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“Nós vamos mudar o mundo e as mulheres vão à frente” - GRANDE ENTREVISTA A AURORA RODRIGUES

Foto do escritor: Rita Ferreira, Vitória FerreiraRita Ferreira, Vitória Ferreira

Aurora Rodrigues, nascida em 1952 no Alentejo, é magistrada jubilada e antiga vice-presidente da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (APMJ). Durante a licenciatura em Direito na Universidade de Lisboa, em plena oposição estudantil ao regime ditatorial, envolveu-se ativamente no ativismo antifascista. Detida pela PIDE a 3 de maio de 1973, após um meeting estudantil, foi uma das pessoas que mais horas de tortura sofreu às mãos da PIDE/DGS, sendo submetida à violência brutal que a ditadura impunha. Após a revolução, concluiu o curso, tornando-se num símbolo de resistência. Em 2011, publicou “Gente Comum: Uma História na PIDE”, onde narra a sua experiência como mulher, estudante e opositora ao regime. 

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  1. Como nos conta no seu livro “Gente Comum”, desde cedo demonstrou um grande sentido de justiça e vontade de proteger os mais vulneráveis. Houve alguma figura que a inspirou nessa luta?

 

A minha mãe. Nasci no Alentejo, no monte, prematura e sem qualquer assistência médica. Na altura havia apenas umas curiosas que faziam os partos, mas não eram enfermeiras nem tinham qualquer tipo de formação – conheciam e sabiam fazer. Como fui prematura, não deu tempo nem de chamar estas curiosas, pelo que nasci só com a minha mãe e as minhas avós. A minha mãe desenvolveu, por instinto, o conhecimento para tratar uma criança que não estava ainda preparada para nascer e, mesmo não tendo leite, deu-me leite de burra, que se veio a saber ser o mais indicado. Assim, eu sobrevivi e, entretanto, fui sempre muito próxima da minha mãe, que era uma pessoa muito sensível. 


Nós somos da fronteira com Espanha, da zona de Mértola, Mina de São Domingues, e a minha mãe tinha uma tal sensibilidade e habilidade para contar histórias que eu praticamente vivia o que ela contava. Assim, falou-me, desde muito pequena, sobre a guerra civil de Espanha e dos refugiados e fugitivos da guerra, dos republicanos que vinham para Portugal que as pessoas acolhiam. Contava-me – de acordo com a idade que tinha – como as pessoas fugiam, como ficavam vulneráveis e como foram mortos, também, portugueses na guerra civil de Espanha. Em particular, contou-me sobre um que, quando a minha mãe tinha 13 anos, pernoitou no palheiro que era da avó dela sem a avó saber, que depois foi para Espanha, onde se juntou aos republicanos e foi fuzilado. Toda a vida soube quem era o Jacinto Carrusca. 


Entretanto, os meus pais mudaram-se para Castro Verde e passámos a viver num bairro camarário, onde, junto de nós, acampavam os ciganos que vinham fazer a Feira de Castro. Enquanto os homens estavam na feira, as mulheres ciganas estavam encarregues de ir buscar água, alimento e de cozinhar. Por isso, sobretudo quando o meu pai não estava em casa, vinham a casa da minha mãe – que sempre lhes abriu a porta diferentemente do resto da vizinhança – e enchiam as bilhas e levavam alguns alimentos do nosso quintalzinho que a minha mãe lhes dava.  


Assim, convivia com as mulheres e, sobretudo, com as crianças ciganas. Brincava com elas e ia para os acampamentos. A minha mãe sempre me explicou que os ciganos eram maltratados e que não existia nenhuma diferença deles para nós, exceto na forma como viviam, ou eram obrigados a viver. 


Esta foi uma das questões que me sensibilizou, mas, como também vivíamos num bairro social, tive contacto, desde sempre, com aquilo que é pior que a pobreza: a miséria, o não ter absolutamente nada. As pessoas não tinham terra, não tinham trabalho e havia, inclusive, meninas que foram comigo para a escola que tiveram logo depois de sair e ir trabalhar, porque passámos a só poder estudar se tivéssemos sapatos. Era essa a diferença entre mim e elas. Eu tomava duas refeições por dia e tinha sapatos meus. Assim, apercebi-me, também aí, que havia uma grande desigualdade social. Tinha amigas que tiveram de sair da escola e tinha outras que viviam bem. Era o caso das filhas de latifundiários, embora fossem poucas, porque os latifundiários muitas vezes nem viviam lá, eram proprietários ausentes.  


Sempre tive uma tendência – que a minha mãe procurou valorizar – para me aperceber daquilo que me rodeava e das necessidades das pessoas. Perguntava-me porque é que havia uma diferença tão grande entre ricos e pobres. 


