Nesta entrevista, o sociólogo Telmo Fernandes, ativista da comunidade LGBTQIA+ há já mais de duas décadas, que atualmente está a doutorar-se em Psicologia, aborda as temáticas da discriminação dos membros da comunidade LGBTQIA+, explicando-nos um pouco mais sobre a evolução da conquista de direitos para os membros desta comunidade, e dando-nos a sua reflexão sobre aspetos a melhorar na sociedade portuguesa para que sejamos mais inclusivos. Dá-nos ainda conta de alguns dados estatísticos importantes nesta temática e de importantes conquistas que Portugal já alcançou neste âmbito, realçando que há ainda muito trabalho a fazer, que depende de cada um de nós.
De que forma começou a ser aceite na sociedade portuguesa esta abertura a outras orientações sexuais, para além da heterossexualidade?
Não é uma questão com uma resposta simples. Talvez não consiga abarcar tudo aquilo que é preciso porque estamos a falar de dimensões como valores, como uma cultura, como normas sociais. Se por um lado nós sabemos que de facto sempre houve diferentes formas de vivenciar e de identificar em termos da sexualidade, que faz parte da pluralidade e da diversidade humana, aquilo que, por outro lado, foi mudando foram os discursos acerca dessa diversidade, mas em Portugal, para simplificar, trata-se de facto de um percurso de visibilidade bastante recente em termos históricos.
No século XX, tivemos durante várias décadas um regime repressivo, em termos de todo o tipo de liberdades individuais e coletivas, e, embora houvesse um momento de abertura com a instauração da democracia e com o fim da ditadura, em 1974, foram precisos depois mais alguns anos para que a questão da diversidade em função da orientação sexual, ou seja, de diferentes formas de exprimir a sexualidade, os afetos, a construção das famílias, tivesse lugar na sociedade portuguesa. Isso aconteceu, em parte, na sequência de um dos movimentos, mais precisamente um movimento feminista pelas liberdades e pela igualdade de género, pela liberdade de as mulheres poderem sair de casa, poderem trabalhar, etc. Essa integração das mulheres no mercado de trabalho foi uma grande transformação social na sociedade portuguesa e com ela também vieram questionamentos acerca da sexualidade, sobre os papéis do género, etc. Ao mesmo tempo, Portugal também não estava isolado do mundo que o rodeava.
Lá fora já vinham algumas vozes de movimentos por outras liberdades civis: os movimentos antirracistas, os movimentos pelas liberdades individuais, embora, em termos de movimento organizado, podemos se calhar só falar disso em Portugal já no final do século XX, em meados dos anos 90, quando começaram a surgir organizações como a ILGA Portugal e outros coletivos e grupos, alguns mais organizados do que outros, que começaram a ter alguma visibilidade e a pressionar um pouco também a agenda política para a necessidade de debater as questões da igualdade e de as introduzir também, de introduzir a não discriminação na lei, e depois também no plano do quotidiano, e esse é um trabalho que estas organizações ainda têm a fazer. Ainda há muito trabalho por fazer.
Uma última dimensão, que penso que também foi importante: a integração de Portugal na chamada, na altura, Comunidade Económica Europeia, atual União Europeia, também foi um grande contributo para o contacto com e para a subscrição de tratados internacionais. O Estado Português passou a assumir compromissos com outros países, com outros Estados Membros, no sentido de eliminar todas as formas de discriminação, e esta é uma delas: não só a de orientação sexual, mas também a de identidade de género, e, mais recentemente, a questão das características sexuais está também englobada nesta luta contra a discriminação.
Digamos que, em termos históricos, só com a viragem do século, nos últimos 20 anos, é que podemos efetivamente considerar sobretudo que houve uma mudança substancial e mais visibilidade e reconhecimento de direitos das pessoas, não só em termos de orientação sexual, mas também na comunidade LGBT, que é mais abrangente. Só nas últimas duas décadas é que isso ganhou mais expressão no plano legal, e também no plano social, cultural e nos valores.
Que explicações podemos encontrar para o surgimento e afirmação das diferentes orientações sexuais? Trata-se de uma tendência humana? Como é que a sociologia perceciona este movimento?
A sociologia olha sempre para o enquadramento social, portanto, para os valores, para as normas. Mas penso que um dos teóricos que melhor falou sobre isso terá sido Michel Foucault, que falou sobre a repressão e sobre como não existe uma negação da sexualidade, pelo contrário: existem discursos sobre a sexualidade que determinam aquilo que deve ser incluído e aquilo que deve ser excluído, e como é que se deve lidar com o que é excluído.
