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Foto do escritorHugo Almeida

Haiti: a tragédia invisível dos últimos dois séculos

Mais de 2.500 mortos, só entre janeiro e agosto o número de deslocados internos, de famílias obrigadas a abandonar os seus lares ronda os milhares todas as semanas [1]. São números que retratam a alarmante situação humanitária no Haiti, considerado o país mais pobre do hemisfério ocidental [2], e, sobretudo, em Port-au-Prince, a capital do estado caribenho, onde 90% da área metropolitana encontra-se sobre controlo de gangues (dados de setembro de 2023) [3]


Visto de fora, o Haiti parece ser um país a saltar de tragédia em tragédia, desde o cataclísmico terramoto de 2010 ao furacão Matthew em 2016, tragédias que têm tanto de catástrofe humana como natural e são um sóbrio reflexo de como o nível de pobreza é tão ou mais determinante no impacto de uma tragédia do que a geografia física. É crucial, no entanto, resistir à banalização destes eventos e não adotar uma postura determinística face às vidas de 11 milhões de haitianos.


Das correntes de ferro à corrente da dívida


Compreender a história do Haiti dá-nos luzes para compreendermos os problemas estruturais e institucionais que, desde a sua independência, avassalaram o país.

Nascido de uma Revolta de Escravos [4] (1791-1804) contra a administração colonial francesa de Saint-Domingue,  foi o primeiro Estado independente da América Latina e o primeiro do continente a abolir a escravatura. Os seus primeiros presidentes (incluindo o primeiro líder, Jean-Jacques Dessalines, autoproclamado Imperador e deposto por despotismo) foram ex-escravos.


A independência do Haiti não foi inicialmente reconhecida por nenhuma nação europeia. Os Estados Unidos da América (EUA), sob John Adams, tentaram isolar o país economicamente [5]


As tensões também eram altas com a colónia do outro lado da ilha de Hispaniola, Santo Domingo (atual República Dominicana), que chegou a estar sob o domínio haitiano entre 1821 e 1844, lutou uma longa guerra para conquistar a sua independência. Apesar de ocupar 2/3 do território da ilha, a população dominicana era vastamente inferior e composta por descendentes europeus e mulatos, já o lado francófono era maioritariamente composto por descendentes de escravos. Em 1937, o ditador dominicano Rafael “El jefe” Trujillo, ordenou a morte de entre 12 mil a 30 mil haitianos na fronteira. Massacre que até hoje é uma nódoa nas relações bilaterais.


Imagem 1: L’Abolition de l’esclavage dans les colonies françaises en 1848. Quadro de François-Auguste Birard


Em 1825, a França e o Haiti chegaram a um acordo: em troca de reconhecimento da soberania haitiana e cessação de tentativas de reconquista da ex-colónia, o Haiti deveria pagar à França uma indemnização de 150 milhões de francos por danos contra a propriedade (incluindo escravos libertos), pagos em prestações anuais, com juros avultados, à banca francesa. O primeiro pagamento de 30 milhões de francos seria seis vezes superior ao PIB anual. Para fazer face ao serviço da dívida, a jovem nação endividou-se ainda mais. Um só banco, o Crédit Industriel et Commercial (CIC), que detinha o Banco Nacional do Haiti (BNH) controlava grande parte dos ativos nacionais, e distribuía fundos haitianos entre os seus acionistas, a retornos anuais de 15%, sem que nem um cêntimo voltasse ao Haiti. Só o custo das comissões bancárias cobradas era superior ao orçamento anual do Haiti para obras públicas [6]. As estimativas do custo da dívida soberana para a economia haitiana vão desde 21 aos 115 mil milhões de dólares.


Entre 1915 e 1935, os EUA ocuparam militarmente o Haiti. A intervenção foi motivada pelo lobby do National City Bank, por receio de um alegado incumprimento iminente (default) das obrigações de dívida soberana. Foi abolida a proibição constitucional a estrangeiros de serem proprietários [7] e instaurado um sistema de trabalho forçado (corvée), no interesse do crescimento económico para pagar a dívida.