Também à época, os homens, mesmo os progressistas, eram machistas. No casal, a mulher era a mais fraca. Embora não fosse menos inteligente e menos perspicaz que o meu pai, a minha mãe não trabalhava fora, apenas sazonalmente, e não ganhava como o meu pai, que era cantoneiro e trazia o dinheiro lá para casa. Como tal, como é o homem que leva o dinheiro para casa, a mulher fica obrigada à submissão, numa posição de subalternização. Portanto, digamos que as desigualdades – e não há liberdade sem igualdade – estiveram sempre diante dos meus olhos: eu via como as pessoas viviam de forma diferente e inclusive em casa, onde a minha mãe tinha um papel de subordinação relativamente ao meu pai. 


Um dia, na Páscoa, o meu pai levou dois pacotes de amêndoas, mostrou o primeiro pacote e disse “dou as amêndoas a quem gostar mais do pai”. A minha irmã disse logo que gostava mais dele e a seguir ele fez-me a mesma pergunta: respondi que gostava mais da minha mãe e ele não me deu as amêndoas. Eu virei-me para a minha mãe e disse “mãe, vamos para a rua pedir com um cesto, mas eu gosto mais de si”. Penso que o meu pai percebeu nessa altura que essa pergunta não se faz! De facto, não gostava mais da minha mãe, mas queriam-me fazer dizer coisas que eu não queria.  


Uma parte muito importante da nossa formação é a família. Tinha uma ligação mais forte com a minha mãe e sempre fui desperta para a questão das mulheres e do papel praticamente irrelevante que lhes davam, ainda que fossem elas que mantinham tudo. As mães, apesar de muitas não se aperceberem, eram a peça central da família e eu notava isso. Tive a sorte de ter nascido com a capacidade de olhar e de ter ao meu lado quem me mostrasse. 


  1. Tendo sido um dos muitos rostos que lutaram contra a ditadura, 50 anos depois do 25 de Abril, o que pensa sobre a forma como esta data é lembrada na sociedade portuguesa?


Esta é uma questão difícil de responder, porque houve durante muito tempo, sobretudo, nos anos 90, um apagamento. A data acabou por ser comemorada quase como o Dia dos Namorados. No Dia dos Namorados há flores e no 25 de Abril há cravos. Só que o 25 de Abril está muito além disso. Não houve ainda a realização das esperanças que Abril trouxe, inclusivamente a mim. Embora, desde o início tenha havido um certo elemento que me gerou desconfiança. 


Assisti ao 25 de Abril praticamente em direto, porque estava a imprimir os panfletos para convocar o 1º de Maio, que no dia seguinte tinha de entregar a um camarada. As horas e os locais tinham de ser rigorosamente cumpridos e a máquina estava sempre a encravar. Como estava num sótão que dava para a rua, tinha o rádio ligado para que não se ouvisse o ruído que o policopiador fazia. Quando ouvi a “Grândola” e depois comecei a ouvir “Daqui o posto de comando das forças armadas” achei logo que se estava a passar uma coisa positiva, mas associei ao que os PIDES me diziam, que o regime ia mudar, mas que até lá tínhamos de sofrer muito e que eles também iam mudar. No rádio diziam “Mantenham-se em casa”, “Mantenham-se calmos”. Eu estava na margem Sul do Tejo, e a primeira coisa que fiz, como é óbvio, foi apanhar o primeiro autocarro, às 6 da manhã, para ir apanhar o barco e desembarcar no Terreiro do Paço. 


Vivi o 25 de Abril sem saber exatamente o que era aquilo, mas vivi em direto e absolutamente em festa, tal como as pessoas com quem me cruzava e que eram muitas, sobretudo, muitas mulheres. 


Entretanto, cruzo-me com carros em que se gritava “Spínola!”. Eu sabia o que dizia o seu livro, e achava que Spínola não era de facto alguém que viesse trazer grande mudança. Podia mudar, podia aligeirar a dureza do regime, mas não mudaria completamente o sistema, porque não era e nunca foi uma pessoa de esquerda e, também, não queria a independência dos países colonizados, queria um Estado Federativo e que aqueles Estados ficassem sempre ligados a Portugal. O que eu achava que era necessário para esses países era a independência e, por isso, desde logo, não tinha nada a ver com ele e, como tal, não fiquei a achar que aquilo seria exatamente o que nós pretendíamos. Contudo, as pessoas impuseram outra coisa, inclusivamente ao Spínola. Por exemplo, inicialmente estava previsto que a PIDE ia continuar, mas efetivamente a PIDE acabou e os presos políticos foram libertados. De qualquer forma, a PIDE matou até ao fim, inclusive, nesse dia, matou 4 pessoas. 


As pessoas impuseram uma revolução. E essa revolução foi feita por pessoas como eu: mandavam-nas ficar em casa e elas iam para a rua, sobretudo, elas, as mulheres. Também havia muitos homens, mas parecia que estavam lá mais mulheres, que lhes abriram a porta e elas saíram, finalmente. Foi um momento de muita esperança. 


