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Foto do escritorBeatriz Castro

Nadine Labaki: um cinema de rosto (muito) humano


Imagem 1: Nadine Labaki


O sucesso do primeiro filme veio com surpresa para Nadine Labaki: “quando andava na escola primária, a professora apontava para um pontinho muito pequenino no mapa e dizia: «vejam, aqui fica o Líbano». Sentes que vens de um sítio muito pequeno e invisível e que, por isso, nunca conseguirás atingir nada de extraordinário” – revelou numa entrevista.


Nasceu em 1974, nesse “país pequenino” que é o Líbano, num momento em que despoletava a guerra civil (1975-1991). O conflito não permite que viva uma infância normal: não podia sair de casa para brincar quando queria e havia longos períodos em que deixava de poder ir à escola. A crise que assolava as ruas fazia com que faltasse frequentemente a energia elétrica e que o ponto alto do dia, para Labaki e a irmã, fosse ver televisão, quando a energia reaparecia magicamente. Como vivia por cima de uma loja de aluguer de filmes, passava horas a escolher películas e a rever as que mais gostava, vezes e vezes sem conta. O cinema e a televisão começam por ser um escape ao aborrecimento do dia a dia, uma oportunidade para viver outras vidas, para sonhar. Cedo percebe que quer tornar-se realizadora, tal era a vontade de contar histórias de outras pessoas e escapar de uma realidade que a atormentava


Na adolescência, com o país ainda em guerra, parte para o Canadá, onde permaneceria durante três anos, adquirindo a nacionalidade canadiana. Regressaria ao Líbano para estudar Audiovisual em Beirute, altura em que começa a destacar-se na realização: o seu projeto final de curso, 11 Rue Pasteur, vence o prémio de melhor curta-metragem na Bienal de Cinema Árabe do Arab World Institute em Paris. Contudo, o longo período de guerra havia arrasado por completo a indústria cinematográfica libanesa e Labaki vê-se obrigada a fazer carreira na Publicidade, tornando-se esse o seu primeiro laboratório de experimentação. Mais tarde, realiza também videoclipes de artistas árabes, recebendo vários prémios pelo seu trabalho.


No início dos anos 2000, lança-se como atriz em curtas-metragens, aparecendo em filmes como The Seventh Dog (2005) e Bosta (2006). É só em 2006 que arrisca o salto para as longas-metragens e convence a sua produtora a acreditar num primeiro projeto, quando ela própria ainda não fazia ideia de como o iria concretizar: Caramel (2006) estreia em Cannes e é um sucesso comercial. A premissa do filme é simples: cinco mulheres encontram-se num salão de beleza, de que uma delas é proprietária, para falarem sobre os altos e baixos do seu quotidiano. Com este début, que também protagoniza, Labaki dá a conhecer um Líbano nunca antes retratado em Cinema, e permite-se afirmar uma identidade enquanto realizadora. Destacam-se a preferência por um elenco de “não atores”, o protagonismo do olhar feminino, a utilização do humor, a abordagem não politizada de temas de direitos humanos, o retrato da cultura libanesa e, dentro desta, a valorização da sua música em praticamente todos os seus projetos ressalta uma profícua parceria com o seu marido, o músico e compositor Khaled Mouzanar.  


Imagem 2: Caramel (2006)


Em 2010, surge o segundo filme, Where do we go now?, também protagonizado pela realizadora. O enredo centra-se na iminência de uma guerra religiosa provocada pela tensão entre homens muçulmanos e cristãos coabitantes de um povoado do Médio Oriente (cuja localização exata, propositadamente, não se chega a precisar), que as mulheres pretendem impedir. Um tema fraturante e ousado, numa abordagem original (e musical), que se converte numa história universal. Em entrevista, Labaki veio dizer que a ideia para o filme surgiu em 2008, quando estava grávida do seu filho, porque a gravidez a fez refletir sobre o extremo a que uma mãe chegaria para impedir o seu filho de “ter acesso a armas e ir lutar para as ruas”. A obra foi premiada internacionalmente, tendo estreado em Cannes, onde venceu o prémio Un Certain Regard, em 2011.


