma coisa é certa, não há nenhuma razão para uma pessoa que tenha nascido em Idanha-a-Nova seja menos talentosa, simplesmente tem menos oportunidades. Nós estamos a tentar colmatar essa diferença de oportunidades através deste projeto que fundamos há 4 anos.
Vives no Reino Unido, sendo governador de uma escola primária em Londres. Quais as maiores diferenças que sentes entre o sistema de ensino do Reino Unido e de Portugal?
A primeira coisa que quero apontar é que os dois sistemas têm vantagens e desvantagens, ou seja, o sistema inglês é melhor numas coisas e o português é melhor noutras e, portanto, não há uma solução mágica para todos os problemas. Mas, por exemplo, se pensarmos na área das desigualdades, é melhor para um aluno pobre nascer em Inglaterra do que nascer em Portugal.
Nós medimos isto através dos exames PISA, que são os exames que a OCDE faz em todos os países da OCDE e que mede os níveis dos conhecimentos dos alunos a leitura, ciências e matemática.
Nós conseguimos perceber que, em Portugal, a diferença de conhecimentos entre alunos ricos e pobres é cerca de 2 anos. Em Inglaterra, esta mesma diferença é cerca de 11 meses e, portanto, apesar de Inglaterra ser um país muito marcado pela desigualdade, ainda assim é um país que sabe lidar melhor com essa desigualdade que Portugal.
Há alguns problemas que o sistema inglês tem, certamente, e coisas que Portugal é melhor. Uma muito gira porque as pessoas não pensam muito nela é que, em princípio, as cantinas das escolas portuguesas são muito melhores do que as cantinas das escolhas inglesas e de outros países do norte da Europa. Gosto sempre de referir isto porque é algo que nunca nos ocorreria, mas é bom também termos a noção que temos coisas boas no nosso sistema de ensino.
É também importante ressalvar que o sistema de ensino inglês dá muito mais autonomia às escolas e aos professores, sendo sistemas completamente diferentes. Diria que, em princípio, é mais fácil ser professor em Inglaterra do que em Portugal. Isto quer dizer que os professores portugueses fazem verdadeiros milagres apesar das condições que têm e não por causa das condições que têm.
Talvez uma das diferenças mais assinaláveis é que metade das escolas públicas inglesas são geridas por entidades privadas sem fins lucrativos, tendo muito mais autonomia para gerir as suas escolas e para contratar os seus professores.
Não há nenhuma razão normativa ou filosófica pelo qual as escolas geridas por entidades públicas têm que ser pior geridas do que as geridas por entidades privadas, não tem de ser assim. Se calhar haver as duas modalidades e introduzir essa concorrência no sistema de ensino pode levar a que as duas tentem ser melhores.
Na prática, podemos ter uma escola pública num lado da rua e essa escola é gerida por uma entidade privada sem fins lucrativos e,do outro lado da rua, pode haver uma escola pública, mas que é gerida por uma autarquia local. Essas escolas públicas estão a concorrer pelos alunos e como, na prática, em Inglaterra as escolas são financiadas “à cabeça”, ou seja, conforme o número de alunos que têm nos seus quadros, elas irão querer ser melhores para ter mais alunos e conseguirem ter financiamento suficiente para sobreviver. E, portanto, há um verdadeiro mercado que funciona. Isso tem alguns efeitos perversos, naturalmente, mas certamente, dá mais liberdades às escolas e sobretudo aos professores para escolherem onde querem trabalhar.
Escreveste recentemente um ensaio para a Comunidade Cultura e Arte com o título “Dar a todas as crianças um grande professor, por favor” sobre a importância dos professores na criação de um país mais justo e mais rico. Que papel prático é que um bom professor pode ter no percurso de um aluno?
Na minha opinião, como escrevi nesse texto, os professores são uma das melhores ferramentas que nós temos na nossa democracia para criarmos um país mais justo e menos desigual. E é pena que nós não tenhamos a noção do poder que esta ferramenta pode ter no futuro das nossas crianças e do nosso país. Isto vê-se, em traços largos, quando pensamos na vida de um aluno, pois há todos os fatores que ele não pode escolher (o rendimento e a escolaridade dos pais, as casas onde nascem, a cor da pele, o género, se tem ou não uma deficiência) - e todas essas coisas vão impactar imenso a nossa capacidade de ter boas notas na escola.