Estes factos podem explicar o porquê da pobreza e subdesenvolvimento do Haiti, mas o fenómeno contemporâneo da ubiquidade da violência de gangues teve uma origem mais circunscrita e ainda mais sombria.


Dos “zumbis” de Duvalier às “Chimères” de Aristide


Entre 1957 e 1971, o regime autocrático de François Duvalier (mais conhecido por Papa Doc [8]) recorria ao uso indiscriminado de milícias paramilitares e esquadrões da morte para perseguir, torturar e eliminar a oposição, através de execuções extrajudiciais. 


A mais infame destas milícias foi a Tonton Macoute, que serviu de polícia secreta e guarda pretoriana de Papa Doc desde o golpe fracassado de 1958 [9], que levou a uma purga do exército e das forças de segurança e à execução de inúmeros quadros das forças armadas. Inicialmente formada por milicianos rurais, chamados de Cagoulards (os encapuzados), foram renomeados Voluntários da Segurança Nacional (VSN) em 1962 e durante duas décadas tiveram carta branca do regime para cometerem violações e abusos de direitos humanos sistemáticos, como o apedrejamento e emulação, em praça pública, de opositores políticos, ainda vivos.


O nome Tonton Macoute deriva de uma figura do folclore haitiano. Tratava-se de uma figura parecida com o nosso “bicho papão” ou “velho do saco”, que raptava crianças mal comportadas. Era uma sombria alusão à prática de desaparecimentos forçados (um crime contra a humanidade, segundo o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, que consiste na abdução, rapto ou detenção sistemática de populações, frequentemente torturas, culminando numa morte anónima, não sendo as vítimas nunca mais vistas).


A tradição folclórica, em especial o Vodu, foi usado pelo regime de Papa Doc como instrumento de controle, inspirado pela sua leitura de Jean Price-Mars, autor que celebrou a négritude, um movimento literário e artístico pan-africano, e viu a religião afro-caribenha como meio de afirmação das raízes africanas do Haiti (muito associado à ideologia do noirisme, cujos expoentes máximos na política foi o Presidente Élie Lescot [1941-46], uma influência de Duvalier, que o usou como forma de obter o apoio popular da maioria negra e cortar a influência comunista, que enfatizava a importância da classe sobre a questão racial).


Duvalier afirmava ser um praticante de Vodu e a encarnação do espírito (lwa) de Baron Samedi. Espalhava-se o rumor que guardava no seu armário a cabeça de Blucher Philogenes, um insurgente que tentou depô-lo em 1963. Disseminou-se, inclusive, a crença que os Tonton Macoute eram zumbis, outra figura do folclore haitiano, mortos trazidos à vida por necromancia de sacerdotes (ogãs e mambos – entre os quais Duvalier distribuiu cargos políticos), para aterrorizar aqueles que desafiassem a autoridade do líder.


Para além das intimidações, abduções e assassinatos em massa de povoações por motivações políticas (práticas semelhantes aos pogroms), estas milícias amiúde recorriam à extorsão (que incluam não só dinheiro e bens materiais, mas até plasma sanguíneo das vítimas, que, Luckner Cambronne, apelidado de “Vampiro das Caraíbas” [10] vendia a hospitais estadunidenses numa época em que havia menos prevenção do risco de transmissão sanguínea de doenças, através da empresa Hemo-Caribbean, que operava em parcas condições de salubridade que poderão ter contribuído para a disseminação da epidemia do HIV/SIDA), as vítimas iam desde aldeões, a comerciantes e diplomatas e a recusa em ceder resultava em retaliações coletivas. O número de mortos é estimado entre os 30.000 e os 60.000 haitianos [11].


