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Há-de vir um Natal

Foto do escritor: Vicente CorreiaVicente Correia

É dezembro e as luzes enchem as ruas. As cidades e as casas enfeitam-se porque é Natal. Os pinheiros decorados, os Pais-Natais nas varandas, os presentes nas montras das lojas e as músicas de Natal que acompanham os nossos dias. É a chamada the most wonderful time of the year ou, na linguagem poética de David Mourão Ferreira, a altura do ano em que A cidade ficava/sob a luz vespertina/pelas montras cercada/de paisagens alpinas. Associamos ao Natal sempre este espírito de felicidade e de comunhão, mas será mesmo assim? É isto que muitos de nós sentem? Ou será antes a vontade nunca confessada de regressar à infância que não volta mais?


David Mourão Ferreira, poeta português do século XX, dedicou uma parte da sua obra a pensar e a escrever sobre esta celebração num livro a que intitulou- Cancioneiro de Natal”. Não deixa de ser curioso que o próprio título nos transporte para uma certa tradição portuguesa do cancioneiro que teve sempre grande expressão em Portugal desde as cantigas de amigo traduzindo esta ideia de musicalidade na poesia. Afinal, o que é a música senão uma forma poética também?


No início deste Cancioneiro, o poeta começa por explicar o que significa para ele esta altura do ano — “é o Natal que passa, a trazer-me da água a infância ressurecta”. E é também isto para todos nós, uma espécie de regresso à infância, aos cheiros, aos sons, à inocência, à descoberta do mundo e das coisas pela primeira vez. E um regresso dos mortos que voltam neste dia ao lugar da mesa vazio, com o prato, o copo e os talheres, mas ainda assim vazio. Como quando recorda a morte do irmão e esta ausência que fica depois da morte — como dizer Natal se te não vejo hoje/como dizer Natal agora que morreste”.


Vamos crescendo e vamos perdendo essa inocência, vamos dando conta dos lugares vazios na mesa e nas pessoas que foram deixando de estar presentes. É também isto o Natal, uma saudade que não acaba. Ao mesmo tempo que acentua este nosso sentimento de perda renova a nossa esperança. Tal como na infância em que “tudo era possível”, o Natal convoca-nos a parar e a nos centrarmos nas coisas essenciais e que verdadeiramente importam na vida. É com as crianças que voltamos aos natais das nossas infâncias, é através delas que vemos o que fomos e o que deixámos de ser. Nas palavras do poeta — “Ó noite de Natal, que travo a maresia!/Depois fui não sei quem que se perdeu na terra”. Fomos todos e cada Natal é um regresso imperfeito a esse sítio onde fomos felizes sem o sabermos. Não terá sido essa afinal a verdadeira felicidade?


Este Natal de que falei é comum a quase todos os que me leem. E parece que, por vezes, achamos que é universal e que todos se identificam com ele. Mas não é assim. O Natal é também solidão e dor para alguns. Vivemos de tal modo imersos na nossa própria bolha que nos esquecemos de olhar em volta. E a arte tem esta capacidade de furar as nossas pequenas bolhas, obrigando-nos a encarar outras realidades. A música de Sufjan Stevens “That was the worst Christmas ever!” reflete este desfasamento entre aquilo que são muitas vezes as nossas expectativas idealizadas desta época do ano e o confronto com a realidade. 

Neste caso, uma realidade familiar disfuncional com tensões e onde há uma figura paterna severa e aos gritos que perturba todo o ambiente familiar. “Our father yells / Throwing gifts in the wood stove, wood stove / My sister runs away / Taking her books to the schoolyard, schoolyard”. A canção começa por mostrar momentos tranquilos na neve e, simultaneamente, mostra um ambiente familiar marcado pelo conflito e pelo isolamento emocional, já que, a determinada altura, se questiona “Can you say what you want to be? / Can you be what you want?”, sugerindo esta perda da inocência e a consciência de que o Natal nem sempre é um refúgio perfeito de paz e tranquilidade, e que isso, muitas das vezes, não se concretiza, acabando por acentuar ainda mais o conflito. A música ao mesmo tempo que evoca um tempo perdido, uma nostalgia de um tempo que foi e não volta mais, refletido na imagem da neve a cair e nas luzes da árvore de Natal, contrapõe com um tempo em que isso acabou, já não funcionando sequer como consolo. Embora profundamente pessoal, esta é uma canção também ela universal, porque ressoa em muitos de nós. Esta experiência de nos sentirmos deslocados numa época em que é suposto celebrar e comemorar num espírito de amor e união é talvez das experiências mais vividas por muitos de nós. O que esta canção nos lembra é que o Natal tal como a vida é também feito de luzes e sombras.


Há outra música que mergulha nas complexidades da solidão nesta época festiva e que é interpretada por Phoebe Bridgers: “Christmas song. Esta canção capta esta natureza, por vezes, agridoce do Natal em que se entrelaçam emoções como a alegria e a sensação de isolamento. Como canta a determinada altura: you don't have to be alone to be lonesome. E é isto que muitos sentem e que calam sob uma fachada de felicidade aparente. Por isso é tão importante a arte como forma de desconstruir ideias tão enraizadas sobre o que é isto do Natal e revelar-nos novas perspectivas sobre a forma como vivemos esta época do ano.

Voltando a David Mourão Ferreira, importa destacar esta ideia de que é com as crianças que o Natal volta a ser em nós aquilo que era e de que a infância é a nossa verdadeira pátria onde voltamos sempre e onde está quase tudo sobre aquilo que somos. Como quando diz: “Carregam-me de netos os meus filhos / Novas luzes na árvore de Natal / nesta Noite que é noite, mas é Dia”. Estas ligações e estes laços que se renovam a cada Natal são também um reflexo desta altura do ano, porque Natal é a “hora em que as almas entre si comunicam, é a hora que falta no relógio da vida. Na correria do nosso quotidiano esquecemo-nos de estreitar estes laços e, por isso, é tão importante a cada ano reunirmo-nos e aproximarmo-nos. Não será isto o mais importante na vida?

Para terminar, permitam-me transcrever aqui o poema que fecha esta obra de David Mourão Ferreira:


“Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que o Nada retome a cor do Infinito.”


A nossa vida também ela “cada vez mais ontem”, estes mortos de novo hoje tão perto, este desejo hoje tão intenso de regressar à infância, esta fininha melancolia e, no entanto, esta alegria, esta magia que ainda assim permanecem, e “logo o nada deixa de estar em tudo como estava”.


Vicente Correia

Departamento Cultural

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