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Foto do escritorJoão Vilas Boas, Maria da Conceição Ramalho

Espaço Alumni – Entrevista ao Doutor Ary Ferreira da Cunha

PARTE I


1. O seu percurso académico é digno de registo. Licenciou-se pela FDUP e concluiu o mestrado e o doutoramento pela mesma instituição. Não se tratando o aprofundamento académico da escolha mais frequente de carreira, o que o levou a tomá-la e quais as maiores adversidades que enfrentou?


Todas as escolhas são fruto de contextos. Tanto que nem sei bem se são escolhas. No meu caso, nasci numa família de professores, sempre fui um miúdo curioso, e a FDUP foi e é um dos grandes amores da minha vida. Portanto, foi natural para mim ir da licenciatura para o mestrado e do mestrado para o doutoramento.


Mas a vida poderia ter dado outras voltas: entre a licenciatura e o mestrado tive alguns convites tentadores para me juntar a algumas sociedades de advogados e entre o mestrado e o doutoramento pensei em estudar políticas públicas no Reino Unido. E provavelmente teria feito alguma dessas coisas se não fosse o debate competitivo.


No final da licenciatura surgiu um patrocinador interessado em apoiar a fusão entre a Sociedade de Debates da FDUP e o Clube de Debates da FEP e assim surgiu a Sociedade de Debates da Universidade do Porto. Lançar um grupo à escala da Universidade (com mais de 70 actividades por ano) e depois percorrer o país a apoiar o nascimento de uma dezena de outras sociedades de debates tornou-se um desafio que consumiu grande parte da minha vida durante os anos seguintes. E teria sido impossível conciliar esse desafio com um trabalho de advogado.


Quanto ao mestrado e doutoramento em si, tive – como toda a gente – os meus momentos de angústia e dúvida, mas, em geral, foram experiências muito felizes. Sei que esta experiência diverge da de muitos doutorandos, talvez em parte, porque tive uma bolsa da Fundação para Ciência e Tecnologia (FCT). Isto permitiu-me estudar exatamente o que queria durante 4 anos, com o apoio de pessoas de que gostava e admirava, e ainda ter a oportunidade de viver em Oxford e em Utrecht. Tenho a noção que isto foi um enorme privilégio e, por isso, também uma grande responsabilidade.


2. Quais são os conselhos que forneceria aos estudantes para «vingarem» na área do Direito? O que diria a quem quer seguir um percurso parecido com o seu?


Não sei se eu próprio “vinguei” na área do Direito – acho que não – mas talvez por isso tenha uma perspectiva diferente da maioria dos meus colegas. 


Em primeiro lugar, diria para viverem a Universidade intensamente. Sei que pode não parecer agora, mas se há coisa que o fado académico nos ensina é que este tempo da Universidade é belo e breve demais para ser desperdiçado. Se não levarem alguns “segredos desta cidade” convosco, foram mesmo estudantes, ou só alunos e alunas?


Em segundo lugar, estudem vorazmente – particularmente nos primeiros anos. As cadeiras dos primeiros anos do curso ensinam as bases para tudo o resto. Se tiverem boas bases e hábitos de estudo, tudo o resto se torna muito mais fácil.


Em terceiro lugar, não vejam o Direito como uma prisão intelectual ou profissional. Intelectualmente, porque o Direito é uma forma de pensar o mundo, mas há outras e algumas talvez mais ajustadas a pensar em certos problemas. Profissionalmente, porque ter um curso de Direito não significa ter uma carreira associada ao Direito: há outros caminhos e muitos serão mais felizes traçando outros caminhos.


3. As suas teses de mestrado e doutoramento versam sobre a corrupção e responsabilidade dos governantes. Sinteticamente, quais são os pontos fundamentais desta temática tão complexa?