Basta ver que os alunos pobres têm muito mais dificuldade em ter boas notas a matemática. Normalmente vivem em zonas marcadas pela pobreza e em casas piores, muitas vezes sobrelotadas, tendo, por isso, mais dificuldade para estudar e se concentrar. É importante assinalar, também, que a pobreza tem um peso na nossa capacidade de pensar e isso está bem demonstrado pela literatura. No fundo, o que a ciência demonstra é que a pobreza tem mais ou menos o mesmo impacto no nosso cérebro do que fazer uma direta.
Portanto, há todos estes fatores que são muito difíceis de combater com políticas públicas pois são muito diferentes e demoram bastante tempo para resolver. Por isso, prefiro olhar para aquele fator que conseguimos modelar que é a qualidade dos professores.
Os professores representam cerca de 30% da variação das notas dos alunos na escola. Isso quer dizer que ao nível da escola, se esquecermos todos os outros fatores do contexto familiar e social, os professores são duas a três vezes mais importantes que qualquer outro fator que são muitas vezes falados como o tamanho das turmas, etc.
Os professores mais eficazes no sistema de ensino conseguem ensinar em seis meses o que um professor mediano demora um ano a ensinar. Aqueles que são menos eficazes demoram dois anos a ensinar a mesma matéria (podem ser menos eficazes por terem menos condições para trabalhar, trabalharem em turmas onde há muita pobreza, por exemplo).
Isso demonstra a diferença que um grande professor pode fazer. Houve um estudo que analisou mais de 1 milhão de portugueses e que conclui que se nós conseguíssemos fazer com que todas as crianças tivessem acesso aos professores mais eficazes, o número de negativas a português baixava de cerca de 50 % para 10%. É uma diferença brutal.
Mas há outra observação também muito importante que não é muito falada. A diferença entre ter um bom e um mau professor pode influenciar a quantidade de dinheiro que fazemos quando crescemos.
Isso está demonstrado em várias evidências empíricas, há um paper muito famoso nos EUA que foi ver as notas dos alunos na escola e mais tarde quando se tornaram adultos, observaram as suas declarações de impostos e conseguiu cruzar o valor acrescentado dos professores, moderando para todos os fatores externos aos alunos, e conseguiu perceber que entre esses salários mais altos, a diferença era a eficácia dos professores que eles tiveram.
Por isso, se conseguíssemos dar a todas as crianças um grande professor, talvez conseguíssemos quebrar ciclos de pobreza. Acho que seria uma solução muito interessante para tentar combater este problema muito grave que existe em Portugal, que é a falta de mobilidade social.
Relacionado com este tema, uma das questões também fulcrais é a crise da falta de professores. Dados recentes dizem-nos que em menos de uma década a profissão irá perder 40% da totalidade dos docentes. Como achas que o Estado deveria resolver este problema que já se arrasta há algum tempo e afeta cada vez mais os alunos?
Acho que temos de olhar para uma solução de curto prazo para tentar resolver o problema agora pois é um problema urgente. Penso que a partir do ano letivo que vem, cerca de metade de todos os alunos entre o sétimo e o décimo-segundo ano não vão ter professor a pelo menos uma disciplina. Isto é um desastre e nós podemos estar perante o colapso do sistema de ensino.
O que temos de fazer, e acho que se tem tentado fazer isso, é acudir urgentemente aos problemas de curto prazo, de arranjar professores para ensinar. Isso pode ser feito de várias formas, seja através de melhorar a forma como gerimos esse recurso, seja através de trazermos professores reformados pagando lhes bem, pagar incentivos aos professores para ensinarem mais horas ou irem para sítios onde há mais falta de professores, por exemplo, em Lisboa e Porto onde é muito difícil pagar as rendas nessas cidades.
Isto são algumas medidas para acudir à urgência, mas também temos de pensar a longo prazo. Nós vamos ter de recrutar cerca de 3500 professores por ano daqui até ao fim da década e nós o ano passado recrutamos 2200, sendo que desses só 3 eram de físico-química. Portanto, era importante pensarmos no longo prazo, até porque esta situação onde estamos era completamente previsível e tem uma razão histórica para existir.
