A vida adulta é certamente marcada pela maturidade, pelos nossos deveres e pelas responsabilidades que temos que assumir. O processo de transição para a maioridade nem sempre é um processo fácil, isto porque estamos habituados a sermos crianças, livres e unicamente preocupados em brincar e em não perder o nosso programa de televisão preferido e, de repente, precisamos de nos preocupar com impostos, relacionamentos, contas, trabalho e os estudos, que se tornam cada vez mais importantes.
A infância seria a idade de ouro das nossas vidas, e por ser um período tão importante para o desenvolvimento da nossa personalidade e atendendo à especial vulnerabilidade dos menores, a Constituição protege-a nos artigos 69.º e 70.º. Consagra-se, assim, uma espécie de direito à infância, onde se prevê que as crianças têm o direito de serem protegidas pelo Estado contra todas e quaisquer formas de abandono, de discriminação e de opressão.
Muitos são os diplomas legislativos que procuraram concretizar, densificar e desenvolver estes preceitos constitucionais. De todos, importará dar destaque para dois deles, nomeadamente a Lei da Proteção de Crianças e Jovens em perigo (Lei n.º 147/99, de 01 de setembro) e o Estatuto do Aluno e Ética Escolar (Lei n.º 51/2012. De 05 de setembro). A partir desta análise, poderemos concluir até que ponto encontra-se o interesse das crianças devidamente tutelado pelo Direito e se podemos afirmar a existência de um verdadeiro e efetivo direito à infância.
Em primeiro lugar, no que toca à Lei da Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, trata-se de um conjunto de regimes que podem ser adotados com vista a proteger a criança ou o jovem que necessite de uma intervenção imediata do Estado para ver a sua integridade física e/ou psíquica salvaguardada. A necessidade de proteção advém da existência de um ambiente hostil, caracterizando um perigo atual ou iminente que ameace o bom desenvolvimento da criança.
Quando se está diante destas situações, as entidades competentes podem (e devem) mover as medidas que considerem necessárias para defender e garantir os direitos das crianças e proteger e tutelar o seu superior interesse. Estas medidas estão elencadas no artigo 35.º, podendo ser divididas e classificadas em dois grupos diferentes.
Por um lado, temos as medidas no meio natural de vida, onde se pretende que as crianças beneficiem de um desenvolvimento ainda em contexto familiar ou muito próximo disso.
Fazem parte deste grupo de medidas o apoio junto dos pais, em que se proporciona à criança ou jovem apoio de natureza psicopedagógica e social e, se necessário, apoio económico (artigo 39.º); o apoio junto de outro familiar, onde coloca a criança ou o jovem sob a guarda de um outro familiar (artigo 40.º); a confiança da criança a pessoa idónea, colocando a criança ou o jovem sob a guarda de uma pessoa que, ainda que não pertença à família, nutre uma relação de afetividade pela criança que é recíproca (artigo 43.º); e, por fim, o apoio ao menor para a autonomia de vida, onde se proporciona diretamente ao jovem, com idade superior a quinze anos, apoios económicos e acompanhamento psicopedagógico e social, oferecendo condições que o habilitem a viver por si só (artigo 45.º).
Todas essas medidas referidas têm a duração estabelecida no acordo ou na decisão judicial, não podendo ser, em hipótese nenhuma, superior a um ano – salvo a exceção dos casos em que o interesse da criança ou do jovem exigir uma prorrogação para até o máximo de 18 meses. O regime quanto à duração das medidas vem previsto no artigo 60.º.
Por outro lado, temos ainda as medidas de colocação, que retiram a criança do seio familiar. Neste grupo, por sua vez, integram as medidas de acolhimento familiar, atribuindo a confiança da criança ou do jovem a uma pessoa singular ou a uma família de modo a proporcionar a sua integração em meio familiar e prestar cuidados adequados às suas necessidades (artigo 46.º); e o acolhimento residencial, que consiste na colocação da criança ou jovem aos cuidados de uma entidade que disponha de instalações, equipamentos de acolhimento e recursos humanos permanentes, devidamente dimensionados e habilitados que lhes garantem cuidados necessários (artigo 49.º).
A duração das medidas de colocação é aquela que for estabelecida e fixada no acordo ou na decisão judicial, conforme o artigo 60.º, não havendo nestes casos, contudo, um limite de duração máxima imposto pela lei.
Evidentemente, essas medidas possuem pesos diferentes entre si e devem ser aplicadas de maneira proporcional ao caso concreto. Por exemplo, a lei exige que se deve preferir o acolhimento familiar em alternativa ao acolhimento residencial, justamente por este último ser muito mais restritivo. No entanto, apesar disto, a regulação do acolhimento residencial não é, por isso, a melhor.
