A Mutilação Genital Feminina (MGF) corresponde ao conjunto de procedimentos que têm como finalidade a remoção, total ou parcial, dos órgãos externos femininos, sem justificação médica. Esta prática, geralmente realizada com facas especiais, tesouras, bisturis, pedras pontiagudas, pedaços de vidro ou lâminas de barbear e sem qualquer tipo de anestesia, assombrou mais de 200 milhões de meninas e mulheres em 30 países da África, bem como no Médio Oriente e na Ásia. Dados estimados pela OMS (Organização Mundial da Saúde), avançam que todos os anos, cerca de 3 milhões de meninas e mulheres estão em risco de sofrer algum tipo de mutilação.
O procedimento em questão é realizado, principalmente, em meninas, cuja idade vai flutuando entre os 4 e os 14 anos de idade. Após a sua execução, as suas pernas são frequentemente imobilizadas entre 10 a 14 dias, permitindo, assim, a cicatrização da região. Para além de ser um ritual devastador em termos psicológicos, a verdade é que não conseguimos ficar indiferentes às complicações imediatas causadas pelo mesmo, que incluem: dores intensas, hemorragias, infeções, lesões no tecido adjacente e febre. As mesmas são graves o suficiente para que, muitas vezes, o desfecho seja a morte. Além do mais, podemos ainda referir que, mesmo realizada em local estéril e por um profissional, a prática nunca pode ser caracterizada como “segura”, uma vez que não provê qualquer tipo de benefício.
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A MGF acaba por ser o reflexo de uma profunda desigualdade de género nas sociedades em que é exercida, sendo realizada com o objetivo de controlar a sexualidade das mulheres, acreditando-se que as mesmas não são merecedoras de prazer sexual, devendo este estar reservado aos homens. Esta herança cultural é, reiteradamente, pré-requisito para o casamento e, embora não seja uma prática de índole religiosa, os argumentos desta esfera servem regularmente como justificação à realização da mesma.
Para além de ser medicamente inaceitável, a MGF revela-se altamente violadora dos direitos humanos, todavia, os gritos desesperadores das suas vítimas são abafados no seio de uma cultura que as aprisiona. E é precisamente aqui que vemos vertida a seriedade da questão. Isto porque a ancestralidade do procedimento em causa acabou por fazer com que o mesmo fosse perspetivado sobre uma lente de normalidade, tanto por homens, como por mulheres. E sim, na grande maioria das vezes, a cultura serve-nos de conforto e casa, no entanto, quando os argumentos culturais são a base para a perpetração de violência, não podemos ficar de outro lado que não o da mudança. Esta acaba por ser possível apenas quando as pessoas afetadas percebem os perigos desta prática e entendem, ainda, que podemos manter costumes e tradições sem mutilar ninguém.
Muitas vítimas acabaram por se converter em ativistas pela causa, uma delas sendo Bishara Hamo. A mesma relata que, quando tinha apenas 11 anos, foi levada para uma cabana no Quênia por seis mulheres idosas, juntamente com mais três meninas. O pretexto desta viagem parecia inocente: furar as orelhas. Todavia, a inocência foi rapidamente substituída pelo pânico. Bishara foi vedada, deitada no chão e, enquanto uma mulher se sentava sobre o seu peito, outra abriu as suas pernas e uma terceira realizou o procedimento. A confusão, aliada ao medo e ao desespero, tomou conta de Bishara, que revelou ter sentido a maior dor da sua vida naquele momento.
Bishara Hamo
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“Gritei, gritei, mas ninguém podia me ouvir. Tentei soltar-me, mas o meu corpo estava preso.". O seu relato tem, de facto, o poder de ecoar nas nossas mentes e fazer-nos sentir um desconforto inexplicável. Mas maior que este, foi aquele vivenciado por esta mulher, que, findo o procedimento, se viu obrigada a ficar naquele local por uma semana, com as pernas presas, sentada sobre ervas queimadas (usadas para selar o local da “operação”) e rodeada pelo seu próprio sangue. Este ato de pura malícia causou em Bishara problemas de saúde que permanecem até aos dias de hoje e, por isso mesmo, a sua missão é fazer com que as meninas alvo destas práticas não sofram em silêncio, procurando dar-lhes voz.
A MGF é parte integrante da identidade cultural das mulheres inseridas nestas sociedades, oferecendo-lhes um sentido de orgulho e integração. Mas qual é o preço a pagar por esta prova de obediência? Infelizmente, falamos aqui de uma tradição que se vê cumprida, mesmo que às custas do sofrimento feminino (que, na esmagadora maioria das vezes, não é consentido). Em Portugal, a MGF é um crime autónomo desde 2015, sendo percebida como um verdadeiro atentado à integridade física da mulher. Resta-nos ansiar que mais países olhem para esta prática, não como tradição ou cultura, mas sim como o crime que representa.
Lucília Oliveira
Departamento Fazer Pensar
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