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Foto do escritorBeatriz Morgado

Mulher, vida, liberdade: uma história breve da mulher no Irão

Hoje:


Mulher, vida, liberdade” são as palavras que ecoam pelas ruas do Irão e de todo o mundo. Tem sido impossível ignorar a revolta popular das mulheres iranianas, que eclodiu em meados de setembro deste ano, no seguimento do dia fatídico que levou Mahsa Amini, uma mulher curda, de 22 anos, que passeava com o irmão pela cidade de Teerão, quando foi abordada pelas autoridades iranianas encarregues do policiamento da moral e conduta islâmicas, já longas conhecidas das mulheres do Irão. Esta interação seguiu-se de uma detenção e transporte de Mahsa para uma esquadra, onde seria alvo de uma “sessão de reeducação” sobre o uso impróprio do hijab, o véu islâmico, à qual não sobreviveu.



A pergunta que subsede a esta tragédia (e a muitas outras que lha antecederam) é um simples porquê: porque é que duas madeixas de cabelo de fora do hijab foram motivo suficiente para que Mahsa Amini fosse sequer interceptada pelas autoridades? Porque é que observamos um atropelamento reiterado e crescente dos Direitos Fundamentais da mulher (e não só) neste país? A verdade é que esta revolta é apenas um sintoma do que é o grande tumor que é a condição feminina no Irão, cujas metástases sufocam as mulheres iranianas desde muito antes da Revolução Islâmica de 1979, mas que se encontra em crescimento acelerado desde então.


Pahlavi pai – Urbanização, laicização e nacionalismo:

A Revolução Islâmica de 1979 veio terminar com a monarquia autocrática da linha Pahlavi, instaurada em 1925, através de um golpe de Estado apoiado pelos britânicos, que se preocupavam com a aproximação do interesse da Rússia a certas províncias iranianas, que colocou Reza Pahlavi sentado no trono, pondo um fim à longa dinastia dos Qajar, que dominou o território persa durante mais de um século.


Iniciou-se, então, uma série de políticas de secularização e urbanização acelerada do Irão.

Todavia, estas passavam mais por inovações ditas palpáveis, através de uma grande política de obras públicas, por exemplo, do que propriamente pelo progresso social e direitos civis e políticos, especialmente os das mulheres.


É importante afirmar que esta não foi uma época de grandes avanços para a comunidade feminina da então Pérsia. Apesar de, ter existido um esforço para que proibições arcaicas cessassem, através da atribuição de multas aos estabelecimentos que recusassem a convivência entre homens e mulheres, ou da admissão destas na Universidade de Teerão, as mulheres ainda não podiam divorciar-se dos maridos, exercer o direito ao voto, ou ocupar cargos públicos, muito menos frequentar o Ensino Superior de forma livre, já que estariam restritas a um número reduzido de cursos.


Entenda-se, também, que a laicização forçada não contribuiu necessariamente para a emancipação feminina, já que foi adotada uma prática de perseguição daquelas que usassem o hijab ou túnicas em público, através da remoção forçada dos mesmos, confinando as mulheres religiosas de classe alta às suas casas e humilhando publicamente aquelas das classes mais baixas, que eram obrigadas a sair. Isto ajudou a cultivar um grande sentimento de revolta contra o Shah Reza Pahlavi entre a comunidade religiosa, algo que contribuiu para o simbolismo que o Islão viria a comportar mais tarde.


O hijab, mais do que um símbolo religioso, passou, então, a ser um símbolo da identidade de uma nação revoltada com as políticas opressoras do Governo, o que fertilizou o terreno para as políticas que viriam a desabrochar após 1979.


A permanência no trono de Reza Pahlavi foi encurtada pela intervenção das tropas aliadas em 1941, que pretendiam controlar a rota do petróleo durante o escalar da 2ª Guerra, com a invasão da URSS pela Alemanha nazi, sendo que o Irão tinha fortes relações comerciais com os países do Eixo. A aproximação do Irão a esta fação não se explica tanto por uma proximidade ideológica, mas sim por uma exclusão de partes, já que o Irão tinha uma relação de animosidade com potências ocidentais como os Estados Unidos, e principalmente, o Reino Unido (muito devido ao acordo anglo-iraniano a propósito da Anglo-Iranian Oil Company (AIOC), que beneficiava notoriamente os interesses britânicos, em prejuízo dos do Irão, ao permitir um controlo total da indústria petrolífera iraniana pelo Reino Unido, uma vez que estes tinham a quota maioritária das ações da empresa).


Pahlavi filho – o último monarca:


Assim, no mesmo ano, Reza Shah Pahlavi abdicou do trono para o seu filho, Mohammad Reza Shah Pahlavi, que continuou o seu legado de secularização e ocidentalização do Irão; todavia, contrariando a tendência do seu pai, fortaleceu as relações diplomáticas com os Estados Unidos da América, seguindo uma lógica de aproximação dos dois países, apesar dos esforços contrários do Primeiro-Ministro da época, Mohammad Mossadegh, uma figura adorada pela população iraniana, que pretendia nacionalizar a indústria petrolífera (originando a disputa United Kingdom v Iran no Tribunal Internacional de Justiça, em 1951), o que fez com que os serviços secretos britânicos e americanos engendrassem um Golpe de Estado que o viria a depor em 1953, algo que concentrou mais poder no Shah, antagonizando ainda mais as relações entre o povo e Pahlavi.


