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Foto do escritorAda Pousa

Metade de mim é cansaço

Do lado de lá da minha janela, há gotas de chuva que deslizam, cintilando com a luz dos candeeiros noturnos, e pingam de um cabo elétrico, caem de forma audível de tão pesadas que são - apenas se adivinha o que carregam -, e eu oiço o seu choro mesmo através do vidro. Pergunto-me se elas conseguirão ouvir o meu, se será esta observação natural algo mútuo entre nós, coisas sem propósito, se terão elas e as minhas lágrimas, estas que me mancham o caderno de notas com tinta invisível, empatia e simpatia pela situação umas das outras.


Deslizam-me pelos dedos as gotas que poderiam deslizar por aquele fio negro, fosse eu outra paisagem que não a deplorável figura que permiti ser esculpida. Estes mesmos dedos que me despenteiam as pestanas miúdas são os artesãos por detrás da bela obra que sou eu, molhando-se de pranto para moldar o barro húmido a seu belo prazer. Com os polegares, esticaram-me as olheiras; com os indicadores entortaram-me a boca em agonia. Tão altas vão as sobrancelhas que eu me quedo em perpétuo estado de espanto, a melhor audiência para uma peça de teatro com atores inexperientes. Olhos encovados, tenebrosos, assustadores, mais mortos que despertos, instáveis e estáticos. Barro áspero, pele porosa, um relevo de corpo e espírito que mais se assemelha a pedra que a carne. E a estátua que se cria, uma careta de tragédia quasi-grega, melancólica e aterradora, é a fonte de seu próprio sustento - não me podem acusar de não ser autónoma -, garantindo uma maleável tortura que perdura. Da massa amorfa, do nada que já fui, do berço que já habitei, das possibilidades que já tive, eu, de mãos untadas, moldei uma criatura passiva com um ferocidade latente nas unhas quebradas e roídas, nos dedos tingidos de perda, nas estradas de choro ácido, nos pés secos e calejados. Poderia ter criado algo totalmente distinto, em tudo diferente, um outro ser utópico, perfeito, em comparação, uma aluna exemplar, que não se distraísse com pingos de que não rezará a memória em vez de se focar na matéria que momento a momento se parece estender. Podia ter sido carinhosa com o toque, acariciado o barro em vez de o golpear, ignorando técnica, valor, mérito. Podia ter amaciado a pele, mas deixei-a ser agressiva e pouco convidativa. Podia ter tido quimera, mas criei algo pouco onírico: um ser cuja sombra criaria no âmago humano uma tal atrofia que uma pequena parte da nossa irmandade e humanidade definharia imediatamente. Criou-se um bicho alimentado a medo, stress, constante insegurança e nervosismo, uma besta inteira que não sabe lamber as feridas que as próprias unhas desenham. Não sabia que o barro sangrava.


Com os olhos enlameados, baços, por vezes escapa-se-me a queda de um ou outro pingo, e um ou outro pingo acabam por existir e extinguir-se sem reconhecimento. Tanto podiam ter ali estado como nunca lá esteve. Tanto se podiam ter deixado permear pela luz alheia, luas pequeninas a orbitar um cabo, como podiam ter não existido. Tanto podiam ter deslizado vagarosamente, pesarosas de seu destino, arrastando-se, gotícula a gotícula, átomo a átomo, pelo cabo esticado, como um condenado em prancha pirata, como podiam ter-se precipitado para o seu destino antecipadamente, ora fatalistas, ora catalistas...isso ou podiam nunca ter existido. Facilmente se ignora e vota à inexistência aquilo que a nossa vista evita ou que os nossos olhos estão cansados demais para notar. Estas minhas lágrimas estão votadas ao ambíguo eterno para o mundo, porque não tiveram testemunha que sobrevivesse - uma a uma, todas as gotas descem à terra para subir aos céus. Talvez se este meu lápis falasse… Se tivesse força própria para se arrastar pelas páginas cobertas de algo que eu já devia ter decorado há muito, sobrepondo-se arrogantemente às palavras por outrem recitadas, e escrevesse - assinando e tudo - todas as dores que carpi… Se as letras que esta mão já criou se conseguissem organizar sozinhas, uma a uma, juntando-se por vontade coletiva única para relatar o quanto de minha boca já escutaram… Encheriam os vários cadernos que eu acabo por deixar em branco, por falta de tempo ou de coragem, demasiado cansada para neles rever as dores de quem se condói. E eu acabaria com lacunas no estudo impossíveis de preencher, diga o que disser a doutrina. E ainda que o pensamento me divirta e console, este lápis nunca poderá ser companhia maior do que as minhas unhas - só me serve quando o uso. E as letras no meu caderno de estudo só me servem na ordem em que estão. E, por isso, ninguém me testemunha, e eu cerro os olhos para também ter nada de mim mesma a reportar.


