Tinha acabado de fazer vinte e sete anos quando desembarcou em Nova Iorque com uma bolsa de estudo para, alegadamente, fazer uma pós-graduação. Na universidade, conheceu Kim, uma rapariga misteriosa e inebriante, por quem se apaixonou perdidamente — e, desde então, nada voltou a ser o mesmo.
Kim morreu às cinco e quarenta e três da madrugada, depois de uma noite de amor. Aquele desfecho tão fatal atirou-o para uma espiral de culpa e remorso. Sem nada a que chamar seu — porque aquela rapariga fora a última coisa a que se atrevia chamar sua —, começou por deixar de frequentar as aulas; por consequência, perdeu a bolsa e, por fim, foi arrastado para as sombrias ruas de Manhattan.
“É aqui que tem início a parte mais obscura desta história, aquela sobre a qual mais dúvidas se levantam no meu espírito. É também aqui que começo uma segunda existência […]”, afirmou. Transformou-se, ele próprio, numa criatura perdida, que vagueia sem destino e habita um mundo coberto de névoa capaz de corromper o desenho dos contornos da realidade.
Ao virar de cada esquina, o perigo espreita. O submundo nova-iorquino revelou-lhe uma vida que poucos conhecem. Pelo menos até ao fim da sua aventura — pois se levantam algumas dúvidas quanto à natureza da sua morte —, ficou comprometida a mais pura verdade das coisas que aconteceram diante dos seus olhos. Deixou de distinguir os homens das sombras, deixou de percecionar a linha ténue que separa o tempo anterior ao seu e o seu tempo, deixou de saber quem era — por se ter perdido à sua procura.
Em “Hotel Memória”, João Tordo, premiado com a mui nobre chancela Saramago e com um cunho tão pessoal ao assumir a voz do protagonista, presenteia-nos com uma história arrebatadora. Soube ele (e bem) brincar com substâncias que nos atormentam o espírito: entre a memória e a identidade, entre o real e o ilusório, entre a vida e a morte, entre o amor e a solidão, entre a ascensão e a queda.
Bom regresso às aulas, não se esqueçam de trancar a dupla fechadura da porta do vosso quarto e, pelo caminho, talvez ainda se conte a história de Daniel da Silva, um fadista dos anos 60 que fez fama em Nova Iorque…
Francisco Paredes
Departamento Cultural
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