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Foto do escritorBeatriz Castro

Nápoles, na primeira pessoa

“Nápoles é um longo sono / e é conhecida em todo o mundo / mas ninguém sabe a verdade” – “Napule È”, canção napolitana de Pino Daniele (tradução livre).


Por uns considerada caótica ou sobrevalorizada, por outros misteriosa ou simplesmente bela, a verdade é que não é fácil reunir consenso quando falamos da capital da região da Campânia (Itália). Situada no sul da península itálica e vizinha do Vesúvio, Nápoles é a terceira cidade mais populosa do país e uma das mais visitadas anualmente. É também a cidade-natal de ilustres nomes da Cultura italiana, como Elena Ferrante (romancista) e Paolo Sorrentino (realizador de cinema), que nas suas obras retratam com peso a identidade napolitana.


Decerto já terão ouvido falar da criminalidade, da sujidade das ruas, do mau cheiro, do trânsito ou da poluição. Ou, pelo contrário, talvez tenham ouvido que se come bem e por bom preço, que a pizza Margherita é a melhor do mundo, que o café é excecional, que as ruas são agitadas, repletas de música e artesanato, que se sente o cheiro a peixe fresco e a maresia. Ou talvez nunca tenham ouvido falar sobre Nápoles.


Não é difícil deixarmo-nos impressionar pela desorganização do dia a dia, pela velocidade assustadora das motoretas ou pela pobreza que povoa as zonas residenciais – tal como entoa a canção “Napule È”: “Nápoles é uma folha de papel gasta e suja / E ninguém quer saber / E cada um aguarda a sua sorte”. Da mesma forma também poderá espantar saber que a cidade é a sede da mais antiga Universidade pública do mundo: a Universidade Frederico II, ainda hoje uma das mais reputadas a nível nacional e internacional.

Nápoles é, à primeira vista, uma grande dicotomia.


Atravessando a famosa Via Toledo, a principal avenida comercial da cidade, não é possível adivinhar o que se esconde por detrás das estreitas ruas adjacentes. Mas o mistério seduz-nos e, seguindo por uma delas, desembocamos nos Quartieri Spagnoli. Estes bairros residenciais históricos, outrora palco de constantes tiroteios e de negócios duvidosos, são hoje – em grande parte, graças à abertura da estação de metro de Toledo, em 2012, e a iniciativas de ativismo social – um centro pacífico onde se respira a verdadeira alma napolitana. Percorrendo as pequenas ruelas, esquecemos o que está para trás e imergimos num outro universo, bem distante daquele “tecnologicamente impessoal” que conhecemos. Espreitamos para os estabelecimentos modestos dos negócios familiares (de peles, de alfaiataria, de tapeçaria) e, inevitavelmente, para as casas dos napolitanos; esses que usam a rua como sala de estar e local de convívio, habitando em rés do chão e vendendo água e produtos alimentares diretamente da janela da cozinha.


Sem contar, somos cumprimentados, conversamos, rimos, convidam-nos a entrar. Mal nos apercebemos, estamos a ajudar uma senhora idosa a subir as escadas que, entretanto, nos tomou o braço agradecendo entusiasticamente sem aguardar resposta. Mais à frente, um senhor, à porta de sua casa, oferece ímanes em forma de pizza, orgulhoso do seu trabalho e dizendo para lhe pagarmos o que acharmos justo. Em pouco tempo, sentimo-nos parte da comunidade.


Inseridos nas paredes exteriores dos edifícios habitacionais estão muitas vezes pequenos altares construídos pela população, onde jazem fotografias de defuntos, adornadas por flores e velas, fazendo lembrar a superstição mexicana em relação à morte; uma tradição local, talvez nascida da necessidade de compensar as mais de duas centenas de igrejas em Nápoles encerradas e abandonadas por negligência das autoridades locais (apesar da contestação popular), desmerecendo o título de World Heritage Site atribuído pela UNESCO à cidade em 1995.


Outra experiência imersiva é a Via dei Tribunali, onde se encontram os melhores restaurantes e pastelarias, e se apresentam as bancas de artesanato. Invadem-nos os odores da pizza fritta, do caffè e da sfogliatella (doce típico) e seduzem-nos as cores dos lenços, das pinturas, das peças de joalharia. O burburinho da multidão, onde se distingue o dialeto napolitano, mistura-se com o som das motoretas e uma melodia longínqua de folclore dedilhada numa guitarra ou uma ópera entoada numa varanda.


Napule è mille culure/ Napule è mille paure/ Napule è 'a voce de' criature/ Che saglie chianu chianu/ E tu sai ca' nun sì sulo”: Nápoles é mil cores / Nápoles é mil medos / Nápoles é a voz de crianças / que se ergue lentamente / e tu sabes que não estás sozinho (“Napule È”, Pino Daniele).


Nápoles é, de facto, uma experiência sensorial e essencialmente humana: visitar Nápoles é como entrar numa grande casa que se abre a todos os curiosos, sem para isso abdicar da sua identidade.


Algumas referências culturais napolitanas

Música: O Sole Mio (escrita por Giovanni Capurro); Papa Americano (Renato Carosone); Napule È (Pino Daniele).

Literatura: obras de Elena Ferrante - Tetralogia A amiga genial (2011-2014); A vida mentirosa dos Adultos (2019); Um estranho amor (1991); Os dias do Abandono (2002); A filha obscura (2006).

Filmes/séries: A mão de Deus (2021, Paolo Sorrentino); A Amiga genial (série disponível na HBO); Laços de Família (2020, Daniele Luchetti); Nostalgia (2022, Mario Martone); Bem-vindo ao sul (2010, Luca Miniero); A vida Mentirosa dos Adultos (série disponível na Netflix); Gomorra (série disponível na HBO); Mare Fuori (série Netflix).


Beatriz Castro

Departamento Cultural

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