Temos de pensar na forma como recrutamos os nossos professores para tornar a profissão mais aliciante, em termos financeiros, por exemplo, algo que se tem feito em Inglaterra com bons resultados.
Também acho que teremos de simplificar a via de entrada para a profissão de docente porque o que acontece atualmente é que o próprio Ministro da Educação que é doutorado e professor universitário, em princípio, não pode dar aulas numa escola pública portuguesa porque consideramos que não é qualificado para tal. As qualificações são tão difíceis de obter que acabamos por afastar imensa gente que poderia ser professor.
Também gostava de ver a sociedade civil empenhada nisto, o Estado existe e é importante, mas também seria bom que a sociedade civil arregaçasse as mangas. Por exemplo, como em Inglaterra, onde o maior recrutador de professores é uma instituição privada sem fins lucrativos e que recruta professores para zonas isoladas e zonas com dificuldade em recrutar professores. Era interessante, que nós, como sociedade, fizéssemos um esforço para lutar por esta causa mas, infelizmente, acho que o tema não é muito interessante para a maioria das pessoas e só se fala deste tema quando há greve dos professores e os pais não têm onde deixar os filhos.
Achas que também há uma falta de professores em Portugal porque a carreira de professor não é muito aliciante, até do ponto de vista do sistema de alocação dos professores?
Sim, acho que isso é verdade. Isso agora vai mudar vagamente, mas as escolas não têm quase nenhuma flexibilidade para contratar os seus professores. É algo que é único no mundo, pois é uma alocação central pelo Ministério da Educação. Não conheço mais nenhum país desenvolvido que tenha este sistema e depois temos situações onde os professores andam “com a casa às costas” e que mudam de escola todos os anos e saltitam pelo país todo. No fundo, os professores sacrificam-se pelos alunos que são filhos dos outros, muitas vezes tendo de viver fora das cidades onde vivem as suas próprias famílias. Não é raro ouvir histórias de professores que só veem os filhos ao fim de semana e acho que isso é um esforço injusto de se pedir a uma classe profissional que tem uma importância tão grande para criar um país melhor.
É um dos graves problemas a resolver e que, em princípio, se resolveria como nos outros países, dando liberdade às escolas para elas contratarem os seus próprios professores. Essas mudanças idealmente seriam feitas de forma gradual, não pode ser algo imediato sob pena de partirmos o sistema e prejudicar os que devíamos proteger: os alunos. Era bom que estas medidas fossem sendo implementadas progressivamente.
Focando-nos na educação pública, esta é teoricamente apontada como o meio ideal para providenciar a igualdade de oportunidades para todos e fomentar a mobilidade social. Mas a verdade é que o contexto económico e social onde nascemos ainda dita, em muitos casos, o nosso futuro. Na tua opinião, porque é que a escola pública tem falhado em mitigar as desigualdades sociais e que medidas é que achas que seriam importantes para mudar esta realidade?
Eu acho que a escola pública portuguesa tem muitos problemas, mas talvez foi das maiores conquistas que tivemos desde o 25 de Abril. Temos de reconhecer isso porque Portugal, ainda hoje, é o país da Europa onde há maior percentagem de população ativa que não tem o 12.º ano. Portanto, Portugal sempre foi dos países mais atrasados a nível de educação, mas o progresso que temos feito nos últimos 20, 30 anos é notável.
Conseguimos fazer isso levando a escola a mais gente e a minha geração é exemplo disso. Eu quando acabei o secundário, em 2009, este ainda não era obrigatório, basta pensar que 1 em cada 3 rapazes e 1 em cada 4 raparigas ainda não acabavam o secundário.
Se pensarmos na geração que acaba o secundário agora, a percentagem que não acaba o secundário é muito mais baixa. Atualmente, somos dos países da Europa com mais gente a andar na Universidade e a licenciar-se, logo, este progresso foi ótimo. Isto devia orgulhar-nos pois o progresso foi feito sem pôr em causa a qualidade.