Por isso é que durante muito tempo as sexualidades e as identidades deste género não normativas foram vistas, e em muitos contextos ainda são, ou como um “pecado”, ou como um “crime”, quando isso é plasmado na lei, ou ainda como uma “doença”. Portanto, durante muito tempo, as sexualidades não normativas foram classificadas como doenças. Foi um movimento dentro das ciências sociais, e em particular na psicologia e na psiquiatria, e foram portanto pessoas ativistas que tiveram um papel muito importante na despatologização destas identidades, de forma a reconhecê-las como variações da sexualidade e das formas de a exprimir que são típicas da humanidade, em toda a sua pluralidade e diversidade.
Portanto, sim, essas questões sempre surgiram e a sociologia tende a olhar mais para elas com os discursos que existem sobre elas e as formas como as normas sociais acabam por reproduzir muitas vezes preconceito e discriminação, ou, pelo contrário, quando há mais abertura, também possibilitam maior expressão dessa diversidade. Nós estamos hoje em dia, creio, a assistir um pouco a isso: há um caminho de reconhecimento de direitos que depois também se traduz, para as novas gerações, em novas possibilidades de identificação, algumas delas já até um pouco fora das categorias tradicionais dos movimentos quando iniciaram a sua reclamação do espaço público. Hoje em dia temos muitas pessoas mais jovens que não se identificam tanto como lésbicas ou gays, que eram categorias mais convencionais.
Não quer dizer que não existam, ainda existem! Mas existem também muitas outras possibilidades e alguma recusa nessa catalogação, nessa categorização, ou nesta associação entre aquilo que as pessoas mais jovens consideram ser apenas uma exploração e uma experiência, e uma catalogação. Claro que para quem fez parte do movimento pelos direitos das pessoas LGBTQIA+, as categorias foram importantes, e são importantes, para dar visibilidade a questões mais específicas de discriminação, e sem isso não teria sido possível a evolução a que assistimos, em Portugal muito recente, mas que nos coloca neste momento até numa posição relativamente privilegiada, tendo em conta o panorama internacional.
Não nos podemos esquecer que em mais de 70 países ainda é ilegal ser não heterossexual ou não cisgénero, apesar de serem conceitos que começam a ser mais familiares hoje em dia, mas é precisamente porque houve essa reclamação do espaço público para debater a importância de não partir do princípio de que todas as pessoas são iguais e reconhecer direitos a todas as outras formas de vivência e de exploração das identidades.
Também houve um sociólogo, Pierre Bourdieu, que falou bastante disso- já que estamos na perspetiva da sociologia- abordando a forma como a repressão das sexualidades e formas de exploração do género não normativas também servem de certa forma estruturas de dominação, em primeiro lugar dos homens sobre as mulheres, e de um determinado modelo de família comum que é o que estrutura a organização social.
Mas, entretanto, é importante perceber como hoje em dia são, muitas vezes, um pouco contraditórias as reações à conquista de direitos, ao reconhecimento de modelos de família que não são novos, que sempre existiram, mas que agora são reconhecidos. Por exemplo, o facto de uma criança poder ter duas mães ou dois pais: é valorizado o conceito comum da família. Não é contradizer, mas é precisamente reconhecer a importância da família em toda a sua pluralidade. Se calhar temos de falar sempre das “famílias” no plural, na organização social, considerando também famílias mononucleares, ou só com uma mãe ou só com um pai. Também é importante o reconhecimento dessas famílias porque elas fazem parte da nossa diversidade nas sociedades atuais e contemporâneas.
Considera que atualmente ainda existe algum tipo de preconceito face a pessoas pertencentes à comunidade LGBTQIA+? Se sim, em que sentido?
Bom, valorizando por um lado as mudanças positivas que têm acontecido, se nos estivermos a restringir ao conceito português, pelo menos no plano legal, é importante também perceber que ainda existe muita invisibilidade nas identidades, mas também nas problemáticas que estão associadas. Basta referir que a maior parte das situações de discriminação homofóbica, ou transfóbica, ou que tem como motivação um preconceito em relação à orientação sexual, ou à identidade ou expressão do género, ou até das características sexuais no caso das pessoas inter sexo, continua a existir, e muitas vezes não chega a ser denunciado, não chega às autoridades e não é relatado enquanto tal. Muitos crimes de homofobia e de transfobia não são identificados enquanto tal pelas autoridades, e muitas vítimas, por receio de uma segunda vitimização, por receio de achar que a denúncia não vai ser bem acolhida ou valorizada, ou que não estão num contexto seguro quando entram num espaço como uma esquadra, é preciso perceber que muitas pessoas LGBTQIA+ ainda continuam a percecionar as forças de autoridade como elementos repressivos, não necessariamente pessoas de gerações anteriores, mas também pessoas jovens. Portanto, aquilo que algumas organizações da sociedade civil têm feito é um trabalho muito importante de desocultação dessas situações de discriminação através de observatórios.