O recurso a esquadrões da morte continuou sob o governo do seu filho, Jean-Claude Duvalier (conhecido como “Baby Doc”), entre 1971, ano em que, na sequência da morte de François, tornou-se, aos 19 anos, o mais jovem presidente do mundo, e o levantamento popular de 1986, que retirou a dinastia Duvalier do poder. 


Ao longo das quase três décadas de poder, os Duvalier acumularam uma enorme riqueza graças ao monopólio familiar do tabaco, a subjugação da economia a um clique de oligarcas leais e o influxo de ajuda internacional, sobretudo vinda dos EUA [12], que viam o regime como um bastião anticomunista e um contrapeso ao regime cubano. 


Este período foi também marcado por estagnação económica que, em conjunção com a perseguição política, conduziram a um brain drain e êxodo significativo de haitianos para os EUA, cujo apogeu coincidiu com o pico da emigração cubana no êxodo de Mariel (1980-81), com a chegada de 25.000 haitianos, na sequência de uma decisão de Jimmy Carter que estendeu o estatuto conferido aos refugiados cubanos aos haitianos.


As fendas no regime eram cada vez mais evidentes: um surto de peste suína africana (PSA) e uma condenação da situação humanitária pelo Papa João Paulo II em 1983, com uma repercussão significativa num país predominantemente católico. Em 86, uma vaga de protestos trouxeram a violência para as ruas, e levaram ao exílio de Baby Doc. Os militares, liderados pelo Tenente-General Namphy, tomaram o poder, formando o Conselho Nacional de Governo (CNG), que promulgou uma nova constituição e  comprometeu-se a realizar eleições.


Uma das conquistas do CNG foi a dissolução do Tonton Macoute em 1987. Contudo, as raízes da violência paraestatal estavam firmemente implementadas, e os ex-milicianos, que nunca foram desarmados, rapidamente formariam novas organizações.


As eleições de novembro de 1987 foram canceladas após forças militares e paramilitares terem alvejado e assassinado à queima-roupa cerca de 30 eleitores nas urnas, numa tentativa de manutenção do poder pela força. Seguiram-se eleições em 1988, marcadas por uma taxa de abstenção de 96% e consideradas fraudulentas [13], que deram vitória a Leslie Manigat. O seu mandato durou apenas seis meses, tendo sido derrubado por um golpe militar orquestrado por Namphy, logo depois sucedido pelo Tenente Prosper Avril. 


Este período de instabilidade só chegaria ao fim em 1990, naquelas que foram consideradas as primeiras eleições livres no país desde a independência em 1804, da qual saiu vitorioso, com 67% dos votos, Jean-Bertrand Aristide, um ex-padre salesiano [14], defensor da doutrina da libertação e figura fulcral da oposição democrática. Aristide, tinha-se tornando famoso através da sua obra caridosa e luta pela educação nos bairros mais pobres de Port-au-Prince e contava com  o apoio do movimento Lavalas (do crioulo haitiano para a “O dilúvio”, que advogam pela justiça social e equidade, e institucionaliza-se como partido político formal em 1994).


Mas as esperanças de uma transição democrática seriam efémeras. Apenas 8 meses após a vitória eleitoral, Jean-Bertrand Aristide seria deposto por um violento golpe de estado perpetrado pelas forças segurança, ameaçadas pela tentativa de separação da polícia das forças armadas e de trazer a julgamento os responsáveis militares por crimes cometidos contra civis durante o regime ditatorial [15]


Apesar de pregar a reconciliação, Aristide e o Lavalas foram coniventes ou apoiaram atos de retaliação violenta contra as elites do antigo regime e ex-forças do Tonton Macoute. Incluindo a instigação à prática Père Lebrun [16], uma forma de linchamento por emulação. 

Aristide é capturado no Palácio Presidencial, mas graças aos esforços de embaixadores venezuelanos, franceses e americanos, consegue exílio na França e, no mesmo ano, discursa na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) como chefe de Estado de iure.