A tese de Mestrado é sobre políticas públicas de combate à corrupção. Essencialmente olha para o problema da corrupção sobre uma perspectiva jurídico-económica e explora as causas e consequências da corrupção antes de identificar políticas públicas que podem ajudar no seu combate. A parte central da tese é uma discussão sobre o papel das diferentes políticas no combate à corrupção. Por exemplo, o aumento de vencimentos, separação de poderes, controlo mediático, transparência, competição, ou a responsabilidade civil e criminal.


A tese conclui que: 1) o combate à corrupção tem de ser entendido sobretudo como um processo de alteração dos contextos institucionais em quem ela floresce, 2) não há soluções de pronto-a-vestir e políticas bem sucedidas de combate a corrupção tendem a ajustadas aos contextos em que são executadas, 3) todas as políticas têm as suas desvantagens e não podemos tornar o sistema político totalmente ineficiente em nome do combate à corrupção, 4) líderes que fazem do combate à corrupção uma prioridade podem fazer a diferença, sobretudo se entenderem os pontos anteriores, e 5) cidadãos bem informados e participativos ajudam a combater a corrupção elegendo melhores líderes e mantendo-se vigilantes fora dos contextos eleitorais.


A tese de doutoramento adota também uma perspetiva jurídico-económica das políticas públicas, mas procura responder a uma questão mais vasta: “como podemos fazer com que os políticos façam aquilo que deveriam fazer?”.

O primeiro passo é perceber afinal o que deveriam os políticos fazer. Na tese concluo que a Constituição Portuguesa estabelece um padrão normativo que exige que os políticos 1) promovam uma noção de interesse público baseada em preferências, 2) respeitem expressões da soberania popular, 3) prestem contas, 4) sejam responsabilizáveis, e 5) respeitem o princípio do Estado de Direito.


O segundo passo é perceber por que é que esse padrão normativo é violado. Concluo aí que não é apenas a corrupção que é um problema, mas também a desonestidade, a ignorância, a incompetência, a esquivança, a desinformação, a ineloquência, a tirania, a indolência, a evasão à culpa e a reivindicação indevida de mérito. 


O passo final é perceber como defender o padrão normativo. Essa é a parte mais extensa da tese, em que avalio dezenas de diferentes políticas e estratégias e proponho algumas soluções para o problema no contexto português. Mas, em resumo, defender o padrão normativo requer encontrar um equilíbrio entre graus de implementação de diferentes políticas que reduzam a discricionariedade, a não coincidência de interesses e as assimetrias de informação.


Ambas as teses estão na biblioteca, a tese de mestrado foi publicada pela Quid Iuris, e a RTP fez um pequeno documentário sobre a tese de doutoramento que podem ver online. Em conjunto são cerca de 800 páginas, mas passem-lhes uma vista de olhos e depois digam-me depois o que acharam. É fácil encontrar-me online.


4. Atualmente, trabalha como consultor na área das políticas públicas. O que o fez seguir este caminho e no que incide particularmente o seu trabalho?


Como dizia Marx, “os filósofos preocupam-se em interpretar o mundo de várias formas, mas a questão é mudá-lo”. Eu adorava investigar e dar aulas, mas sentia que o impacto que um jovem investigador e professor pode ter no mundo é limitado.


Um dia, conheci um dos grandes especialistas mundiais em políticas de combate à corrupção, o Professor Robert Klitgaard, e ouvi-o a falar da experiência que ele tinha tido como consultor ao serviço de diferentes governos e organizações internacionais e pensei que, se calhar, também poderia fazer algo parecido e assim dar um contributo para melhores políticas públicas – o que, no fundo, era aquilo que também queria fazer como académico.


O meu trabalho é ajudar governos a tomar decisões em temas relacionados com o desenvolvimento económico. Por exemplo, como combater o desemprego, atrair investimento, promover a surgimento de novas indústrias, aumentar a produtividade, proteger os mais vulneráveis, criar um sistema fiscal justo e eficaz, elaborar orçamentos alinhados com as prioridades do país, ou gerir os níveis de investimento e de dívida pública. Em alguns casos, trabalho também na implementação dessas decisões. Nos últimos anos, tenho-me focado em desenvolver soluções mais analíticas ou quantitativas para alguns destes problemas.