Por exemplo, existe um observatório com o qual eu tenho colaborado nos últimos anos, que trata da discriminação contra pessoas LGBTQIA+, e que está disponível online, onde qualquer pessoa que tenha sido testemunha ou vítima de uma situação destas pode fazer um relato de forma anónima e confidencial. Anualmente é feita uma compilação dessas situações para enviar às tutelas, para que haja de facto o reconhecimento da necessidade de continuar a intervir, de continuar a trabalhar para apoiar as pessoas LGBTQIA+ e para combater este tipo de discriminação que muitas vezes não é visível. Esta é uma das especificidades da discriminação, sobretudo quando estamos a falar de discriminação homofóbica ou que tem a ver com a orientação sexual, porque não se trata de uma característica visível, porque é possível ocultá-la, e por isso muitas pessoas, por segurança, optam por não revelar a sua orientação sexual porque podem fazê-lo facilmente, ao contrário do que poderá fazer uma pessoa que quer evitar uma situação de racismo, em função da sua cor de pele: aqui trata-se de uma especificidade que é a possibilidade de ser invisível, e o que acontece ainda é que nós vivemos numa situação em que nós não sabemos quantas pessoas que não têm uma sexualidade normativa existem. Também não perguntamos, o que se calhar também é um erro do ponto de vista das ciências sociais, e recentemente perdemos uma grande oportunidade com os censos de fazer esse questionamento, de perceber que tipo de estruturas familiares existem, que tipo de relacionamentos existem na nossa sociedade e, portanto, ainda não é possível atribuir números a isto, mas nós sabemos que as pessoas existem e a prova de que um ambiente mais seguro contribui para a melhoria da vida das pessoas é de que, nas gerações mais jovens, cada vez mais cedo as pessoas fazem essa revelação e fazem-no também um pouco recusando, como estava a dizer há pouco, algumas categorias de sexualidade e de género.
Essa recusa é um sinal positivo, creio eu, é um sinal de que existe esse espaço, essa abertura, sendo que, ao mesmo tempo, é importante valorizar experiências de pessoas que não vivem em contextos urbanos, sobretudo. Como sabemos, todos nós temos várias identidades, não é só a nossa orientação sexual e a nossa identidade de género, é preciso também considerar um conceito clássico de sociologia ou da classe social por exemplo, a nossa origem cultural, étnica, o nosso posicionamento religioso, se somos ou não portadores de uma diversidade funcional… Todas estas características contribuem para fragilizar ou privilegiar a nossa situação num contexto social. Portanto, as questões da orientação sexual e da identidade de género não podem ser separadas de uma leitura que faça essa interseção com as outras formas de identidade. Por exemplo, sabemos que as pessoas com mais escolaridade têm mais oportunidades; os homens, independentemente da sua sexualidade, têm mais oportunidades do que as mulheres ainda no nosso país. No plano legal, estamos a tentar combater isso, mas o preconceito é algo que demora muito tempo a combater e é um trabalho coletivo, que deve envolver todas as pessoas, nomeadamente na denúncia das situações, por isso, é um apelo não só às pessoas que fazem parte das minorias, se não estaríamos a cair na armadilha do “blame the victim” (permita-me esta expressão que se usa em inglês) para pensar só nas vítimas como agentes da sua própria mudança. É importante olhar para todo o contexto para perceber que as sociedades fazem-se igualitárias e dignas para todas as pessoas, com leis igualitárias e com envolvimento coletivo nesse sentido.
Considera que nem todas as realidades englobadas na comunidade LGBTQIA+ são olhadas da mesma forma, ou seja, que algumas são melhor aceites do que outras?
Esta questão vem muito na sequência daquilo que estávamos a falar. No início, e eu recordo-o, sendo membro da comunidade, em que estive envolvido em várias formas de ativismo desde o final dos anos 90, na altura dentro da Universidade do Porto com um núcleo de trabalho que até saiu depois do âmbito da Universidade, só se falava da homossexualidade, não se falava de outras formas de identidades. Portanto, foi um percurso que progressivamente foi integrando outras questões e formas de exploração identitária. Em primeiro lugar, as questões de identidade de género, havendo um momento marcante no nosso país, que aconteceu na cidade do Porto com o assassinato de uma mulher transsexual, Gisberta, que teve muita visibilidade e que colocou também na discussão pública violência e começou a trazer-se para a arena também a necessidade de reconhecer os direitos das pessoas trans, ou cuja identidade de género não era conforme com o género, a quem era atribuído toda essa construção social do género desde nascença até durante o resto da vida. Isso aconteceu em 2006, e só em 2011 é que tivemos de facto uma lei que reconheceu direitos de alteração do nome social, de reconhecimento de direitos destas pessoas, ainda era bastante patologizante porque fazia depender de um diagnóstico de disforia de género que hoje em dia com a lei de 2018 já não é necessário.
