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Hybris por especialização (no acesso ao ensino superior)

  • Foto do escritor: José Pedro Carvalho
    José Pedro Carvalho
  • 25 de mai. de 2023
  • 5 min de leitura

Se a vida política é agitada, imagine-se o que será realmente viver no que a política subjaz… que, no fundo, cobre um pouco de tudo: o que comemos, o que estudamos e o que até mesmo imaginamos. E nunca foi precisa tanta imaginação como no presente, pois a inovação e o progresso têm, de alguma forma, de ser mantidos, por imperativos económicos; certo, mas também por razões sociais e humanistas no seu núcleo.


I.

No meio dessa correria o Ensino tenta subsistir: uma categórica prova disso foi o comunicado feito pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior sobre as alterações à conclusão do ensino secundário e acesso ao ensino superior.


A Constituição Portuguesa já é bastante garantística no seu art.76º, no que se refere aos pontos cardeais da universidade, defendendo a igualdade de oportunidades e a democratização do ensino superior. Somando-se a isso, proclama-se na revisão em apreço “preservar a estabilidade e confiança no sistema de acesso ao ensino superior”.


Apresentaram-se, claramente, medidas úteis para fomentar o conhecimento e a própria cultura portuguesa: desde a obrigatoriedade para acesso ao ensino superior da feitura do exame de Português; à instituição da proporcionalidade entre disciplinas do ensino secundário, tendo em conta a sua frequência anual para efeitos de ponderação da classificação final; até a regras de carácter mais instrumental como de calendarização da candidatura e colocação.


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@Deco

Curiosamente, no quarto ponto das propostas referente às condições de acesso e ingresso ao ensino superior, fica reforçado o processo de seriação de candidatos através do aumento do número de provas de ingresso exigidas no concurso nacional de acesso para 2 a 3 provas, a definir pelas instituições de ensino superior. Atualmente, o número mínimo seria apenas de uma.


Seriação essa nada mais é do que uma exigência de especialização de conhecimento, que se torna aceitável quando natural é do curso das coisas, e de sabor agridoce quando imposta artificial e precocemente.


Analisar tal proposta só é possível in concretum, tomando o curso de Direito como exemplo, pois é o único onde toques mais pessoais poderiam, possivelmente, relevar nesta exposição.


Ora, o seu sistema atual de provas muda drasticamente de instituição para instituição…


A FDUP, apenas exige uma, a de História ou a de Português, tal como a FDUC e a FDUM, que aceitam, de igual modo, a de Filosofia.


Já a FDL e a NOVA exigem, cumulativamente, duas provas, que inclui sempre a de Português e uma das outras duas já supramencionadas; surpreendendo, essa última faculdade por admitir a junção com Matemática A.


Empregando-se a mudança visionada, todas as faculdades passam a demandar o exame de Português, algo que muitas já fazem, acrescendo, necessariamente, um outro exame, estando aqui o âmago da questão: apenas uma das cinco ofertas públicas de ensino em Direito faz esse complemento com uma disciplina que o típico aluno de, por exemplo, Ciências e Tecnologias já faria, fosse qual fosse o caminho universitário que escolhesse; para não mencionar o facto de que na nossa Casa nem sequer (ainda) é aceite a prova de Filosofia, o que passaria a obrigar, em teoria, alunos a estudar um exame para o qual nunca tiveram aulas.


Ergo, essa proposta obstrui a entrada no curso de Direito a estudantes que, no seu frívolo início de ensino secundário, escolheram a opção que, na gíria popular, mais saídas possíveis oferece; não delimitando-se já a um qualquer caminho especializado traçado por outrem. Ironicamente, dos que ingressaram na 1º fase, em 2022, em Direito, aproximadamente, um quinto são provenientes do curso de Ciências e Tecnologias (F60). É um valor a não ser desprezado.


II.

Poder-se-ia falar também noutros cursos, como o de Ciências Socioeconómicas ou de Artes Visuais, já que o problema aqui não está apenas na oportunidade de ingresso que o estudante perde, como a própria perda sentida pela instituição e pela futura composição da sociedade civil profissional, uma vez que a agregação de mais alunos com o suposto “perfil” de Direito não é de todo algo benéfico a priori


Embora seja sabido que a especialização tem efeitos positivos para a economia, já Adam Smith o apregoava, é importante não esquecer que todos somos herdeiros do “Homem do Renascimento”, originário de uma era onde a interdisciplinaridade fez o seu marco e que, como esse antes de nós, que redescobriu algo que houvesse sido abandonado, também hoje poder-se-á plantar essa tal infindável busca por imaginação na estranha generalização.


Tendo por inspiração uma TEDTalk de David Epstein, jornalista que popularizou a defesa do “generalista” (em oposição ao “especializado”), são vários os argumentos a favor desta via…


Ora, o mercado de trabalho é um “wicked learning environment”, onde as regras e objetivos não só não estão claros, como se ocultam ativamente, requerendo, acima de tudo, capacidade de adaptação para se suceder. Tal apenas se ganha com pensamento lateral, ou seja, a utilização de uma forma de raciocínio característica de uma diferente estrutura conceptual do que a pertencente ao problema que se pretende resolver.


Como se pode inferir, esse preciso método poderá mostrar-se proveitoso no incerto mundo fático do jurista, dada também à vasta diversidade epistemológica das áreas afetas a regras jurídicas e à mera fluidez de pensamento crítico necessária para se advogar as causas que se achar pertinentes, apelando-se à índole ativista do trabalho. Parece lógico que formar estudantes com espírito crítico dos mais variadíssimos substratos é algo que apenas poderá resultar num benefício em prol da sociedade.


Ademais, a mero título de curiosidade, é, pelo menos, duas vezes mais provável que cientistas laureados com o prémio Nobel tenham um hobby fora do contexto profissional do que o normal cientista, e que quem tenha tido uma educação focada numa dada área de especialização tenha mais hipóteses de ser imediatamente contratado, mas com menor “retenção no mercado”, o que consubstancia uma perda a longo prazo.


Claramente, não se pede que não haja especialização, mas apenas que o seu progresso seja qualitativamente eficiente, o que poderá significar, em troca, que seja um bocado mais lento; quiçá, não começar logo numa idade tão tumultuosa da adolescência.


III.

É difícil ver como esta medida não poderá ter efeitos negativos no campo da igualdade de oportunidades e na própria formação de profissionais exemplares. Dificulta a vida de estudantes a ingressar em cursos como o de Direito, exigindo-lhes mais um exame nacional a executar na sua já tribulada existência, numa época onde a apreensão do máximo possível de diversificado conhecimento deveria ser o objetivo, e não a preocupação incessante com um tal ingresso num curso; até porque, lá fora, na vida real, é-se muito mais flexível em relação aos antecedentes académicos do que, à primeira vista, possa parecer.


Por último, a tal promessa de confiança no sistema de acesso ao ensino superior poderá ser ainda sustentada, caso o que está ao critério das faculdades, a escolha das provas de ingresso requeridas, seja parcimonioso no seu desfecho. A inclusão da exigência de Filosofia (quiçá, até de Matemática A) poderia vir mesmo a calhar aos inamovíveis polímatas que se pretende formar.


José Pedro Carvalho

Departamento Mundo Universitário




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