Um consultor não toma decisões sobre estes temas. O seu trabalho é falar com especialistas, olhar para o que outros países fizeram, ler artigos científicos e usar dados para tentar prever o que pode acontecer em diferentes cenários. No final, apresenta uma síntese do que encontrou, os prós e os contras, os riscos e as oportunidades subjacentes a diferentes alternativas para resolver um problema. Este processo permite documentar decisões mais informadas.


Em algumas dimensões, é um trabalho semelhante ao de um académico porque implica muita investigação e um esforço para ser objetivo e imparcial, mas implica ainda um ritmo de trabalho mais acelerado, um contacto mais próximo com os decisores, uma capacidade para encarar os problemas de forma mais pragmática.


5. Exerce a sua profissão nos Emirados Árabes Unidos; o que o levou a enveredar por uma carreira internacional e qual a aprendizagem essencial que reteve neste âmbito?


Comecei a minha carreira de consultor em Portugal, mas percebi que aqui as políticas públicas são preparadas sobretudo por equipas dentro de cada ministério. Este não é um sistema necessariamente pior – é certamente mais barato – mas torna mais difícil para quem não fez uma carreira política trabalhar com estes temas.


Felizmente, a minha empresa ajudou-me a encontrar projetos noutros países na Europa, em África e no Médio Oriente que me permitiram ir aprendendo mais sobre desenvolvimento económico. A certa altura, como nunca estava em Portugal, percebi que fazia mais sentido ir para perto dos meus clientes.


Mas mesmo depois de sete anos “na estrada” e cinco anos no Dubai, a minha casa continua a ser o Porto. Acho que é um privilégio imenso poder contribuir para o desenvolvimento de um país – sobretudo como estrangeiro. Estou muito grato às pessoas de todos os países com que trabalhei por acreditarem em mim e tento todos os dias ser merecedor dessa confiança. 


Contudo, o Porto é a minha casa e acho que sempre será. Não há cidade como esta: as águas do rio a brilhar ao final da tarde, as casas coloridas e as claraboias como periscópios sobre os telhados, os azulejos da cor do meu clube do coração. O mar revolto da Foz numa noite de dezembro; a surpresa de ver os jacarandás a florir pela primeira vez numa manhã de maio; um pôr-do-sol de julho nas Virtudes ou no Jardim do Morro; o chão do Palácio de Cristal pintado de vermelho, castanho, e amarelo num final de setembro.


E as pessoas! Os abraços genuínos, os palavrões, as conversas com desconhecidos pela baixa à noite de copo na mão, a lata de andarmos às marteladas uns aos outros no São João. Mal posso esperar por estar de volta. Já falta pouco!


6. Quais são os aspetos positivos e negativos de trabalhar no estrangeiro? Mais concretamente, como é trabalhar no Dubai, visto que é uma cidade com uma matriz cultural diferente das portuguesas?


Acho que já fui abordando alguns destes temas na resposta anterior, mas acho que a grande aprendizagem que tive ao trabalhar com pessoas de dezenas de países é que, no essencial, somos todos muito parecidos. O leque de emoções que sentimos ao longo da vida é fundamentalmente o mesmo: não são só os portugueses que conhecem a saudade, ainda que só nós lhe demos esse nome.


No fundo, queremos ser felizes, sentir-nos seguros, proteger as nossas famílias. Todos buscamos um significado nas nossas vidas e um sentido de pertença a algo maior; queremos receber bem e respondemos a generosidade com generosidade.


Nunca conheci alguém de uma cultura sem humor, sem música, ou sem poesia; ou de uma cultura que não celebrasse a vida, ou fizesse luto na morte, ou que olhasse o céu noturno sem deslumbramento.


Todas as crianças brincam despreocupadamente, toda a comida das avós sabe a infância e todas as mães são as melhores do mundo.


João Vilas Boas

Maria da Conceição Ramalho

Departamento Grande Entrevista




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