Portanto, hoje em dia temos, em Portugal, e é um dos poucos países onde isso acontece, uma total autodeterminação de género. Portanto, esse percurso que felizmente para as gerações mais jovens já está adquirido, mas é importante perceber que os direitos não são garantidos para sempre, e portanto é preciso sempre utilizá-los, reclamá-los e participar em formas de democracia ativa para garantir que esses direitos não são destruídos e não existem retrocessos, pelo contrário, existem avanços. E é verdade que com isso, portanto, com o enquadramento legal e com o contributo do movimento LGBTQIA+, e também com o auxílio de mais visibilidade de representação positiva, nomeadamente nos media, etc., novas formas de identificação e até de exploração identitária parecem ser possíveis hoje em dia, ainda que com muitos desafios, porque nós temos matrizes sociais e culturais profundamente binárias, é muito difícil contrariar. Estou a pensar, por exemplo, na questão das pessoas que se identificam de forma não binária em termos de género.
Quando nós temos toda uma estrutura linguística, cultural, pedagógica, etc., que é profundamente binária, é um desafio adicional, mas é um desafio que eu creio que estamos em condições de abraçar, porque mais uma vez não devemos fazer depender das pessoas que estão a reivindicar esse espaço, não deve cair só sobre elas o ónus dessa luta contra a discriminação, deve ser um trabalho coletivo em que toda a gente deve estar envolvida, e isso também começa pela linguagem, pelo uso de linguagem mais inclusiva, que é um desafio, mas que é possível.
É o associativismo utilizado para a tutela dos direitos da comunidade LGBTQIA+? Ou a sua atividade passa mais por protestos, sem necessidade de ter uma estrutura orgânica?
Não sei se percebi bem esta questão, mas eu estive envolvido no associativismo desde que me recordo, portanto, já há mais de duas décadas, e por essa experiência pessoal, por contactar com diversas organizações, em Portugal e não só, fui percebendo que existe uma diversidade também muito grande de formas de ativismo, de associativismo e de organização. Podemos classificá-las em duas grandes famílias: umas mais vocacionadas para a criação da comunidade e de apoio à comunidade, para quebrar o isolamento, que é uma das outras especificidades que resulta da discriminação contra esta população, para além da invisibilidade que falávamos há pouco, e portanto, a comunidade é algo que contraria esse isolamento, e é muito importante esse trabalho do orgulho, das festas, de celebrar a diversidade, de celebrar as conquistas de direitos, de trazer para a rua, dar visibilidade à diversidade que existe dentro e fora de portas e em todos os contextos, e este tem sido um contributo fundamental do associativismo; por outro lado, também é importante apoiar as pessoas que continuam a ser vítimas de discriminação e, portanto, essa comunidade já faz um pouco isso mas também foi com o tempo sendo necessário criar serviços específicos de apoio social, jurídico, psicológico, e, portanto, existem organizações que para além dessa vertente da comunidade e da reivindicação pública de direitos e da visibilidade também, prestam esses serviços especializados, e que vão criando também recursos e campanhas de sensibilização e de visibilidade. Hoje em dia, também já em parceria, felizmente, com tutelas, existem projetos que hoje já recebem financiamento de Fundos Europeus, mas também do Estado Português, porque o próprio Estado também se compromete neste momento através de planos nacionais de igualdade e agora com uma estratégia nacional, que tem pela primeira vez um plano de ação específico de combate à discriminação em função da orientação sexual, da identidade, da expressão de género e características sexuais, e portanto é um compromisso do Estado, das tutelas e de muitas entidades que têm um papel a dizer sobre isto. Portanto, não é só um papel das organizações e da sociedade civil, não seria realista pensar, por exemplo, que as organizações LGBTQIA+ teriam capacidade para ir a todas as escolas fazer campanhas de sensibilização. Logo, tem de haver um trabalho de investimento grande, daquilo que nós (sociedade portuguesa) entendemos ser um caminho para a igualdade, para proteger todas as pessoas que fazem parte desta sociedade. São valores que já estão plasmados na CRP e nos vários códigos. Desde 2003, com a introdução no princípio da igualdade da orientação sexual como parte do princípio da não discriminação, sucederam um conjunto de alterações legais com base nesse pressuposto que nós (sociedade) não temos este tipo de discriminação e que a homofobia e a transfobia não são bem-vindas, não fazem parte dos nossos valores.
Claro que as organizações da sociedade civil tiveram um papel fundamental de “advocacy” ou de trabalho com forças políticas no sentido de introduzir estas alterações legais. Sem isso, não teria sido possível. Claro que os compromissos internacionais tiveram o seu papel, mas sem esse trabalho de progressão, de “lobby” ou de “advocacy” que ainda continua a ser fundamental e necessário, por exemplo com ferramentas como o observatório de discriminação que é importante para ter dados para sustentar estas alterações, para fundamentar a necessidade de implementar medidas, isso não seria possível, portanto, também tem sido uma função das organizações. Existem algumas que também são mais vocacionadas para tarefas específicas, têm surgido nomes coletivos, por exemplo estou a recordar-me da “Queer Tropical”, que é uma organização agora vocacionada para pessoas migrantes, porque de facto existem questões que às vezes são específicas de uma população que se cruzam com a orientação sexual e com a identidade de género, com a homofobia e a transfobia mas que também requerem outro tipo de leitura.
