Equívoco, desassossego, melancolia e uma incessante necessidade de alcançar consolo são o mote para o desenrolar da peça A Praia, de Peter Asmussen. O desatino e medo ininterruptos experienciados por cada personagem espelham de modo exímio a busca de algo perfeitamente incógnito, que frustra o mais comum ser humano. Encenada por João Reis, a peça conta com a interpretação de Filipa Leão, João Pedro Vaz, João Vicente e Lígia Roque e esteve em cena, na Invicta, no Teatro Carlos Alberto de 14 a 24 de setembro.
Os casais Jan e Sanne e Benedikte e Verner conhecem-se por um mero acaso (não tão aleatório assim) num hotel isolado no litoral da costa nórdica durante as férias de verão. Jan e Sanne voltam, repetidamente, desde o seu casamento para o hotel. Quanto a Benedikte e Verner, é uma casualidade que os leva lá, no entanto, reaparecem sempre, como se houvesse algo caótico que os impele a tal. Nada de interessante, nem mesmo de desinteressante acontece por ali – a aparente comodidade e conveniência é o que motiva estes dois casais a regressarem ano após ano para um «nada» em forma de alojamento. A verdade é que o convívio entre eles, apesar de aparentar uma amizade trivial, não o é – é antes uma sucessão de encontros, reencontros e desencontros que se assemelham quase a uma terapia de casal (bastante infrutífera, diga-se), na qual todos são pacientes de todos.
O hotel e a praia que o envolve são palco de um imenso tédio e de uma pasmaceira abismal, abrindo-se espaço para uma reflexão profunda, que desperta fantasmas adormecidos em todas as personagens. Repensam-se as relações amorosas de cada um (havendo, inclusivamente, uma troca de casais aparentemente escondida), o percurso de cada um (seja na esfera individual, como no entrosamento com os demais) e, sobretudo, confrontam-se com a desafinação e o desconcerto que há muito pauta as suas vidas. Há uma necessidade de consolo assustadoramente notória em cada personagem – e é precisamente essa procura contínua (sempre insatisfeita) que leva cada um deles a afastar-se mais do que é o efetivo bem-estar. Estas personagens, agudamente desconcertadas com o que as rodeia, bastam-se com as triviais conversas sobre «o que aconteceu no ano passado», recordando o ano passado melhor do que efetivamente foi, procurando nestas memórias (não tão aprazíveis como se querem lembrar) a gasolina para os anos seguintes.
A Praia está carregada de simbolismo, de tal modo que nada é simplesmente o que é: a máquina fotográfica serve de confirmação ao que aconteceu, quase como, se não tivéssemos um registo físico, determinada situação seria apenas produto da memória sem concretização efetiva; uma pedra preciosa com um inseto não é um mero adorno, mas antes uma tentativa de salvar uma relação arruinada; um rádio é um verdadeiro salvamento, porque «tudo é mais fácil com música»; e, por fim, o hotel que, em breve, desaparecerá por conta da erosão costeira, é o espelho das vidas de cada um engolidas pelas próprias expectativas.
Não é falacioso dizer que todos somos um pouco assim, pois não? Colocamos na espera por algo que não sabemos bem o que é a ideia da felicidade e do consolo, quase como se tal nos alimentasse ao mesmo tempo que nos deixa inquietos. Vivemos assoberbados por uma preocupação angustiada pelo que há de vir, perspetivando-se o passado como aprazível, porque o presente não o é. Em breve será melhor, certo? Queremos a confirmação, a certeza, o definido, a estabilidade, mas a nossa existência não é mais do que um conjunto labiríntico de acontecimentos que não nos dá a mais ínfima réstia de controlo.
No momento presente, procuramos tão incessantemente alcançar algo, que nunca dele conseguiremos desfrutar plenamente. (In)conscientemente, percorremos um caminho que tolda a própria felicidade – isto é, a busca infindável pela felicidade é mal-sucedida, porque a obsessão em encontrá-la encobre a beleza e simplicidade do que, nos dias mais normais, nos rodeia. E esta busca é verdadeiramente assustadora, colocando em cima da mesa os nossos mais profundos receios.
E é precisamente esta ideia que Peter Asmussen pretende demonstrar num texto cru e quase violento de tão desconcertante e propício à reflexão que é. Testemunhamos um jogo brilhante (que nos é tão próximo) de consequentes aproximações e fugas de um ideal quase inalcançável. Nas palavras do encenador, é como se Jan, Sanne, Benedikte e Verner «[…] esperassem por alguém que as possa resgatar e reconduzir a um outro lugar, mesmo que de ilusória harmonia».
Minha, tua, sua, nossa, vossa, sua Praia.
Beatriz de Oliveira Loureiro
Cultural
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