Começou a carreira numa versão primordial do Youtube, em março de 2006, e é agora uma estrela da comédia. Passou por vários palcos e salas de espetáculo. Tem dois especiais disponíveis na Netflix, tendo o mais recente ganho 3 Emmys. É incontestavelmente um marco cultural. Robert Pickering Burnham, conhecido como Bo Burnham, trouxe-nos «Inside», um especial de comédia que abrange tópicos diversos de diversos modos.
Além da análise a «Inside», existe também riqueza na comparação de algumas das novas músicas do comediante-músico-ator com algumas das suas obras passadas, marcando uma evolução da perceção social que vai muito além de Bo. Há cerca de uma década, no «The Green Room», Bo diz-nos que acha que «ninguém quer ouvir um jovem de 20 anos dizer o que acha sobre como o mundo funciona» e agora, no mesmo especial/álbum em que canta «I’m turning 30», apresenta-nos também uma faixa intitulada «How the World Works» (como o mundo funciona).
Saúde mental
O primeiro dos sentidos que o nome do especial invoca é o mais óbvio: durante mais de um ano estivemos fechados em casa. No caso particular do Bo, esteve todo esse período a trabalhar no especial, demonstrando várias vezes algum desespero, tal como nós, por não poder sair, por nunca mais terminar, e notam-se por diversos momentos os efeitos do isolamento social: a título de exemplo, é obrigado a contactar a família apenas por videochamada em «FaceTime with my Mom». Deste modo, infere-se o segundo dos sentidos de «Inside»: o estarmos fechados dentro de nós mesmos, em batalhas constantes pela nossa saúde mental, o que, para o artista representa, por vezes, sair de si mesmo, por força de ataques de pânico: «Total disassociation, fully out your mind / Googling "derealization", hating what you find». Nesse sentido, conta-nos que fez um hiato de cinco anos para proteger e recuperar a sua saúde mental após vários ataques de pânico severos em palco, em momentos de diálogo na música «All Eyes On Me», na qual adota uma postura de aceitação pessimista do destino do mundo, convidando apenas à vivência no presente e a que se ignorem as ansiedades:
«You say the ocean's rising like I give a sh*t You say the whole world's ending, honey, it already did You're not gonna slow it, Heaven knows you tried Got it? Good, now get inside We're goin' to go where everybody knows … Come on, get your f*ckin' hands up Get on out of your seat All eyes on me, all eyes on me»
Mas mais do que falar da sua ansiedade e depressão numa perspetiva pessoal, Bo descreve a vivência interna para expor uma faceta pouco conhecida da doença mental:
«From the moment I wake up, I, uh, I just get this Feeling in my body, way down deep inside me I try not to fight it (describe it!) Alright A few things starts to happen My vision starts to flatten My heart, it gets to tapping, and I think I'm gonna die»
Internet
Outra das grandes temáticas do show é a internet, mas esta não surge, de todo, desconectada da saúde mental coletiva, evidenciando-se uma faixa sobre a vida falsa que apresentamos nas redes sociais. No espetáculo «Make Happy» tinha já argumentado que as gerações pós anos 90 foram ensinadas a expressar tudo o que pensam e sentem, e define as redes sociais como a resposta do mercado para estes desejos, dizendo «Aqui, expressem tudo, uns para os outros, o tempo todo e sem qualquer motivo. É uma prisão, é horrível. É performer e audiência na mesma figura». Em «Inside», esta temática é introduzida por «Wh*te Woman’s Instagram», em que descreve as fotos mais comuns nos perfis de quem retrata uma vida perfeita, livre de problemas e cheia de significado:
«Is this heaven? Or am I looking at a White woman A white woman's Instagram»