Eu choro e não choro ao mesmo tempo - nunca se saberá até os olhos se abrirem, mas eles estão inchados demais. Como um canário solitário, prostrei-me ante um espelho e procuro acompanhar-me de mim mesma, ignorando o quão incompatível somos, eu e o meu reflexo. A dada altura, não me lembro quando, deixei de ser capaz de reconhecer a visão do outro lado. Da mesma forma que perdi o funeral de uma ou outra gota, perdi o enterro de uma ou outra parte de mim. Não notei quando estas mãos trémulas e sofridas arrancaram os excessos de barro sem aviso - estava demasiado dormente para me aperceber, num estado anestesiado de apatia solitária que só quem se acompanha de amargura e desespero sente. Não me lembro de cavar com estas unhas imundas os buracos na terra que serviram de leito eterno a bocados do "eu". Não saberia dizer que pedaço de mim me arrancaram primeiro, se a esperança ou a capacidade de perseverança, e não sei explicar ao certo o porquê de o sorriso no espelho ser torto e angustiante, e não sei como consegui o grande feito de perder tudo o que me definia mesmo estando sempre abraçada a meu próprio corpo, numa pose semi-fetal de quem roça o limbo da inexistência, a deslizar pelo fio da vida - seria de esperar que esse colete de forças que criei, essa jaula sobre a gaiola da caixa torácica, além de me sufocar, pudesse ao menos proteger-me e aos meus pedaços decadentes e degradados também. Há uma especial solidão, um inescrutável silêncio, na lembrança de quem já fomos. Recordar que já houve vida nestes olhos faz-me engasgar com um riso por entre um soluço. Vim aqui parar porque tinha vida nos olhos. Pensei que vinha para um campo de batalha, lutar pelos sonhos - não têm outro nome agora - que se alargavam para um horizonte que só mesmo num enorme, vasto, amplo campo de batalha pareceria encaixar-se. Mas acabei num cemitério. Vi como me esculpiam a lápide antes de me convencer que já morrera. Ouvia palavras que soavam como eco, numa dimensão distinta, antes de me aperceber que eu já não pertencia a este mundo. Até me deitei na vala antes de sentir o sangue nas minhas veias esfriar. Tentava, pobre fantasma, agarrar-me ainda ao ideal que a minha mente imaginara, ver nas cruzes as espadas que esperava, e ouvir nas vozes os conselhos dos deuses aos grandes heróis da mitologia. Deve ter sido a primeira pá de terra que me cobriu o rosto que me fez atingir a apatia. O meu horizonte não se estendia muito mais do que esta janela do meu quarto.


Como uma gota, como aquela que acabo de ver cair, reluzente e alongada, eu estou agarrada a um cabo, um fio, uma linha fina que a algum lado há de ir dar - pena que a minha janela não se estende o suficiente para ver aonde. E temo vir a cair antes de algum dia vir a descobrir, cada vez mais pesada, cada vez mais apressada, cada vez menos próxima do holofote, cada vez menos cintilante. De um momento para o outro, tanto podia ter existido como deixei de existir. Tanto podia estar no campo de batalha como na cova. Tanto podia ter sido a gémea de meu tenebroso reflexo como podia ele ter sido a minha radiante outra metade. Tanto podia ter sido uma disforme estatueta de barro sujo como podia ter sido um pilar de ouro. O mundo, de olhos baços e de luto por ele mesmo, piscou e perdeu-me de vista. Para ele, eu fui e nunca fui, tal como foram e nunca foram as gotas que eu não testemunhei. Melhor assim. É melhor não deixar dor quando se existe e não se existe. É melhor partir ou nunca ter chegado de forma suave, sem deixar mazelas. É melhor extinguir ou nunca ter surgido como orvalho pela madrugada: mesmo não tendo sido visto, sentimos a leveza que ele deixa, mesmo depois de se ter evaporado ou nunca ter condensado, como se caminhássemos sobre nuvens ou almas doces passadas.