Do seu ponto de vista, a mudança de género implica necessariamente alterações na forma de relacionamento com os outros e consigo próprio?
Sim. Apesar de a psicologia ter olhado sempre para as diferentes etapas do desenvolvimento das identidades que não são normativas, existem várias teorias sobre o desenvolvimento das pessoas gays, lésbicas ou bissexuais. Só mais tarde é que começaram a surgir modelos sobre o desenvolvimento de identidades trans, mas, na verdade, estes modelos agora são um pouco questionados porque precisamos de saber quais são os contextos que condicionam as experiências das pessoas. Assim sendo, as expressões e as formas de identidade são questões caras à psicologia e continua a ser importante esse olhar, mas não nos podemos desligar do contexto em que elas acontecem. A prova disso é que em sociedades ocidentais onde há já várias décadas existe um trabalho de visibilidade, de conquista de direitos e de maior representação positiva de identidades não normativas existem cada vez mais pessoas a fazer essa identificação e exploração não normativa. Penso que, sobretudo no contexto norte-americano, existem grandes colheitas de dados a nível estadual e e inter estadual, mas em Portugal, por exemplo, recentemente, faço parte de uma equipa que está a recolher dados de jovens entre os 14 e os 19 anos de idade, e é nítido este aumento de identificação não normativa, de cada vez mais pessoas que se identificam ou que rejeitam estas etiquetas do “heterossexual” ou de papéis de género convencionais.
A forma como as pessoas vivenciam e querem exprimir o seu género não pode ser desligada do contexto. Isto significa que não cabe aos indivíduos alterar a sua perspetiva, mas à sociedade alterar os seus espaços, criando oportunidades para que as pessoas se possam exprimir na sua verdade e na sua diversidade. É isso que deve ser um compromisso nas sociedades que tenham como valores centrais a igualdade e a não discriminação.
Um exemplo disso é o seguinte: existem estudos que muito claramente fazem a correlação entre o respeito pelo uso do nome social, por exemplo, os jovens trans nas escolas que escolhem o nome pelo qual querem ser tratados ou tratadas e, quando isso acontece, o impacto no bem-estar dessas pessoas é tremendo. Aumenta a autoestima, reduz a intenção suicida, que é típica, pois a questão da transfobia é muito profunda, é um problema muito profundo e ainda muito enraizado mesmo nas sociedades ocidentais. Portanto, estas medidas legais que possibilitam o respeito pelas identidades de género não normativas têm um impacto direto na vida e no bem-estar dessas pessoas, na qualidade de vida delas. E isso é a prova de que não é delas que tem de partir a mudança. Nós temos de criar condições e, se quisermos fazer uma analogia como a questão da diversidade funcional, não deve caber às pessoas que usam cadeiras de rodas alterar os passeios e as estruturas públicas para que elas sejam integradas. Isto é um pressuposto da nossa sociedade, temos de ter sociedades que saibam reconhecer a diversidade que existe dentro delas.
Considera que a orientação sexual pode receber influência do meio em que a pessoa está inserida, ou seja, considera que a sociedade pode dar estímulos na afirmação da orientação sexual?
Bem, aquilo que nós vemos é que existe uma crença profunda nessa afirmação ainda. As coisas estão a mudar rapidamente, felizmente, mas as imagens que vemos nos media, na televisão, nas séries, na literatura, mesmo nos manuais escolares, ainda são profundamente hétero-normativas, ou seja, partem sempre do pressuposto de que todas as relações, todas as histórias de amor são entre um homem e uma mulher, e isto parte de uma crença de que as pessoas que nascem e vivem neste contexto vão ser como as pessoas que estão ali retratadas. Nós, hoje em dia, sabemos que faz parte da nossa natureza essa diversidade, que não é possível escolher por quem é que nos apaixonamos e por quem é que sentimos atração. Mas ainda existem crenças associadas a esses preconceitos, nomeadamente no que se tem vindo a chamar “terapias de conversão” porque infelizmente ainda existem indícios de que elas continuam a ser praticadas no nosso país e não só, quer por profissionais de saúde, quer por pessoas que estão ligadas a religiões com uma postura um pouco mais conservadora sobre isto. Este estudo que dei a conhecer há pouco indica que ainda existem jovens que são vítimas desta abordagem e esta é, aliás, uma das questões que recentemente assumiu relevo num movimento sobre a proteção das pessoas LGBTQIA+ do ponto de vista legal da ILGA Europe, que é uma organização que atua não só no espaço europeu mas também na Ásia central. Portanto, uma das recomendações é de que Portugal legislasse, à semelhança do que já acontece noutros países, para que se estabeleça uma proibição deste tipo de terapias, precisamente por causa da sua ineficácia e do seu impacto negativo no bem-estar e saúde mental das pessoas que se sujeitam a elas, ou que são sujeitas a elas, porque muitas vezes não o fazem de livre vontade, sobretudo se estivermos a falar de jovens, que não têm essa autonomia.