A única coisa em que nós falhamos redondamente foi na desigualdade. A diferença entre ricos e pobres continua a existir e não temos conseguido diminuir o fosso entre eles, penso que isso seja o grande problema do nosso sistema de ensino.
Eu acho que há uma falta de autonomia aos professores e às escolas, temos poucas condições aos professores para serem excelentes na sala de aula. Um professor, mesmo que queira ser o melhor, não tem a vida fácil. Acho que isso é determinante para que o nosso sistema de ensino não seja melhor porque eu costumo dizer que os professores fazem milagres apesar do sistema de ensino que nós temos e não por causa do sistema de ensino que nós temos.
Temos dois problemas agora: o problema da falta de professores, mas esse problema é criado em cima de um problema já criado antes, que foi a pandemia. Quando nós fechámos as escolas em 2020, e fechámos por duas vezes, o que aconteceu foi que tivemos três anos letivos afetados pela pandemia. Este problema de fechar as escolas é também um problema de desigualdade. Sabemos que, por evidência empírica, os alunos de famílias mais pobres foram mais afetados do que os alunos de famílias mais ricas. O que vamos ver agora é um grande aumento da desigualdade nos próximos anos.
Atualmente, uma criança que esteja no 4.º ano nunca teve um ano normal de escola na sua vida. Isto porque teve três anos marcados pela pandemia e agora um ano marcado pelas greves e pode ter o resto da sua vida na escola marcado pela falta de professores. Isto é um grande desafio que nós, coletivamente, vamos ter de resolver. Eu e uma equipa de vários colegas da Universidade Nova de Lisboa fizemos uma proposta de recuperação de aprendizagens que gostávamos que tivesse sido implementada, mas, infelizmente, não foi.
Mas para termos noção do problema que temos em mãos, os custos em salários futuros dos nossos alunos por termos fechado as escolas equivale a cerca de 200 mil milhões de euros que é, mais ou menos, 1 ano de PIB em Portugal. Isso vai ter um impacto grande no futuro do nosso país.
Temos de resolver esse problema, rapidamente, investir em programas de recuperação de aprendizagens, recrutar mais professores,garantindo que damos a todas as crianças um professor com as melhores condições para fazer o seu trabalho, com os melhores conhecimentos técnicos possíveis. Acho que essa é a única fórmula que temos para não deixar cair por terra este fantástico progresso que nós fizemos e que nos deve orgulhar a todos.
Um tema que também é bastante discutido em Portugal e que diz muito aos estudantes universitários é a questão das propinas e a sua influência no acesso ao ensino superior pelos mais desfavorecidos. Várias juventudes partidárias advogam pela “propina zero” ou pela redução do valor das propinas. Achas que é este o caminho para que a Universidade seja acessível a todos, independentemente do seu estrato social?
Eu sei que o preço das propinas é um problema muito grande para muitos estudantes universitários e que há imensas famílias que fazem um esforço enormíssimo para pagar esse custo para andar na Universidade. É algo que tenho muito presente, contudo, eu acho que temos de, honestamente, perceber que o maior custo que as famílias e os alunos enfrentam não é o custo da propina, mas todos os outros custos: o alojamento, a alimentação, os livros, o transporte, etc.
Isso é importante ter em conta porque, na verdade, a desigualdade entre os pobres e ricos, em Portugal, é tão grande que o que acontece é que a maioria dos alunos que vão para a Universidade são pessoas de classe média-alta e alta. Se virmos as pessoas que têm o “azar”, ou melhor, a aleatoriedadede nascer em famílias mais pobres e com pais pouco escolarizados, só 1 em cada 10 é que vai para a Universidade. Já se pensarmos em famílias como a minha e dos meus amigos, todos nós andamos no Ensino Superior.
Isto significa que as barreiras para nós chegarmos ao Ensino Superior estão presentes muito antes de os alunos lá chegarem, estão presentes ao longo de todo o nosso percurso escolar.
Portanto, o que eu considero, e a experiência de outros países parecem dar-me razão, é que, no fundo, termos propinas baixas equivale a subsídios dos mais pobres para os mais ricos. Eu sei que, vindo de uma família lisboeta bastante privilegiada, tinha muito maior probabilidade de ter andado na universidade, aliás, sempre foi óbvio para os meus pais e professores que iria. Tendo andado numa Universidade pública, o que aconteceu é que tive grande parte do custo das minhas propinas pago pelos impostos de toda a gente, que infelizmente não teve a mesma sorte que eu.