O ambíguo é terrivelmente solitário e aliciante, concede uma liberdade ilimitada entre o tudo e o nada, entre os quais se inserem uma miríade de possibilidades de existência e inexistência exclusivas. É ser-se estátua e ainda massa sem forma. Poder existir abaixo do ser, e existir acima do que houver por baixo... Poder respirar apenas de um pulmão, piscar um olho, mexer uma mão - sempre a direita, não fôssemos nós Sete Sóis, ou talvez apenas três e meio -, bater em tudo menos uma batida cardíaca, e mais devagar do que o costume. Ser limitada, mas mais capaz pela metade do que seria por inteiro. Sofrer pela metade, ter os gritos cortados a meio, ver a dor reduzida por 50%, olhar para um espelho e não ter reflexo. [Neste momento o que mais gostava de ver pela metade é a matéria…] Não ter garantias de existência, não haver fóssil que nos denuncie, não deixar pegada que nos rastreie, não encontrar ninho que nos identifique o poiso. Passámos como a água. Deslizamos como as gotas. Escorremos como as lágrimas. Estivemos cá, mas não foi uma existência notável. Para o mundo, não duramos mais do que um piscar de olhos. E, ainda assim, sofremos tanto... A dor duplica pelas circunstâncias por que vez ou outra temos que passar, e, mesmo cortada pela metade, uma dor duplicada continua a ser uma dor inteira com que se há de lidar. Há de se lidar com o tempo que se passa em casa, que parece aumentar a cada dia que passa, e cada dia passa mais devagar, devagar, devagar... Há que se lidar com a solidão de uma cidade com muralhas mais altas que os mais altos prédios, a maior sendo o mar que separa definitivamente a pessoa da sua terra, intransigente e severo. Há que se lidar com a falta de estímulo contínuo e como isso afeta uma mente sempre pensante. Há que se lidar com as quebras de rotina que viram rotina exaustiva. Há que se lidar com noites passadas em claro e dias pintados com tons mais escuros. Há que se lidar com o vazio, sempre o mesmo vazio - para onde quer que as mãos se estiquem, se estendam, não esbarram com nada, não tocam em nada, não agarram nada. Há que se lidar com os anos que se tem, e com o pouco - quase nada - que se pode fazer com eles. Há que se lidar com a falta, a espera, a falha, a supressão. Há que se lidar com a fraca atenção em momentos de aprendizagem, com um supremíssimo cansaço mal se acorda, com um estado perpétuo de mal estar, com tremores e arrepios que escalam o corpo e explodem por dentro como foguetes que nada celebram… Há que se lidar com os ecos no cemitério, com a realidade que rivaliza a idealização, com os lápis que não nos consolam, com letras que insistem em não ser rebeldes, com as manchas que só nós identificamos nos nossos cadernos, com a estátua que a nossa pouca experiência foi capaz de criar (afinal, se já vivi antes o que vivo agora, não tenho a bênção de reter lembranças desses tempos d’outra vida).


E há que se lidar com a junção de tudo, toda esta entropia, à sombra de um testemunho que cedo capitula. Porque, ao fim do dia, quando o mundo escurece e não temos garantias que o sol existe, quando perdemos de vista a lua por detrás dos prédios, temos como companheiras as pequenas luazinhas escorregadias num cabo elétrico do outro lado de uma janela fechada.


Ser em tudo metade... Ser em tudo metade... Metade de mim é abrigo, e a outra...

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