O regime militar de Raoul Cedras, líder de facto, foi marcado por represálias direcionadas sobretudo à base de apoio do Lavalas, incluindo mortes por procuração e detenções sem mandado de membros de organizações estudantis, de direitos das mulheres e sindicatos, despoletado uma nova crise de refugiados. Foi negado o asilo a mais de 30.000 haitianos, pela vizinha República Dominicana, que apoiava a junta militar. Em 1994, a Resolução do Conselho de Segurança 940 autorizou, com 12 votos a favor e abstenção do Brasil e da China, uma intervenção armada liderada pelos EUA, denominada Operation Uphold Democracy, que restaurou o poder a Aristide e deu início a uma missão de peacekeeping (a The United Nations Mission in Haiti) que duraria até 1996.


Imagem 2: Jean-Bertrand Aristide regressa ao Palácio Presidencial em Port-au-Prince. Domínio Público, 1994-10-15


No mesmo ano, o furacão Gordon provoca enchentes repentinas que levaram à morte de entre 1.112 a 2.200 pessoas [17]. Entre 95 e 2000, René Preval torna-se o primeiro chefe de estado haitiano eleito a servir um mandato completo, marca-se também a primeira transferência pacífica de poder, com a reeleição de Aristide em 2000, com 92% dos votos. Contudo, o processo eleitoral foi marcado por acusações de fraude, um boicote pela oposição, a Convergence Démocratique, um escalar da violência sectária e uma campanha de terror orquestrada por grupos paramilitares. Em resposta, o governo de Aristide e o seu partido, o Fanmi Lavalas, começam a apoiar a criação de grupos de autodefesa constituídos por jovens marginalizados, conhecidos por chimères. Com a deterioração do poder institucional haitiano, estes grupos passaram a agir de forma cada vez mais independente do partido, a tomar controlo de comunidades inteiras (como Cité Soleil, os bairros Saline e o mercado Croix de Bossales) e a dedicar-se à criminalidade e violência de gangues.


2004-2017: MINUSTAH, Terramoto e o Colapso do Estado


Tudo isto culmina na rebelião de 2004, liderada pela Frente Nacional Revolucionária de Libertação e Reconstrução do Haiti, nome oficial do gangue de extrema-direita originária do norte do país, também apelidado de “Exército Canibal[18], responsável pela morte, tortura e violação de 4.000 pessoas durante os anos 90 [19]. Até hoje, embora estes factos sejam convertidos, Aristide alega que estes grupos paramilitares foram treinados pelos EUA, e que o golpe teve a aquiescência do Estado francês, na sequência de declarações suas no ano anterior ao golpe, em que teria exigido 21 mil milhões de dólares em reparações a França (que seriam, ajustado à inflação, o equivalente à quantia que o Haiti tinha sido forçado a pagar a Paris por compensação pela sua independência em 1804). 


Na sequência destes eventos, o Conselho de Segurança da ONU, a pedido da Comunidade das Caraíbas (CARICOM), aprova uma nova missão de paz: a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH). O comando da missão internacional foi assumido pelo Brasil e contou com mais de 6.250 capacetes azuis, de 13 países, 7 destes latino-americanos. A missão ficou manchada por acusações (por organizações como a Human Rights Watch e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos [20]) de atrocidades contra civis, quer cometidas diretamente pela MINUSTAH, quer pela polícia haitiana. Estas incluem inúmeros casos de violações e violência sexual por elementos das Nações Unidas [21], que para além da inerente crueldade do ato, terão contribuído para gerar uma geração de crianças que cresceu em famílias monoparentais e em situações de insuficiência económica extrema. Um dos episódios mais infames terá sido numa de muitas intervenções do bairro de lata Cité Soleil — uma base de suporte do partido de Aristide, onde gangues locais frequentemente linchavam e raptaram membros das elites locais críticas do Lavalas – na qual num raide de mais 400 forças policiais levou à morte de 23 residentes, onde se acredita ter havido balas perdidas [22].