Mas o génio criativo de Burnham não se fica por retratar este lado da internet. Em «Welcome to the Internet» ilustra a rede global como montanhas de conteúdo (algum melhor, outro pior) onde tudo aquilo em que pensarmos pode ser encontrado – diz-nos, até, que se nada na internet nos interessar, somos os primeiros nessa posição. Primeiramente, descreve os algoritmos usados para, sem nos apercebermos, nos agarrar às redes sociais e partilhar tudo com toda a gente, e também como existe uma variedade extensa de opções, entre quizzes do Buzzfeed e «here’s why women never f*ck you, here’s how you can build a bomb». A segunda parte deste tema prende-se com a geração de 2010 («Your mother let you use her iPad, you were barely two») e explica como esta foi condenada a acreditar que precisa da internet para viver, que com ela é imparável e que tem o mundo nas suas mãos. Esta parte é interrompida por um riso maléfico que passa a cantar o refrão num ritmo frenético:
«Could I interest you in everything? All of the time A bit of everything All of the time Apathy's a tragedy And boredom is a crime Anything and everything All of the time»
Em momento não musical, apresenta-nos ainda a reflexão: «Maybe allowing giant digital media corporations to exploit the neurochemical drama of our children for profit was a bad call by us». Mas não são só as nossas crianças que são exploradas, e não é preciso ter começado aos 2 anos de idade para se estar infetado pelo vírus contagiante da internet. Para os mais velhos, o sintoma mais visível pode ser ter uma opinião sobre tudo, pelo que fica uma pergunta que o próprio artista reconhece aplicar-se a si, no momento em que a faz: «Is it necessary that every single person on this planet expresses every single opinion that they have on every single thing that occurs all at the same time? (…) Can any single person shut the f*ck up about any single thing for an hour? (…) And I know you’re thinking, “You’re not shutting the f*ck up right now,” and that’s true, but…»
Comédia, privilégio e marxismo
Incontestavelmente, Bo Burnham tem muitas opiniões e expressa-as na sua arte. É possível, inclusive, encontrar evoluções na sua perceção de conceitos de comédia, privilégio, classe e justiça social. No tema de 2010 «Art is dead» retrata a arte como um vício dos artistas, que serve apenas a estes, que enriquecem à custa da classe trabalhadora e em «Sad», 2013, explica musicalmente que o riso é a cura para todos os males do mundo, ou para quem tem que aturar quem sofre com eles. Por contraste, em «Comedy», 2021, começa por duvidar sobre se é apropriado fazer piadas numa altura tão grave para a sociedade. Contudo, termina a música argumentando que a comédia tem um poder indescritível para a mudança das mentalidades e que, enquanto homem branco privilegiado, tem o dever de ajudar ativamente nessa missão (he’s «a special kind of wh*te guy»).
O primeiro passo nessa tarefa foi confessar e pedir desculpa pelo seu passado em «Problematic»:
«All of it was perfectly lawful
Just not very thoughtful at all
And I’m really f*cking sorry»
O segundo passo é a redenção: Robert oferece uma introdução ao marxismo e pedagogismo classista com a peça «How the World Works»: nesta música, começa por apresentar o mundo como um sistema em que todos cooperamos, mas, na segunda parte, convida Socko, uma meia, e discursa através desta:
«The simple narrative taught in every history class Is demonstrably false and pedagogically classist Don't you know the world is built with blood? And genocide and exploitation The global network of capital essentially functions To separate the worker from the means of production»
Antes de ser silenciada por meio da força, tal como Martin Luther King pelo FBI, podemos ainda deliciar-nos com a resposta de Socko quando Burnham pede mais informação sobre o que aprendeu, com o intuito de se tornar uma pessoa melhor:
«Why do you rich f*cking wh*te people insist on seeing every socio-political conflict through the myopic lens of your own self-actualization? This isn’t about you!»
Agora que começamos a retomar as nossas vidas lá fora, aproveitemos esta obra de arte para refletir sobre o que está cá dentro, desde os nossos sentimentos e opiniões à forma como nos expressamos perante os outros na internet e fora dela.
«So long, goodbye Do I really have to finish? Do returns always diminish? Did I say that right?»
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