Na segunda-feira, dia 4 de novembro, a semana cultural da Associação de Estudantes da Faculdade de Direito da Universidade do Porto abriu com um momento de cariz didático e interventivo: um debate feminista. Neste debate, que envolvia os grupos académicos HeForShefdup e o FEMfdup, foram discutidos os tópicos mais atuais do feminismo como, por exemplo, a prostituição, a violência doméstica, o crime de violação e a interrupção voluntária da gravidez. Além disto, refletiu-se sobre o impacto desta problemática na Academia do Porto e, obviamente, deu-se um destaque especial à FDUP.
Antes de mais, julgo importante dar ênfase à perceção diferenciada que cada grupo académico tem sobre o feminismo. O HeForShefdup defende que “Ser feminista é querer ser livre sem enclausurar qualquer pessoa, é fazer parte de um movimento que defende, acima de tudo, a igualdade, mas também a compreensão, a solidariedade e o respeito, para com e entre todos os géneros possíveis”; enquanto o FEMfdup, como referiu a oradora Beatriz Morgado, considera que “o feminismo é a luta pela libertação coletiva da mulher contra todas as formas de exploração e violência”. Desta maneira, conseguimos perceber a primeira discrepância entre os dois grupos académicos, no sentido em que o HeForShe incluiu o homem na luta feminista, enquanto que o FEMfdup levanta algumas dúvidas.
Uma das questões que mais gerou discussão teve por base o papel do homem na luta feminista. A título pessoal, julgo que foi a questão cuja resposta conduziu a um maior desacordo, além de se ter feito ouvir uma maior agitação por parte do público masculino, que se podia contar recorrendo à ajuda dos dedos de uma das mãos. A oradora do HeForShe, Catarina Esteves, de uma forma objetiva, apontou que os homens deveriam reprimir as piadas machistas e aparecer em eventos como este, ou seja, mostrar interesse, esclarecer-se sobre a igualdade de género e informar-se em relação ao patriarcado. Já por parte do FEMfdup, este considera que os homens na luta feminista poderão “minar o movimento”, visto que a luta feminista não pertence ao homem, mas sim às mulheres.
Desta maneira, considera, à semelhança do HeForShe, que o homem deve ser decente e respeitador, só não concorda que deva integrar o movimento por dentro. A este respeito, Beatriz Morgado realizou uma analogia bastante pertinente entre o movimento operário e o movimento feminista, de forma a explicar que não se deve incluir o opressor no grupo dos oprimidos. Assim, considera que, da mesma forma que o patronato não se deve incluir na luta operária, o homem também não o deveria fazer na luta feminista, pois ele é o principal opressor da mulher. Esta perspetiva é coerente, já que o FEMfdup não considera válido ter um homem nos seus órgãos de direção, não excluindo, obviamente, a sua participação como membros ativos do coletivo.
Na questão sobre a “luta político-legislativa e a desigualdade de género”, o HeForShe focou-se em mostrar soluções para Portugal e, mais especificamente, para a faculdade. Um dos tópicos referidos foi a necessidade de uma melhor criminalização da violência doméstica, do assédio e da violência sexual, de forma mais pesada, no sentido em que estes procedimentos criminais muitas vezes só se ficam pelo aviso. A par disso, referiu-se a necessidade de alterar o estigma social associado a estes crimes, na medida em que se verifica sempre um sentimento de impunidade para o agressor.
Sobre o ambiente académico, defendeu-se uma maior preocupação na prevenção de comportamentos que colocam as mulheres em risco. A respeito da solução da criminalização, apontou-se a crítica de que esta já existe, sendo o problema a falta de estigma social quanto ao agressor e a existência de fragilidades processuais que impedem um verdadeiro apoio à vítima.
Por parte do FEMfdup, houve uma resposta mais concreta e menos óbvia, tendo por base a análise do manifesto apresentado pela Plataforma Portuguesa para os Direitos da Mulher aquando das eleições europeias. Assim, foram referidos tópicos como o alargamento de prazo da interrupção voluntária da gravidez e a regulamentação da questão da objeção de consciência, dado que muitas vezes esta está associada a um falso condicionamento moral.
Além disto, Beatriz Morgado sublinha que, de acordo com o artigo 142.º do Código Penal, não existe um direito à interrupção voluntária da gravidez em Portugal, mas apenas uma exclusão de ilicitude. Este argumento é reforçado com o exemplo de Rita, que foi presa em 2020 por ter feito uma interrupção voluntária de gravidez às 8 semanas, ou seja, ainda estava dentro do prazo da dita “interrupção de gravidez não punível”. Assim, foi colocada a questão sobre se este prazo de 10 semanas garante a segurança da mulher ou apenas consiste numa forma de controlo sobre o seu corpo.
Por fim, foi abordada a temática relativa à prostituição. O HeForShe não apresentou a sua posição, mas o FEMfdup defendeu de forma clara o modelo abolicionista de inspiração nórdica. Este modelo considera que as mulheres que se encontram na prostituição estão sujeitas a uma enorme vulnerabilidade e defende que o consentimento não se compra. Como tal, entendem que a conduta criminal deverá ser a compra do sexo. Desta forma, havendo uma diminuição da procura, eventualmente existirá também uma diminuição da oferta e consequentemente, o fim da prostituição. Adiciono que este modelo tem como pressuposto a adoção de políticas públicas de auxílio à saída da prostituição.
Quanto à sociedade académica em si e à democratização do ensino, foi referido que o sistema em vigor não funciona para nós, mulheres, sendo a Academia institucionalmente machista, assim como o espírito académico. Neste momento, o debate focou-se na intervenção da Federação Académica do Porto (FAP), mais especificamente na Queima das Fitas.
Como caloira, penso que este momento específico da vida académica é o mais esperado de todos, mas também existe o lado mais sombrio, aquele que deixa qualquer rapariga apreensiva e assustada. Ouvem-se tantas histórias, desde comas alcoólicos a crimes de violação sexual (situação não exclusiva de mulheres), e, à medida que os anos passam, esta narrativa não muda. O comportamento de risco do jovem universitário deve realmente ser mais moderado, mas caberá também à FAP a tomada de iniciativas, como a do Ponto Lilás, que garantia proteção à vítima de violência sexual e de assédio dentro do recinto. Tanto quanto é do meu conhecimento, esta iniciativa já não existe na Queima das Fitas, atribuindo-se uma maior importância, por exemplo, às iniciativas de sustentabilidade. Desta maneira, como referiu Beatriz Morgado, a FAP deveria focar-se mais em “pôr as mulheres antes das árvores”, tendo também referido o problema da sexualização do corpo da mulher nas barracas, e o tão famoso “mostra as mamas por um shot”.
Eu gostava que o meu primeiro ano de Queima das Fitas fosse inesquecível, mas por causa de momentos especiais com amigos e não porque, por algum motivo, me “pus a jeito”. Desta forma apelo à FAP para se focar na proteção de todas as jovens e mulheres presentes no evento, em vez de ignorar o problema.
Neste contexto, penso ser pertinente terminar este artigo com o exemplo de Gisele Pelicot, que declara que a vergonha deve mudar de lado. A vergonha deve pertencer ao agressor e não à vítima, cabendo-lhe denunciar os abusos com a cabeça erguida.
Se houve algo que aprendi com este debate, é a necessidade de terminar com o estigma associado a todas as formas de violência contra as mulheres, sendo essa a única forma de criar espaços seguros para as vítimas se expressarem. Qual o lugar mais perfeito do que uma Faculdade de Direito para iniciar este caminho?
Margarida Afonso Leal
Departamento Mundo Universitário
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