O problema começa com a falta de limitação de um prazo máximo pela qual a criança possa permanecer residencializada, conforme já mencionado. Não em raras situações, algumas crianças passam dois, três ou quatro anos da sua infância em casas de acolhimento.
Há um acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2014 que manifesta o pensamento de que este não é o desejável, justamente porque a institucionalização deve ocorrer durante o menor tempo possível, de modo a evitar tudo o que de prejudicial acarreta para o desenvolvimento das crianças. Até porque, aliás, estudos já comprovaram os efeitos negativos, quer a nível emocional, quer a nível neurológico, que afetam as crianças e jovens que permanecem muito tempo residencializadas em casas de acolhimento. O acórdão conclui dizendo que um colo institucional nunca será, não importa o tamanho dos recursos, tão íntimo, cuidadoso e afetuoso quanto o de uma família.
É preciso ter em atenção que não está em causa um processo sobre a aquisição de um direito, ou sobre a nulidade de um contrato e, nem mesmo, sobre a compra e a venda de um imóvel. É preciso ter em mente que está em causa um processo sobre a vida e o futuro de uma criança que se encontra em perigo e, justamente por isso, reclama por um cuidado urgente e célere.
Apesar de serem muitas as causas desta excessiva morosidade no processo, algumas das quais importa referir são a própria insistência do tribunal em recuar e tentar outra vez as medidas de apoio junto das famílias que, em outra altura, já se provaram ineficazes; e o próprio atraso dos pedidos dos tribunais a outras entidades, como por exemplo o pedido de relatório de psicólogos para atestar o impacto dos factos na saúde mental da criança ou do jovem.
Apesar de partir do senso comum que a infância é a melhor época da nossa vida, idade de felicidades e isenta de responsabilidades, quando o suposto era estarmos no conforto da nossa família, como é possível – e sequer concebível – que uma criança permaneça tanto tempo assim nas casas de acolhimento?
Isto sem contar que ainda dentro do âmbito do processo, por vezes, os advogados que vão representar o suposto interesse superior da criança nem se dão ao trabalho de aparecer na residência para conhecer a pessoa que vão representar diante de um tribunal. Parece, pois, que demonstram pouco ou nenhum interesse em saber a história que está por detrás daquela pessoa que terá sua vida mudada por um julgamento.
Em segundo lugar, será preciso abordar, ainda que brevemente, o Estatuto do Aluno e Ética Escolar, aprovado pela Lei n.º 51/2012, de 05 de setembro. O Estatuto tem por objetivo estabelecer direitos e deveres dos alunos dos ensinos básico e secundário, bem como promover o mérito, a assiduidade, a responsabilidade, a disciplina e a integração dos alunos na comunidade educativa e na escola.
Logo no artigo 7.º do Estatuto, são elencados uma série de direitos do aluno, nomeadamente e a título de exemplo, o direito de ser tratado com respeito, o direito de não ser discriminado, o direito de ver salvaguardada a sua segurança na escola e respeitada a sua integridade física e moral.
Apesar do que diz o Estatuto, parece muito utópico se formos comparar com aquilo que efetivamente acontece na prática. Segundo a PSP, foram registadas 2.847 ocorrências criminais de bullying, incluindo para estes efeitos tipos criminais que vão desde injúrias e ameaças a até mesmo agressões. E estes são apenas os casos em que, efetivamente, houve queixa. E isto sem contar com os casos de assédios e violações sexuais que, infelizmente, ainda acontecem em contexto escolar.
E estas situações não são controladas, nem respondidas pela administração das escolas que, em muitas das vezes, as medidas que adotam ou são ineficazes ou simplesmente nem existem.
Na verdade, muito mais além do que isto, a própria escola e os funcionários não estão, de todo, preparados para lidar com as necessidades das crianças, e isso passa-se em várias dimensões, mas vamos aqui limitar-nos a dar um exemplo: em particular, os casos em que os funcionários obrigam a criança a alimentar-se nas cantinas, ainda que contra a sua vontade. E isto não é uma forma de educação, mas sim uma forma de violência que apenas transforma a experiência escolar em algo desagradável e traumático. A escola acaba, por isso, tornando-se num ambiente hostil, ao invés de ser o local onde a criança deveria sentir-se segura e respeitada.
Assim, pergunta-se, até que ponto podemos falar que, de facto, existe um verdadeiro respeito pelo direito das crianças. Questiona-se se não poderiam (e deveriam) ser adotadas melhores atitudes e posturas diante destas situações, de modo a concretizar a tutela da infância. Sem prejuízo da notável evolução que se fez e que se faz notar, ainda assim, há algum caminho a percorrer para que possamos afirmar que, de facto, e sem quaisquer dúvidas, podemos falar e afirmar a existência de um direito à infância.
David Savignon
Departamento Fazer Pensar
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