O General Augusto Heleno, primeiro comandante da MINUSTAH, relatou ter existido pressão da comunidade internacional para o uso da força na intervenção. O seu sucessor, Urano Bacellar, é encontrado morto em 2006, a causa oficialmente avançada foi um tiro autoinfligido. Contudo, canais diplomáticos confidenciais revelados pelo WikiLeaks em 2011 [23], apontam para um homicídio a mando de oficiais do regime e os seus aliados entre a classe abastada haitiana (unidos à volta do G184, uma organização da sociedade civil que tinha como porta-voz o industrialista André Apaid), com o apoio de Washington, devido à relutância do General em usar a força em Cité Soleil.


Imagem 3: Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, Agência Brasil, Marcello Casal Jr/Abr 2010-11-26


Em 2008, uma sequência de quatro tempestades tropicais deixou 800,000 desalojados e mais de 300 mortos. O pior, contudo, ainda estava por vir: a 12 de janeiro 2010, com o epicentro a apenas vinte e cinco quilómetros da capital, deflagra um terremoto de 7.0 na escala de Richter, naquele que foi um dos mais devastadores desastres naturais da História [24]. Em poucas horas, entre 160.000 a 300.000 pessoas tinham morrido (a incerteza dos números é reveladora da situação de falência do Estado, que já não realizava censos regulares, sendo os números da população a viver em bairros de lata largamente desconhecidos), 1,6 milhões ficaram sem abrigo. Seguiu-se um surto de cólera que contaminou o maior rio do país – o Artibonite – do qual uma boa parte da população dependia para consumo regular. Um relatório das Nações Unidas(NU) de 2011 concluiu que na origem do surto, que tirou a vida a mais de 10.000 haitianos (dados de 2017) e terá contaminado mais de 1 milhão (deixando sintomas para a vida, como cólicas e perda de visão) terá estado uma contaminação fecal originada num campo da missão de paz. Apesar das NU não terem aceitado nenhuma responsabilidade legal pelo surto, o ex-Secretário Geral Ban Ki-moon pediu desculpas pelo ocorrido, afirmando tratar-se duma “responsabilidade moral” da ONU ajudar os haitianos [25].


Para além da crise humanitária, a escassez de alimentos e combustíveis intensificou a contestação política. A crise provocada pelo terramoto levou à extensão do mandato da MINUSTAH, que foi sucessivamente renovado até 2017. Em 2011, o antigo ditador Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier [26] e o ex-presidente Aristide retornam do exílio. O país em que estes ex-líderes pisavam já não era o mesmo de outrora. As antigas milícias mercenárias que serviam de braços armados e capangas de ditadores e partidos tinham dado lugar a gangues, mais jovens, menos políticos, mas nem por isso menos violentos. O terramoto só agravaria a situação, não só pelo desespero e a miséria que levaram muitos jovens, sem outras perspectivas de vida, para a delinquência, como pela fuga em massa dos presidiários da prisão de Port-au-Prince, muitos dos quais infiltraram-se em campos destinados a acolher os deslocados do terramoto, que se tornaram novos focos de criminalidade, sobretudo tráfico de drogas e contrabando. 


Em pouco tempo, cresceram a ponto de se tornar uma parte imprescindível da vida e economia política haitiana, controlando infra estruturas estratégicas (como portos, pipelines e estradas) e estabelecendo uma extensa rede de relações com empresários e partidos políticos (os três principais sendo o PHTK, do neo-Duvalierismo, o movimento Prévalisme, uma coligação de organizações da sociedade civil, e o Lavalas), por intermédio destes controlavam um judiciário politicamente cooptado. 


Dum Governo de Gangsters à Anarquia


Surge uma nova classe de políticos empresários que enriqueceram através de redes de influência com grupos económicos e do crime organizado. Como Jouvenel Moïse, eleito presidente em 2017 e dono da bananeira Agri Trans, empresa que enriqueceu indevidamente em 700 mil dólares, com dinheiros públicos para “reparação de estradas” .