Imagem 3: Where do we go now? (2010)


Já com visibilidade internacional, a terceira longa-metragem traz o derradeiro reconhecimento. Cafarnaum (2018) surge de uma urgência em quebrar o silêncio e dar voz à realidade chocante dos refugiados, em particular aqueles que se encontram no Líbano, que hoje representam cerca de um milhão e meio, em aproximadamente oito milhões de habitantes. “Senti-me de certa forma responsável, senti que se não quebrasse o silêncio era como se estivesse a contribuir para a manutenção desta realidade criminosa”, confessou Labaki. 


A imagem que deu impulso ao trabalho criativo foi a do corpo de uma criança de três anos que, em 2015, deu à costa na Turquia: “nesse momento pensei: quais seriam os sonhos desta criança? O que é que ela diria se pudesse confrontar a sociedade que a ignorou?”  Labaki sentiu que era a sua missão dar voz àquela e a todas as crianças negligenciadas pelo mundo que as rodeia: pelos pais, pelas pessoas que por elas passam na rua e desviam o olhar, pelo poder político. O título significa caos e milagre ao mesmo tempo; a história centra-se num rapaz de doze anos, refugiado sírio no Líbano, que pretende processar os seus pais por ter nascido: Zayn, o protagonista, pede que os pais sejam proibidos de ter mais filhos, por nunca lhe terem conseguido assegurar os seus direitos mais básicos e fundamentais


Imagem 4: Cafarnaum (2018)


Sendo este um projeto delicado, Labaki sentiu a necessidade de levar a cabo uma intensa investigação nas ruas do Líbano, que durou quase quatro anos – desde os bairros mais problemáticos, onde entrevistou dezenas de crianças e os seus pais, a tribunais, onde observou como o sistema de justiça funcionava quando estavam envolvidas crianças (fossem elas as vítimas ou as acusadas). O objetivo era capturar a realidade da forma mais fiel possível e humanizá-la, dando-lhe rostos – e é esse que considera ser o grande propósito do Cinema em qualquer caso: humanizar os problemas, o conflito. Toda a pesquisa resultou numa mistura das cenas da vida quotidiana, que os membros da produção foram presenciando, com elementos de ficção, em grande parte inspirados nas experiências pessoais daqueles que as interpretam – desde logo, do ator principal, encontrado por Labaki nas ruas de Beirute, e que deu o nome próprio (e a história) a Zayn. 

Através dos olhos de Zayn, Labaki captura magistralmente a invisibilidade de uma criança, num contexto em que o trabalho infantil, o casamento precoce, a violência, a emigração clandestina, a falta de documentos e até de registo de nascimento são circunstâncias banais do quotidiano “durante as entrevistas, observámos que todas estas questões estavam muitas vezes presentes numa mesma família”, sublinha a realizadora. 


Uma realidade-ficção profundamente comovente, que fica imortalizada nesta obra-prima que é Cafarnaum, um filme que mereceu uma ovação em pé de quinze minutos no momento da estreia em Cannes, a 17 de maio de 2018, e culminou com o prestigioso prémio do júri do mesmo festival. Recebeu ainda a nomeação para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro 2019, convertendo Labaki na primeira mulher realizadora a ser nomeada para esta categoria (para além de primeira mulher árabe). 


De Caramel a Cafarnaum vai uma grande distância – “amadureci muito enquanto pessoa e realizadora depois de Cafarnaum”, admite Labaki, que desde 2018 apoia o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (UNHCR), como ativista. Contudo, em toda a sua cinematografia há algo que é impossível negar: a sensibilidade de um olhar com história, a inteligência de alguém que tem algo a dizer ao mundo, o enorme talento para trazer poesia ao grande ecrã. Para futuro, Nadine Labaki compromete-se a continuar a utilizar o seu trabalho em prol da mudança, despertando as consciências e o debate das grandes questões da humanidade, com destaque para a injustiça social que avassala o Líbano e o mundo  “não é uma escolha para mim, eu preciso de fazê-lo”.  



Beatriz Castro

Departamento Cultural

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