A propina, atualmente, custa 697 euros, mas o custo real de andar na universidade são, vamos supor, cerca de 6000 euros. A diferença entre o que paguei e o custo real de cada aluno é pago pelos impostos de todos, cuja larga maioria não teve a sorte de andar na universidade, e eu acho isso uma profunda injustiça.
Temos o exemplo da Irlanda, do Equador e de outros países que instituíram a “propina 0” e que não só não resolveu o problema, como os dados demonstram que essa política acabou por beneficiar os alunos de contextos socioeconómicos mais altos. Isto acontece precisamente por normalmente só os alunos mais ricos chegarem ao Ensino Superior. Acabamos por só favorecer os alunos ricos e não resolvemos o problema dos alunos pobres de não conseguirem ingressar no Ensino superior.
Eu propunha que mantivéssemos uma propina, mas que fôssemos muito generosos a nível de bolsas e empréstimos feitos pelo Estado, não por privados. Essas bolsas e empréstimos que permitiriam aos alunos pagar as propinas, mas também os outros custos que são as grandes barreiras para entrar na universidade. As bolsas, tinham de ser muito generosas e, obviamente, a fundo perdido. Quanto aos empréstimos, os alunos só pagariam depois de terminarem o curso e quando começassem a ganhar um determinado montante. Por serem garantidos pelo Estado, se por alguma razão o aluno tiver um salário menor ou perder o emprego, deixa de pagar o empréstimo nesse período e ao fim de um determinado número de anos, se não conseguir pagar o empréstimo, o Estado assume essa dívida.
Isto já foi testado em Inglaterra, onde o que se verificou foi um aumento brutal de alunos desfavorecidos na universidade, um aumento de 72% em 10 anos, o que é um sucesso enorme numa política pública.
Claro que esta solução tem alguns problemas, dois que tenho muito presentes. Uma que é o peso psicológico de uma pessoa pensar que tem uma dívida, sobretudo numa família desfavorecida, mesmo que seja caucionada pelo Estado. A minha mulher tem um destes em Inglaterra e eu percebo que o peso psicológico seja uma questão difícil.
O segundo problema relaciona-se com Portugal já ser um país muito endividado e as famílias portuguesas já terem níveis de dívida muito preocupantes.
Pelo lado positivo, tem a evidência empírica que mostra que esta solução pode ajudar pessoas mais desfavorecidas a ingressar na Universidade e tem também a vantagem de trazer mais financiamento para as Universidades, isto num país onde, infelizmente, não há nenhuma Universidade portuguesa no top 200 do Mundo. Isso devia-nos preocupar, pois as universidades portuguesas têm um problema grande de financiamento.
Basta pensar que o Imperial College, em Londres, tem um orçamento superior a todas as Universidades portuguesas juntas.
Isto poderia ser também uma maneira de trazer mais financiamento, melhorar a qualidade das nossas instituições de ensino e investir na investigação científica.
No novo modelo de acesso ao ensino superior apresentado recentemente, foi anunciado, entre outras alterações, um contingente prioritário para estudantes mais carenciados, com 2% de vagas em cada ciclo de estudos e a obrigatoriedade de os alunos fazerem 3 exames nacionais para concluir o ensino secundário, sendo o de português obrigatório e outros dois à sua escolha. Acreditas que são medidas positivas para uma maior equidade no acesso ao ensino superior ou achas que poderíamos ter, ainda um sistema mais justo no acesso à Universidade, em Portugal?
Eu penso que é uma solução razoável e tem uma vantagem que é ser uma transição gradual. Gostei também da flexibilidade das opções que os alunos podem ter, mas gostava de a ver mais no percurso dos alunos do que propriamente nos exames em que os alunos escolhem. Gostava de ver um sistema onde, por exemplo, um aluno de Humanidades pudesse escolher ter matemática A ou Físico-Química.
