A grande estreia da primeira produção nacional para a Netflix carregava consigo uma expectativa gigante, principalmente por ser nossa, portuguesa. Algum patriotismo bacoco surgiu, certamente, na noite de sexta-feira, dia cinco de novembro. Algo perigoso, porque muitas vezes nos cega e impede de ver com clareza o que está à nossa frente. Não obstante, e sendo sincero, creio que desta vez a Netflix acertou em cheio e podemos estar abertamente orgulhosos do resultado: Portugal está no mapa com uma trama intrigante, de índole histórica, que nos leva ao paroxismo do suspense e aos confins da dor. Permitam-me que explique.
Glória passa-se na década de 60, num ambiente de Guerra Fria onde Portugal acaba por ser estratégico ao Ocidente por razões meramente geográficas – dado que em termos ideológicos e práticos as desavenças eram conhecidas (não esqueçamos os vários plenários da ONU onde os EUA apelaram ao fim da guerra do Ultramar e à libertação das colónias), apesar do common ground existente no que à luta ao comunismo concerne. Este ambiente cria a necessidade americana de construir uma base para transmitir propaganda capitalista para lá da Cortina de Ferro, a Rádio Retransmissão (RARET).
Esta base – que ainda se encontra no Ribatejo – será o centro do enredo, onde se desenrolam os problemas e para onde vai trabalhar a nossa personagem principal: João Vidal, um jovem aristocrático, filho do regime, muito bem parecido e interligado na sociedade – o clássico herói romântico: rebelde, livre e don juanístico. Ao longo dos dez episódios compreendemos que João, por vontade própria, faz serviço militar em Angola, onde se depara com enormes atrocidades que o deixam gravemente marcado (mentalmente) e levemente ferido (fisicamente). Descobre também propaganda comunista, que, presumimos nós, o seduz de alguma forma, dado que este, no seu regresso, passa a ir a reuniões secretas do Partido Comunista Português.
Ora, até agora estamos no campo do altamente provável e até conferível através de documentos históricos, mas o drama e a ficção começam quando percebemos que João Vidal não é um mero “Engenheiro” e ex-combatente. De alguma forma – resta-nos ainda descobrir como – tornou-se espião ao serviço dos soviéticos e dada a sua proeminência e estatura social, consegue alcançar meios muito apetecíveis a Moscovo. Este suspense e ação pode manter a televisão ligada para muitas pessoas, mas não será certamente toda a história que os criadores quiseram contar, ou até a história que eu senti relevante ao visualizar a série. O importante estava em coisas subtis, em personagens de certo modo secundárias e em frases obscuras e repentinas: aí encontramos o retrato de uma Nação.
Por onde começar? Sem prejuízo de atender logo ao “elefante na sala”, o mais óbvio é, com certeza, o mais alarmante: falo, pois, do machismo e patriarcado enraizado e personificado por Ramiro, um Engenheiro que trabalha e lidera os portugueses na RARET. Esta personagem representa uma realidade na sociedade portuguesa da época (e, infelizmente, não só): o marido abusivo e controlador, que pretende a atenção inquestionável da mulher, que a obriga a ser unicamente dependente de si (aprendemos que a sua mulher, antes de casar com ele, era enfermeira), que a viola, maltrata, humilha e destrói, tudo até ao ponto de esta não ter alternativa senão fugir.
Passando pela Guerra Colonial, que separa jovens casais (a trágica história de Carolina e Fernando é das mais duras da série), que manda rapazes completamente impreparados para outro continente lutar por algo em que não acreditam. Mostra-nos a “solução” que muitos consideraram e tentaram ex ante, indo “de salto” até à França, e ex post, com verdadeiros tiros no pé. Revela atrocidades que os soldados portugueses cometeram e a dor que causaram no seu próprio psicológico e na comunidade local. Mostra a pobreza, a vida simples que muitos vangloriam hoje, mas que na verdade não passava de miséria total. Mostra a divergência dentro do regime, seja no que toca à Guerra Colonial, seja na economia, seja na liderança salazarista: ao primeiro momento de fraqueza, todos fizeram fila para assumir o seu lugar. Mostra a interferência e influência americana, que, apesar de termos feito dela algo meramente irrisório, era real. Mostra os abusos e métodos inumanos utilizados pela PIDE, a tortura, a mentira e as confissões forçadas, fazendo-nos recordar o que aprendemos da Inquisição. Mostra um país sem liderança e sem rumo, que sociologicamente era pobre, religioso e triste. Mostra um país completamente diferente do que temos hoje, mas reconhecível em vários aspetos.
Dito isto, se o ambiente e a mentalidade eram diferentes, muitos pensamentos mantêm-se relevantes e uma frase em especial, dita pelo chefe da RARET, o americano James, em resposta ao clássico “vivemos tempos especiais”, ficou-me marcada: “Everybody belives they live through a special time. It’s our need to feel relevant”. James tem toda a razão e a prova disso é que, várias décadas depois, o sentimento repete-se: achamos que este momento e a nossa geração vive uma época especial. Estaremos só à procura de significado? De algo que nos torne relevantes numa longa história que segue milhões de anos para trás e um número indefinido pela frente? Talvez. Mas esse sentimento mantém-nos vivos e séries como esta mantêm-nos funcionais.
Glória surpreende pela sua veracidade, pelo realismo que antes apenas líamos em livros de história. É fácil notar as raízes de muitos dos nossos problemas atuais e mais fácil ainda ver a evolução que fizemos. Portugal está no mundo de streaming com um autorretrato histórico, um que nos deixa, ao mesmo tempo, orgulhosos e envergonhados: orgulhosos pelo resultado final, pela qualidade de uma série portuguesa; e envergonhados pelo seu conteúdo, pela pobreza da nossa sociedade, a ignorância dos nossos políticos, a brutalidade da nossa polícia e o racismo dos nossos soldados; um Portugal que queremos certamente deixar para trás, aprendendo dele o estritamente necessário para nos tornarmos numa sociedade melhor.
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