Além disso, o reinado deste Shah, especialmente a partir de 1953, foi marcado por um comportamento constante de gastos excessivos, estravagância, autoritarismo e despotismo sobre aqueles que se manifestavam contra as suas políticas de urbanização acelerada, assim como a constante falta de preocupação em integrar as camadas mais religiosas do país nas suas políticas, o que fez com que, mais uma vez, a religião ocupasse um lugar no sentido de identidade nacional do Irão, construindo as raízes que viriam a suportar o fundamentalismo islâmico do regime que hoje vigora.


Se se estão a perguntar o que é que este reinado significou para a luta pela emancipação feminina: nas primeiras duas décadas, muito pouco.


É de notar que, por mais que os Pahlavis admirassem tudo o que é moderno e quisessem aproximar o Irão ao ocidente e às suas práticas, continuavam a conceber o país como uma família da qual eram os patriarcas, controlando as mulheres no seio do mesmo. Apesar deste paradigma ter sofrido alterações em 1963, uma vez que o Shah concedeu o direito ao voto às mulheres iranianas no referendo do mesmo ano, que pretendia aprovar o pacote de políticas económicas apelidadas de “Revolução Branca”, há que frisar que este acontecimento foi, mais do que um ato de preocupação pela emancipação feminina, um produto de pressões da administração Kennedy, que exigiu que fosse dado o direito ao voto às mulheres, para que se aumentassem as ajudas financeiras dos Estados Unidos.


Revolução e regime islâmico:


Por fim, em fevereiro de 1979 dá-se a Revolução Islâmica, que termina com um longo historial de monarquia no país, assim como com todas as políticas de modernização e secularização que foram postas em prática desde o início do século XX. É importante mencionar que, quando este tumulto social estava na sua fase de encubação, conseguiu atrair o apoio (ou pelo menos a não oposição) de certos grupos feministas e de camadas mais liberais, já que teorizava que esta nova conceção de Estado republicano, com influências da corrente islâmica xiita, iria acabar por contribuir mais para a liberdade da mulher, na medida em que se afastaria da objetificação e sexualização constantes da mulher nas sociedades liberais ocidentais, apresentando uma solução para estes problemas com base no conservadorismo islâmico.


No entanto, esses grupos que idealmente não se alinhariam com esta visão teocrática, rapidamente vieram a constatar que essa valorização da integridade da mulher era meramente aparente, já que esta só era aceite se correspondesse aos padrões idealizados pela Lei Sharia – o enquadramento jurídico dos ensinamentos do profeta Maomé, integrados com o costume islâmico.


Apenas nos 2 anos que se seguiram a março de 1979, deu-se um fenómeno de total subordinação dos direitos das mulheres conquistados até então, em detrimento dos ideais ultraconservadores do líder da revolução Ayatollah Khomeini, até mesmo por parte das camadas mais moderadas, já que estas (compostas maioritariamente por grupos de esquerda, nacionalistas seculares e muçulmanos não fundamentalistas) recordavam com maior temor os anos em que o Irão fora dominado pelos interesses ocidentais, do que os longos séculos em que as mulheres não lhes viam reconhecidos quaisquer direitos políticos e sociais.


Implementaram-se, então, medidas que regrediram imensamente as conquistas do movimento de emancipação feminista iraniano, como a obrigatoriedade do uso do véu islâmico (o hijab), a exclusão das mulheres de certas áreas no mercado de trabalho, entraves ao divórcio e aos direitos no matrimónio, restrições no vestuário e no convívio entre mulheres e homens, registo que se mantém até hoje, em todas as vertentes da vida da mulher.


Com a análise histórica da evolução dos direitos das mulheres neste país, é possível compreender como é que um regime teocrático islâmico conseguiu consolidar-se num país dominado pelo secularismo e modernidade desde os inícios do século XX, que nem tem, historicamente, laços especialmente fortes com a cultura islâmica, pelo menos comparado a outros países que incorporam a Lei Sharia no seu sistema jurídico. De facto, o Islão tornou-se, ao longo dos anos, uma forma de unir o povo contra uma série de políticas de cariz autoritário implementadas na dinastia Pahlavi e contra a ingerência estrangeira ocidental que dominou o país durante séculos. Assim, a religião desenvolveu raízes profundas que suportam, até hoje, o ódio e revolta para com o progresso associado a correntes ocidentais e seculares, o que engloba a rejeição da Declaração Universal dos Direitos Humanos e outros preceitos similares.


No entanto, estas raízes têm vindo a enfraquecer-se nos últimos anos, muito devido à participação dos jovens no que são as lutas pela queda do regime e implementação da democracia, já que estes representam cerca de 40% da população iraniana. Hoje, observamos neste país uma revolução sem precedentes, com jovens mulheres na linha da frente, inconformadas com a sua condição de cidadãs de segunda categoria, reclamando o que é seu por direito, sem véu e sem medo.


O que é que o futuro lhes reserva? Isso é impossível de prever; porém, é certo que nada ficará igual. Gostava de fazer minhas as palavras de Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, em Novas Cartas Portuguesas:


A revolta da mulher é a que leva à convulsão em todos os estratos sociais, nada fica de pé; nem relações de classe, nem de grupo, nem individuais, toda a repressão terá de ser desenraizada […] Tudo terá de ser novo […] E o problema da mulher, no meio disto, não é o de perder ou ganhar, é o da sua identidade.”.


Beatriz Morgado

Sociedade

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