Portanto, acho que esta reforma não é negativa, mas acredito que o problema maior é que estamos a cair um pouco numa ideia de tirar exames e momentos de avaliação ao longo do percurso dos alunos. Acho isso muito negativo, pois é muito importante avaliar a capacidade dos nosso alunos para podermos aferir as suas aprendizagens e, com isso, colmatar as disparidades que haja, inclusivamente as desigualdades sociais.
Ao contrário do que muita gente acha, as desigualdades não acontecem por causa dos exames, os exames só nos demonstram que as desigualdades existem. Há uma expressão inglesa que diz “não é por desligar o alarme de incêndios, que os fogos não existem”. No fundo, acho que é o que estamos a fazer.
Quanto ao contingente de alunos de contextos socioeconómicos desfavorecidos, eu acho muito interessante a proposta. Penso que é positivo, pois está a discriminar positivamente esses alunos, mas, na prática, tenho algum medo dos efeitos secundários negativos, sobretudo se não tivermos o cuidado de dar a esses alunos mais apoio, pois senão podemos correr o risco de pôr os alunos na universidade sem lhes dar as condições para eles conseguirem ter progressão nos seus cursos.
Em Portugal temos uma experiência muito triste em relação a isso, que são os contingentes de os alunos que vêm dos países de língua portuguesa e caem nas universidades sem nenhum apoio, e penso que temos aí um exemplo de como não fazer as coisas.
O que é preciso notar é que as pessoas que nascem em contextos socioeconómicos desfavorecidos partem em desvantagem e nós temos é de lhes dar condições para colmatar a desvantagem que elas tem. Isso envolve dar-lhes mais meios, investir mais nelas, por isso, espero que esta medida, na prática, venha acompanhada desse investimento nesses alunos, senão temos uma política pública bem-intencionada mas que acaba por ter resultados negativos. Vamos ter de ver com muita atenção se é ou não só uma carta de boas intenções que vai deixar marcas nas universidades e, principalmente, se irá criar uma injustiça a esses alunos que querem ingressar no ensino superior.
Por fim, como avalias o estado das universidades portuguesas, atualmente? Concordas com as críticas normalmente apontadas de que temos ainda Universidades muito conservadoras e com um problema crónico de endogamia académica?
Quanto à endogamia académica, esse é um problema óbvio. Gosto de lhe chamar um “incesto intelectual” e esse é um grande problema em Portugal. Eu andei na Faculdade de Direito de Lisboa, onde penso que 99% dos professores são doutorados pela mesma Universidade. Eu só me lembro de ter um professor que não era doutorado pela Clássica, mas sim pela Católica. Isso traz imensos problemas, pois traz uma enorme pobreza de espírito, de conhecimentos, menos qualidade de investigação, algo que está demonstrado.
Torna as nossas universidades sítios mais pobres e não é por acaso que algumas das melhores universidades que temos em Portugal são aquelas onde isso não acontece. Por exemplo, a Nova School of Business, onde dei aulas durante algum tempo, ou a Universidade do Minho.
As universidades deveriam querer ter os mais talentosos e, ao escolherem só professores doutorados na mesma casa, não o estão a fazer. Há uma história divertida - que não sei se é verídica - mas que ilustra a soberba da faculdade onde andei. Uma professora chamada Paula Escarameia, que era doutorada em Harvard e que foi prestar provas para ser admitida na Faculdade de Direito de Lisboa, não só não foi aceite como o Comité Científico desconfiou das qualidades dos doutoramentos em Harvard, o que é patético. Um professor de Direito dizia ironicamente a propósito deste episódio: “só há duas faculdades que acham que são melhores que Harvard, que são Yale Law School e a Faculdade de Direito de Lisboa”.
A verdade é que esse incesto intelectual é o oposto do mérito. Se formos ver as melhores universidades do Mundo, como a London School of Economics, eu penso que a maioria dos professores nem é inglês porque o talento não tem de vir de um sítio. Era importante que nós conseguíssemos abrir as Universidades portuguesas ao mundo, atrair o melhor talento e parar com esse provincianismo que as nossas universidades têm e cujo resultado está a vista, que é não termos nenhuma universidade portuguesa no top 200 do Mundo nos rankings mais importantes.
Inês Oliveira
Departamento Grande Entrevista
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