No passado dia 7 de março realizou-se na Faculdade de Direito da Universidade do Porto uma simulação de julgamento de um caso de violação, promovida pela Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (APMJ) em colaboração com o Coletivo Feminista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. “Hoje, não!”®, assim designado este cenário de julgamento, procura desconstruir alguns mitos associados ao crime de violação e simultaneamente alertar para algumas das realidades em torno do mesmo.
O evento iniciou-se com um anfiteatro cheio (algo inédito na FDUP), a constante entrada de pessoas e uma enorme curiosidade por aquilo que viria a acontecer. A disposição da “sala de audiências” começou a ganhar forma à medida que a Juíza de Direito, a Procuradora do Ministério Público e os advogados de defesa e de acusação tomavam os seus lugares. Depois de algum alvoroço, interveio Mariana Vilas Boas, jurista integrante da APMJ dando a conhecer precisamente esta associação e o propósito do projeto “Hoje, não!”®. Foram apresentados inúmeros mitos associados ao crime de violação que estão enraizados na sociedade e que, por vezes, acabam por se refletir em sede de julgamento influenciando a decisão final do Tribunal, que se pretende justa e imparcial.
É de destacar alguns deles: o crime de violação é muitas vezes praticado por um desconhecido (não corresponde inteiramente à verdade, veja-se que o Relatório Anual de Segurança Interna de 2021 (RASI) concluiu que em 46% dos casos de violação a vítima e o agressor conheciam-se), a ausência de uma reação por parte da vítima é sinónimo de consentimento (não é verdade, a maioria das vítimas permanece imóvel por medo), a violação resulta de um impulso sexual incontrolável porque o agressor é um psicopata, entre outros que poderia levar alguns parágrafos a enumerar. Após esta introdução, deu-se a conhecer ao público os contornos do caso e assim se abriu a “audiência de julgamento”.
@RASI 2021 (Página 46)
Em primeiro lugar, foram dirigidas algumas questões ao “arguido” sobre as circunstâncias em que o facto ocorreu. Em todo o anfiteatro permaneciam olhares atentos, contudo, poucas seriam as conclusões a retirar sobre o pensamento do público naquele momento. No entanto, o cenário acabaria por mudar de figura a partir do momento em que a “assistente” começou a ser interrogada sobre aspetos íntimos da sua vida privada (“quantos parceiros sexuais teve?”, “é sexualmente ativa?”), acabando por despertar algum espanto (e talvez, desprezo) no público por se tratarem de perguntas tão invasivas e porventura pouco relevantes para a produção de prova. Aquilo que se desenrolava diante dos nossos olhos parecia tornar-se cada vez mais real, dada a seriedade de todos aqueles que desempenhavam o papel que lhes foi atribuído. Finalmente, o “julgamento” acabaria por terminar, depois da intervenção de testemunhas trazidas por ambas as partes. Colocou-se, por fim, um desafio ao público: a discussão e a elaboração de uma decisão final (que acabaria por ser a condenação do “arguido”).
Naquele dia, desmascarou-se uma porção da realidade (que talvez já seja do conhecimento de alguns) da Justiça portuguesa: o facto de ainda existir muito preconceito em torno do crime de violação e, em concreto, da vítima. Por este motivo, eventos como “Hoje, não!”® revelam-se essenciais para a formação de futuros juristas que se querem justos e sérios.
Benedita do Amaral
Departamento Mundo Universitário
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