Em termos factuais, o relacionamento entre pessoas que se afirmam como pertencentes à comunidade LBTQIA+ têm aumentado? Os casamentos não heterossexuais têm crescido nos últimos anos?
Eu não tenho dados atualizados sobre isso, mas creio que já há alguns anos tenha havido um aumento, embora não muito expressivo, mas gradual do nº de casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Portanto, trata-se de uma lei que foi aprovada em 2010, e também li e sei que esses casamentos ocorrem sobretudo em meios urbanos maiores como Lisboa, Porto e outras grandes cidades, mesmo pessoas que não vivam nesses grandes centros urbanos vão celebrar esse contrato em centros urbanos, pois sentem que são espaços mais seguros. Agora lembrei-me também de muitos episódios que tive como voluntário, porque Portugal é um dos poucos países onde pessoas não residentes também podem casar cá e portanto durante algum tempo. Agora já não acontece tanto porque já há vários países onde isso é possível: casais de pessoas do mesmo sexo que viviam em países onde o seu casamento não era reconhecido, vinham celebrá-lo em Portugal. Claro que depois o documento não era reconhecido no seu país, e isso foi usado como um instrumento de pressão política junto de alguns movimentos de organizações LGBTQIA+ e noutros países, nomeadamente na Itália. Tudo isto para dizer que têm de facto aumentado, penso que de uma forma não muito expressiva, mas é preciso contextualizar: o número de casamentos em geral tem diminuído em Portugal, cada vez menos pessoas têm como projeto de vida contrair matrimónio. Existem outras formas de relacionamento afetivo e amoroso que hoje em dia não têm reconhecimento legal, mas que estão a acontecer. A nossa sociedade está a sofrer transformações nesse sentido e nas camadas mais jovens também se sente essa metamorfose de valores, e de contrariar as expectativas do que é que era um projeto de vida em gerações anteriores, é preciso contextualizar tudo isso. Na altura em que começou este movimento pelo casamento igualitário, era também uma luta simbólica pelo reconhecimento de direitos e pela visibilidade de relacionamentos não heterossexuais. Era sobretudo essa campanha. Eu recordo-me de que a muitas pessoas envolvidas nessa campanha, em que eu próprio estava incluído, era questionado o porquê de não nos casarmos. Eu não casei, apesar de estar numa relação há muitos anos com o meu companheiro, porque aquilo que nos motivava e aquilo que motivava não só pessoas do movimento LGBTQIA+, mas também muitas outras que se associaram, era a necessidade de reconhecer o direito fundamental da igualdade. As questões da parentalidade só foram legisladas após alguns anos, mas também foi uma batalha importante para reconhecer a diversidade de famílias e daquilo que era o valor principal que se deveria associar à estrutura da família, que era a qualidade das relações, ou, numa palavra mais poética, o amor. O amor é aquilo que faz uma família, sendo esse até o slogan que as associações usavam muito na altura em que se estavam a reconhecer direitos de parentalidade, de adoção, de formas de reprodução medicamente assistida, também.
Tem aumentado o número, mas penso que não tem aumentado muito. É preciso ler isto à luz de todas as transformações que estão a ocorrer. Há um livro de Giddens, um sociólogo também importante, que se chama “Transformações da Intimidade” que também fala um pouco sobre isso - a valorização de outras questões para além daquilo que era associado ao casamento há umas décadas atrás. Hoje em dia as pessoas estão nas relações pela qualidade delas e também é importante olhar para essas alterações de valores e não olhar só para os números.
Julga que instituir uma disciplina de educação sexual nas escolas é uma forma de combater o preconceito e fomentar o conhecimento correto sobre a orientação sexual de cada um?