O caso mais high-profile foi o da PetroCaribe, uma aliança lançada pelo regime chavista na Venezuela, que permitiu a compra de crude com pagamentos diferidos até 25 anos – este crédito, que chegava aos 4 mil milhões de dólares, deveria ser usado para financiar projetos públicos. Esses projetos nunca aconteceram e uma vaga de protestos e um escândalo internacional, fizeram com que a Venezuela retirasse o Haiti da aliança, fazendo os preços dos combustíveis subir a pique e deixando os meios humanitários, como médicos e bombeiros, ainda mais desamparados. 


Moïse, membro do PHTK, chegou ao poder graças ao apoio dos grupos armados, que subornaram e assassinaram rivais políticos e terão realizados ataques por procuração, em localidades como Cité Soleil, La Saline e Bel-Air, bairros alinhados à oposição, que resultaram em 145 mortos. Estes atos configuram crimes contra humanidade segundo o Estatuto de Roma [27]


Em 2020, 9 destas quadrilhas formaram a federação ‘Forças Revolucionárias da Família G9 e Aliados’, encabeçada pelo ex-oficial da polícia [28] Jimmy Chérizier (mais conhecido por Barbecue). A sua expansão deixou um rasto de sangue e massacres (caracterizados por atos criminosos, como o saque e incendiamento de várias aldeias e o desmembramento de civis inocentes), sendo hoje o principal gangue em Port-au-Prince (num universo de 200 só na cidade e 400 no país).


Imagem 4: Jimmy “Barbecue” Chérizier, Matias Delacroix

@AP Photo


Em resposta à formação do G9, grupos associados ao Lavalas e opositores do PHTK, formaram a aliança G-Pep. Encabeçada por Jean Pierre “Ti Gabriel”, líder do Nan Brooklyn gang, os G-Pep são os principais rivais dos G9, com a base do seu poder em Cité Soleil, que é hoje novamente um campo de batalha.


O conflito adquire uma nova dimensão com o assassinato de Jovenel Moïse, na sua residência, a 7 de julho de 2021, por um grupo de mercenários (a maioria ex-militares colombianos). A polícia e os seus seguranças pessoais não intervieram. 


Este politicídio ocorreu no meio de uma crise constitucional: o PHTK afirmava que o mandato de Moïse só terminaria em 2022, cinco anos após a sua tomada de posse em 2017. A oposição contestou afirmando que o seu mandato teria começado com o resultado das eleições de 2015, entretanto anuladas. Para além disso, uma investigação do The New York Times revela que, meses antes do seu assassinato, Moïse estava a tomar passos para desmantelar uma rede de tráfico de drogas e armas, revelando os seus nomes ao governo estadunidense [29]. Um dos suspeitos indiciados é o primeiro-ministro Ariel Henry, o último a ser empossado pelo falecido presidente.


O G9 prometeu vingança e uma caça aos responsáveis, incluindo ao chefe-de-governo Ariel Henry. Num evento oficial, um ataque dos G9 obrigou Henry a fugir. Em outubro de 2021, iniciaram um cerco de um mês ao maior terminal petrolífero do país, exigindo a demissão do governo. Henry, praticamente esvaziado de poder de facto, não se demitiu, mas consertou um acordo secreto para pôr fim ao cerco.


Com o colapso do Estado, foi cortado o futuro das crianças do Haiti. De acordo com as NU, mais de 1.700 escolas foram encerradas por receio de violência, deixando 500.000 crianças sem acesso à educação. As crianças geralmente são recrutadas ou  feitas reféns. A simples pertença a um bairro controlado pelo gangue rival é usada como justificação para magoar e até matar menores inocentes, acusados de serem informadores.


Em abril de 2022, 12 membros de gangues que estavam a ser detidos pela polícia foram apedrejados e queimados até à morte por uma multidão de populares. O ato, que rapidamente se disseminou nas redes sociais e através de líderes em comunidades autóctones, como igrejas, motivou milhares de haitianos a começarem a executar a justiça pelas próprias mãos. No vazio deixado por um Estado inexistente, surge um movimento popular, vigilante e desorganizado, bwa kale (crioulo para “madeira lascada”, expressão sinónima de “justiça servida”).


