No livro Vamos Comprar Um Poeta, Afonso Cruz diz que "A cultura não se gasta. Quanto mais se usa, mais se tem". Nesta frase, que encerra em si mesma uma mestria ímpar, reside uma máxima que podia facilmente ser encarada como verdade universal … "porque nós somos feitos de histórias, não é de a-dê-énes e códigos genéticos, nem de carne e músculos e pele e cérebros. É de histórias." (Os Livros que Devoraram o Meu Pai, Afonso Cruz, 2010).
Se assim é, somos todos, pelo menos em parte, resultado dos livros que lemos, ou não fosse, como diz Borges, uma biblioteca uma autobiografia!...
Somos resultado dos livros que nos inspiram, que nos fazem imaginar, que nos fazem viajar em sair do sítio, que nos transformam em robôs de virar-páginas, que nos permitem pensar. “Isso é o prodígio da literatura, poder ser capaz de chegar mais fundo na consciência dos leitores, mesmo falando sobre outra coisa” (José Saramago, O Globo, Rio de Janeiro, 17.10.1997).
Em Como um Romance, Daniel Pennac lembra que aprendemos todos a ler na escola – começando pelas vogais, partindo para as consoantes, aprendendo palavras, formando frases, compreendendo a gramática… Como num videojogo, vamos superando etapas, avançando níveis, até chegarmos ao Cavaleiro da Dinamarca ou, mais tarde, Os Maias ou Memorial do Convento. Pennac conclui que, pelo contrário, “amar a leitura…” já nem todos aprendemos ou, pelo menos, não aprendemos na escola. A exceção porventura confirmará a regra, mas não foi assim comigo.
As minhas desculpas, desde já, aos leitores que reviveram com estas palavras traumas antigos que julgavam já esquecidos. Pelo contrário, nelas revejo memórias de tempos mais despreocupados (maldita Faculdade!) e a origem da minha vida de leitora. Foi em bibliotecas e em clubes de leitura escolares e em aulas que descobri recomendações que “levei comigo p’ra vida”. Foram os professores “cuja paixão pelos livros o[s] enchia de paciência e que conseguia[m] até dar-nos a ilusão de amor”, aqueles professores que “não metiam à força o saber, ofereciam o que sabiam”, que me tornaram leitora e são eles os ilustres culpados – no melhor sentido possível – das centenas de livros que estão na minha estante à espera de ser lidos. “Era preciso que ele[s] gostasse[m] muito de nós – ou nos estimasse[m] muito – para nos dar a ler o que lhe[s] era mais querido!” (Pennac).
Já dediquei muita tinta da minha caneta a escrever no Jornal Tribuna sobre livros. Tal circunstância até já me fez questionar se estou na Unidade Orgânica certa da Universidade do Porto!
Mas é nos livros que vejo a minha casa. É neles que vejo o sítio onde regresso depois do trabalho, depois de um dia difícil, ou até depois de um dia muito feliz. É neles que revejo a minha zona de conforto. É neles que, em certa medida, me encontro e localizo. É (também) neles que aprendo: sobre os outros, sobre o mundo, e – talvez sobretudo – sobre mim própria.
@Jornal Expresso
Os livros, como as bibliotecas (e como os aeroportos), “são lugares de partir e de chegar”, porque “todos os livros são infinitos. Começam no texto e estendem-se pela imaginação. Por isso é que os textos são mais do que gigantescos, são absurdos de um tamanho que nem dá para calcular. (…) Se os soubermos entender, crescemos também, até nos tornarmos monumentais pessoas. Edifícios humanos de profundo esplendor” (Contos de Cães e Maus Lobos, Valer Hugo Mãe).
E, por isso, a mensagem que tenho para o leitor hoje é esta: leia. O que quiser, o que gostar, o que lhe apetecer; um parágrafo, uma página, uma coleção inteira; prosa, poesia ou teatro. Mas, pela sua saúde, e, essencialmente pela sua pessoa, leia. Eis a pseudo-receita “médica” deste Dia Mundial do Livro: um capítulo por dia não sabe o bem que lhe fazia (ou, se a frase motivacional cliché funcionar melhor em idioma internacional, one chapter a day keeps the doctor away!).
Certo que os livros não nos vão livrar do bloco operatório, mas ajudam-nos a alimentar a alma. E esta é uma coisa que, nestes dias tão cinzentos e em que temos tido razões para desacreditar no futuro da Humanidade, tem sido precisa. “Continuarei a dizer que a literatura não muda o mundo, mas cada vez mais vou tendo razões para acreditar que a vida de uma pessoa pode ser transformada por um simples livro” (José Saramago, Último Caderno de Lanzarote, 2018).
Que os livros continuem a impactar-nos como um “murro na cabeça”, como dizia Kafka.
Leio, por isso penso, logo existo.
“Os Livros”, por Manuel António Pina
É então isto um livro,
este, como dizer?, murmúrio,
este rosto virado para dentro de
alguma coisa escura que ainda não existe
que, se uma mão subitamente
inocente a toca,
se abre desamparadamente
como uma boca
falando com a nossa voz?
É isto um livro,
esta espécie de coração (o nosso coração)
dizendo "eu" entre nós e nós?
Martina Pereira Gonçalves
Departamento Cultural
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