Sim, se for inclusiva. É importante perceber que, e aliás há estudos que demonstram isso, quando existem campanhas anti-bullyng elas são eficazes, mas terão um impacto muito maior quando referem explicitamente as questões da homofobia e da transfobia. Eu, num estudo há uns anos em que estive envolvido sobre o clima escolar, em que só jovens que se identificassem como LGBTQIA+ é que podiam responder a esse questionário, o que importava era perceber a voz e a perspetiva da juventude e a relação entre haver campanhas nas escolas ou iniciativas que falassem de forma explícita e positiva sobre temas da LGBTQIA+, ou campanhas anti-bullying que falassem também de homofobia e transfobia e do sentimento de pertença na escola, de se sentir mais seguro na escola, de se faltar menos à escola. Há menos absentismo quando há mais empenho, por exemplo, através de aulas de educação sexual quando se refere de forma positiva estas questões. Educação sexual, sim, mas é importante monitorizar e perceber que as pessoas que a estão a aplicar têm essa formação, preparação e recursos, e isso é algo que também vai ao encontro um pouco do enquadramento que Portugal está do ponto de vista legal: nós temos uma Lei do Estatuto do Aluno que diz que os alunos e as alunas devem ser protegidos da homofobia e da transfobia; temos uma Lei de Educação Sexual de 2009 que refere que estas que estas questões também devem ser incluídas; temos um Referencial de Educação para a Cidadania, que, hoje em dia, movimentos mais conservadores e de índole populista estão a questionar, que também fala destas questões de forma inclusiva; temos ainda a tal Estratégia Nacional para a Igualdade que também compromete as escolas e as comunidades escolares em geral, portanto, comunidades locais, estruturas locais neste trabalho. Há muito trabalho a fazer nas escolas. Eu sei que não é um trabalho fácil, sobretudo para docentes que sentem que as coisas estão a acontecer muito rápido e que nem sempre têm vocabulário nem referências para fazer esse trabalho, mas isso é uma responsabilidade da tutela: preparar, criar recursos, introduzir, desde logo, estas temáticas na formação e no ensino superior, que é algo que se vê muito pouco, mesmo em áreas de ciências sociais, como na própria Psicologia ainda é muito escasso o conhecimento sobre esta realidade. Mas sim, claro que um trabalho inclusivo nas escolas é fundamental para melhorar o clima escolar e, numa identidade fundamental, em que as camadas mais jovens estão muito fragilizadas de várias formas. É importante ainda perceber que em Portugal ainda existe muita violência contra jovens no contexto doméstico também. Há muitas famílias que rejeitam os seus filhos e as suas filhas por causa da sua identidade, isto é uma problemática social a qual devemos lidar de forma imediata e urgente.
Tem o Estado Português, no que diz respeito às políticas sociais, contribuído para algum tipo de abertura neste nível?
Acho que já fui respondendo um pouco a isso. É claro que o Estado e a Lei têm um papel fundamental na proteção, mas também podem ter um papel pedagógico. Eu recordo-me que muitas pessoas questionaram, na altura que foi debatida a igualdade no casamento, mas também quando foram debatidas leis sobre a parentalidade das chamadas “famílias arco-íris”, se as pessoas estavam preparadas, se a sociedade portuguesa estava preparada. Aí, de facto, o Estado Português pode ter um papel pedagógico. Não são assuntos, ao contrário do que algumas pessoas dentro da Assembleia da República afirmavam na altura, referendáveis, porque são direitos humanos. A lei pode ter um papel fundamental, embora muitas vezes não consiga acompanhar o ritmo das mudanças. É este quase “paradoxo” em que quando se reconhece a igualdade isto tem um impacto social profundo, e é possível ver isso pelos valores das novas gerações, pelo tipo de questões que as pessoas mais jovens colocam numa atividade sobre a homofobia ou transfobia, ou questões LGBTQIA+ nas escolas, que são radicalmente diferentes das questões, reações e atitudes que existiam há 20 anos atrás, quando eu pessoalmente comecei a visitar algumas escolas a falar da temática. Isso é um resultado direto da aplicação de leis, do reconhecimento de direitos. Agora existe também muito trabalho a fazer no plano social, no quotidiano, a começar pela divulgação dos direitos. Há pessoas que não conhecem os seus próprios direitos e não sabem que podem e devem fazer denúncias e que não reconhecem ainda. Houve ainda um trabalho muito grande de sensibilização das forças de segurança- agora já é seguro fazer essas denúncias, mas ainda existe essa expectativa de discriminação. Há algum trabalho adicional a fazer de campanhas que possibilitem ler os serviços de saúde, de segurança e de escolas como espaços seguros, e isso ainda não está a acontecer. Não existe essa visibilidade. Existem muito poucas escolas que assinalam o dia mundial de luta mundial contra a homofobia, bifobia e transfobia, e já vi, mas são raros os centros de saúde que têm imagens de famílias não heterossexuais. Essas imagens fazem com que um/uma utente de um serviço de saúde que se dirige àquele espaço se sinta reconhecido, sinta essa identificação. É fundamental para contrariar essa expectativa de que vai ser discriminado, porque se eu for a um centro de saúde e não saber como é que a outra pessoa vai ler a minha experiência, e existem dados de saúde sobre isso, eu posso partir do princípio, por alta preservação e segurança, de que ela vai reagir mal, e portanto eu não vou falar da minha vida, da minha identidade e dos meus relacionamentos. Existem muitos relatos nesse sentido, e sobretudo se estivermos a falar de pessoas trans a experiência ainda é muito pior, com serviços de saúde em particular. Mas Portugal e outros países têm feito um caminho que, em bom rigor, começou em 1982 com a descriminalização da homossexualidade, 8 anos depois do 25 de abril, portanto, não foi uma coisa imediata, e só em 2001, com a primeira lei sobre uniões de facto, que já reconhecia união de casais com pessoas do mesmo sexo, é que de facto se começou o percurso com alguns marcos importantes que já fui referindo: a introdução do art.13º na CRP no princípio da igualdade da não discriminação em função da orientação sexual, depois o Código de Trabalho, o Código Civil, a violência doméstica e, em 2010, a igualdade no casamento que foi um marco histórico e depois a lei da identidade de género. Portanto, felizmente já temos um património de enquadramento de reconhecimento de direitos que nos coloca, naquele mapeamento anual da ILGA IURE, creio que em sétimo lugar neste momento. Claro que é um mapeamento que apenas reconhece aquilo que está plasmado na lei. Agora falta implementar e há muito trabalho a fazer para que a igualdade aconteça no dia-a-dia e em todos os contextos.