Grupos de populares, organizados espontaneamente, perseguem e matam todos os membros de gangues que avistem. O seu lema é “Um Haitiano, Um Machete”, aludindo à tradicional faca-de-mata. Aponta-se para uma diminuição nas ocorrências de violência sexual, mortes e raptos [30]. Contudo, equipas de peacebuilding revelam estar preocupadas que esta prática possa levar a contra-ataques e à continuação da espiral de violência.


O conflito não parece ter fim à vista. Num país sem paz, nem futuro. Onde a violência alastrou-se a todos os aspetos da vida social, económica e política. Onde comunidades inteiras ficam cercadas, sem acesso às estradas e a ajuda humanitária, como relatam os Médicos Sem Fronteiras [31], que se veem incapazes de prestar assistência à medida que aumentam o número de cadáveres em decomposição nas ruas. Apesar disto, o desinteresse da comunidade internacional pelo Haiti, um país sem quaisquer recursos, bem como as feridas internas e os escândalos de intervenções humanitárias passadas, contribuem para uma preocupante complacência, à medida que se assiste a uma das maiores tragédias do nosso tempo.


A 2 de outubro Conselho de Segurança da ONU adotou, com 13 votos a favor e abstenção da China e da Rússia [32], a Resolução 2699, autorizando uma Missão Multinacional de Apoio à Segurança, encabeçada pelo Quénia [33], em estrita coordenação com as forças policiais haitianas. Foi também aprovada por unanimidade, a 19 de outubro, a Resolução 2700, renovando as sanções e embargo a armas e munições e congelamento dos ativos, que começaram em 2022.


Hugo Almeida

Departamento Sociedade




[2]: Fonte: Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento



[4]: Incluindo escravos emancipados ou Affranchi e gens de couleur libres, como eram chamados os mulatos, tendo tido também o apoio dos indígenas Taino, também escravizados, e Legionários Polacos de Napoleão, que mudaram de lado, juntando-se aos escravos insurgentes. Com a independência, estes polacos foram considerados noires e adquiriram estatuto de cidadãos. 


[5]: As razões americanas terão sido o medo que uma revolta idêntica se espalhasse ao sul esclavagista, bem como retribuição pelo genocídio contra a população branca, massacrada a mando de Dessalines.



[7]: Um pequeno número de colonos alemães conseguiu, apesar disto, controlar 80% da terra, adquirindo cidadania através de casamentos mistos com locais. O receio da crescente influência alemã terá sido uma das motivações da intervenção dos EUA.


[8]: Duvalier terá ganhado esta alcunha dos seus pacientes, durante o seu trabalho como médico, numa campanha humanitária patrocinada pelos EUA, para inocular a população contra doenças tropicais, como o tifo, bouba e malária.


[9]: A tentativa de golpe, que acolheu fraco apoio popular, surgiu das elites tradicionais (intelligentsia) constituídas pela população mulata, que formavam a principal frente de oposição a Duvalier, muitos dos quais foram presos ou exilados no primeiro ano da sua presidência. A partir de Miami,  por Alix “Sonson” Pasquet, estrela do futebol e veterano dos Tuskegee Airmen (um grupo de pilotos afroamericanos durante a 2.ª Guerra Mundial), dois militares haitianos no exílio e cinco mercenários norte-americanos tentaram tomar o poder através de um ataque anfíbio. O resultado foi a morte dos oito conspiradores e um reacendimento da perseguição política a dissidentes.


[10]: https://www.nytimes.com/1972/01/28/archives/impoverished-haitians-sell-plasma-for-use-in-the-us.html ; Cambronne terá estado também envolvido no tráfico de cadáveres, comprando a hospitais e agências funerárias por cerca de 2 dólares por cadáver, que eram revendidos para a investigação médica.