Comparando com os outros países, considera que Portugal ainda se apresenta como um Estado fortemente conservador? Se sim, de que forma se pode combater esse conservadorismo?
Eu pessoalmente já não tenho essa leitura de Portugal como um Estado conservador, tendo em conta a evolução que aconteceu. Essa leitura ainda não é muito clara para muitas pessoas de que esses direitos já existem, já estão reconhecidos, que a discriminação homofóbica e transfóbica estão reconhecidas na lei e que, portanto, se podem fazer denúncias porque não se pode ser discriminado no local de trabalho por se ser homossexual ou transsexual, tenho de ter os mesmos direitos no acesso a cuidados de saúde, etc. Existem de facto algumas áreas onde ainda podemos melhorar, uma delas é de facto a implementação de medidas concretas de legislação para a regulamentação e depois para a aplicação das leis, e falhamos bastante nessa aplicação. Basta pensar nas questões de igualdade de género que já são há muito mais tempo debatidas e ainda continuamos a ter assimetrias muito grandes. Importa relembrar, sobretudo nesta altura do 8 de março, mas, para sintetizar, é importante legislar sobre as terapias de conversão, banindo qualquer tipo de tentativa de conversão da identidade sexual ou de género das pessoas. Isso é algo que deve ser legislado urgentemente. É importante também aumentar os mecanismos de combate e legislar sobre a discriminação em função da orientação sexual, da identidade de género, das características sexuais, de pessoas inter sexo e ainda garantir o acesso a cuidados de saúde a pessoas trans e não binárias de forma a que se reconheça a sua autodeterminação. Estas são, acho eu, neste momento, as prioridades em termos do que ainda não está previsto na lei portuguesa. Mas existe todo um conjunto de mecanismos de proteção que já estão na lei e que cabe a todas as pessoas também fazer acionar, através de denúncias, de participação cívica.
É importante também reforçar o papel dos aliados ou das aliadas, e esse é um projeto que é muito caro e em que estive envolvido, de tentativa de criação dessas pessoas aliados e aliadas, portanto, pessoas que não fazem necessariamente parte da comunidade LGBTQIA+, mas que são contra a discriminação e que querem ter um papel ativo na luta pela igualdade. É importante reforçar esse papel. E isso é um trabalho coletivo, não é só um trabalho do Estado, não é só um trabalho das organizações LGBTQIA+, não é só um trabalho das pessoas LGBTQIA+, é um trabalho de todas as pessoas que acreditam na igualdade e na não discriminação.
Às vezes quem faz ciência e investigação nas áreas das ciências sociais e também quem trabalha ou teve algum papel nos movimentos, nas associações e no ativismo, às vezes caem na armadilha de olhar só para o lado negativo das coisas. Eu caí muito nessa armadilha e reconheço isso também. É importante também olhar para o lado positivo de ter uma identidade não normativa, de ter uma identidade lésbica, gay, bissexual, trans, interssexo, não binária, assexual, queer, género fluída… É algo que pode ser lido de forma positiva, é um contributo para a diversidade social, que pode trazer espaços de liberdade que não existiram anteriormente e muitas vezes com o intuito de combater a discriminação e de reconhecer direitos. Também se cai um pouco na armadilha de não olhar para a diversidade, para a riqueza e para aquilo que em alguns estudos começa a ser pela idade de Capital Queer, que é o lado positivo da resiliência, de haver pessoas com identidades que não fazem parte da norma, que resistem à norma, e que com isso enriquecem a sociedade.
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