[12]: As relações Haiti-EUA nos anos Duvalier tiveram oscilações: durante a administração Kennedy, o executivo americano criticou a brutalidade do regime e o desvio de fundos humanitários, o que levou a que Washington exigisse maior transparência no uso de fundos, sob pena destes serem cortados, ultimato que foi rejeitado. Duvalier terá afirmado que o assassinato de Kennedy em 1963 foi resultado de uma maldição por si rogada. Outro aliado de Papa Doc, até 1959, foi Fulgencio Batista. A ascensão de Fidel Castro representou um corte nas relações com Cuba (só restabelecidas em 1997), sobretudo o Haiti após ter votado a favor do embargo.



[14]: As suas ideias revolucionárias e críticas, não só da ditadura, como da própria hierarquia eclesiástica, levaram à sua expulsão da ordem em 1988, que afirmou que Aristide “incitava ao ódio e à violência”.


[15]: Já antes da inauguração, teria havido uma tentativa encabeçada por Roger Lafontant, líder das defuntas Tonton Macoute, que declarou lei marcial. Uma enchente de apoiantes de Aristide foram às ruas, levando a fação de Lafontant a perder o apoio do exército, que reprimiu o golpe. No julgamento, altamente politizado e sem garantias do arguido, Lafontant, por sugestão de Aristide, é condenado à prisão perpétua, apesar da constituição proibir penas superiores a 15 anos. https://www.everycrsreport.com/reports/93-931.html 


[16]: Trata-se de um método de execução extrajudicial sumária, que consiste na colocação de pneu regado de gasolina, no tronco das vítimas, que é depois acendido levando à sua emulação – também foi empregue na África do Sul, onde foi chamada de Necklacing, contra suspeitos de colaborarem com o Apartheid.



[18]:  É possível que o golpe tenha sido instigado por inimizades pessoais. O líder do “Exército Canibal”, Amiot “Ti-Cubain” Métayer, trabalhara para Aristide como seu capanga para pressionar os seus opositores. Em 2002 é detido, na sequência de declarações da administração Bush, que condenaram a violência política no Haiti. Com a sua libertação, em 2003, Ti-Cubain, que passa a liderar protestos nas ruas contra o governo, é encontrado morto, vítima de um ataque de machete. Levando a suspeitas de que se tenha tratado de um assassinato político.



[20]: O sumário de um caso que chegou ao TIADH pode ser consultado em http://hrlibrary.umn.edu/cases/65-06.html , no qual o ativista Jimmy Charles terá sido detido sem mandado e morto, com alegado envolvimento de forças estatais e soldados brasileiros da Minustah. Outro caso infame foi o de Gérad Jean-Gilles, um rapaz de 16 anos que tratava de vários “recados” para um capacete azul nepalês e misteriosamente aparece morto dentro de uma base da Minustah.







[26]: Este é imediato é apresentado a julgamento pelos crimes cometidos durante o seu regime, no entanto,  morre em 2014, antes de ser condenado.



[28]: Enquanto polícia, Chérizier terá tomado parte no Massacre de La Saline de 2018, que levou à morte de 71 pessoas e a que 400 casas fossem incendiadas. 





[32]: A abstenção da Federação Russa foi justificada pelo seu representante por considerar que a intervenção é um mecanismo extremo e só aplicável em ultima ratio à luz do Capítulo VII da CNU, embora reconheça a gravidade da situação humanitária. O representante chinês apontou para a falta de efeitos a longo prazo deste tipo de intervenções externas, defendendo que o foco deve estar em chegar a um acordo entre as facções internas.


[33]: O Quénia é um dos maiores contribuidores per capita para missões de segurança e alberga a sede continental da ONU em África. No entanto, a escolha foi criticada, não só por tratar-se de um país não francófono e de fora da região, como pelo historial de abusos de direitos humanos por forças quenianas.


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