Hoje, acho que essa esperança foi sendo desfeita aos poucos, a alegria inicial foi desaparecendo, as coisas más da ditadura, muitas delas foram permanecendo através do branqueamento. Durante muito tempo estiveram escondidos, não diziam abertamente “Viva Salazar!”. Agora, já há quem o diga e pessoas que acreditam no que eles dizem.  


Continuo a achar que vivemos ainda num Estado de Direito Democrático e isso é essencial. Não há prisões arbitrárias nem há tortura, mas também não há igualdade. Há uma democratização do ensino e o SNS veio dar aquilo que as pessoas não tinham efetivamente, mas há uma desilusão das pessoas, quer das que viveram o 25 de Abril e tinham consciência do que aquilo significava, quer das pessoas que nasceram posteriormente. Há uma deceção por aquilo que ouviram dizer e aquilo que efetivamente vivem e têm. 


A desigualdade, sobretudo, entre os jovens é muito acentuada. Os jovens não têm uma dureza do mesmo tipo da que tivemos, mas vivem tempos duríssimos. Apesar do 25 de Abril e das mudanças que se deram, ainda subsiste a desigualdade. Não é verdade que todos tenham a mesma possibilidade de ingressar no ensino superior, ou mesmo no ensino secundário, para não falar no próprio ensino primário. Há pessoas que, embora sejam obrigadas a ir à escola, não têm a mesma aprendizagem por vários motivos. Temos, ainda, os casos em que podem fazer a matrícula, mas não podem ir para as faculdades, porque não têm como ir para as cidades onde ficam. Os alojamentos estão a um preço incomportável para a maior parte das famílias e as residências universitárias são muito poucas. Para obter uma bolsa de estudo é necessário que a família reúna uma série de requisitos que comprovem uma insuficiência económica, que por vezes é difícil de justificar. Tudo isto provoca uma desigualdade acentuada, sobretudo, quanto à ascensão social. Há, também, a situação dos licenciados, mestres e doutorados que têm saídas precárias, que não têm que ver com aquilo para que se preparam. Muitos poderão ser “colaboradores” de uma grande empresa, um eufemismo agora usado para designar trabalhadores, mas sem salário digno. 

Tudo isto cria uma grande deceção e desilusão, as pessoas estão revoltadas, e há quem o aproveite para lançar ideias antidemocráticas. Mesmo vivendo em democracia, ela não é plena. Temos uma democracia formal perfeita, com eleições livres, mas a democracia não é só isso. Por isso, penso que ao longo dos anos foi-se esbatendo a esperança, algo que nunca podemos perder. Vai ser diferente e queremos que seja! Teremos um Estado de Direito Democrático, em que as pessoas não tenham só liberdade de falar, que tenham também a liberdade de optar, de fazer e ousar. Eu própria sinto-me desiludida, não por mim, mas tenho uma filha e pergunto-me “Foi isto que fizemos?”, “Era isto que nós queríamos?”, e não era.  


  1. Como é que era viver sabendo que os homens que aparentemente estavam na mesma posição que as mulheres, que fariam o mesmo curso, com as mesmas habilitações e as mesmas competências tinham saídas profissionais que as mulheres não tinham?

 

As mulheres, desde logo, de acordo com a lei, estavam numa posição de inferioridade. Quando eu estava em Direito era assim, nós sabíamos que não podíamos ter as mesmas saídas profissionais que os homens. Até havia quem entendesse que nem tínhamos o direito de lá estudar, embora quando eu estudei já fôssemos muitas. Os professores, por exemplo, quando reprovavam uma jovem, diziam-lhe “A senhora já teve tempo de arranjar marido, pode ir para a escola em frente, terminou o seu exame”. As mulheres destinavam-se a ser professoras, portanto, a escola que as preparava para isso era Letras, a escola em frente. Direito não era uma escola para mulheres!  

 

É verdade, também, que os rapazes não eram melhor tratados nesse ponto de vista de reprovar nos exames. Os professores faziam perguntas que deliberadamente serviam para os reprovar. Enquanto tivessem aproveitamento escolar, tinham tempo de espera para a guerra, não eram mobilizados. Quando deixavam de o ter, isto é, quando reprovavam, eram incorporados no exército. Em Direito isso era muito claro e acentuado, porque grande parte dos professores eram fascistas e, portanto, ou tinham sido ou destinavam-se a ser ministros do Regime, embora houvesse alguns democratas e uma única professora.  

 

Há um lema de uma associação de estudantes, que, por acaso, não era de Direito, que dizia: “Onde há repressão, há resistência”. Quanto mais reprimiam, mais as pessoas resistiam, revoltavam-se e faziam. Quando andei em Direito antes do 25 de Abril – só vim a acabar o curso muito mais tarde – não era bem nas aulas que aprendíamos. Aquela matéria era absolutamente intragável e nós, os contestatários, aprendíamos cá fora, nos corredores, uns com os outros. Inclusive havia em Direito os “Ousar Lutar, Ousar Vencer”, que faziam fascículos da matéria dada, de outra maneira. Nós líamos esses fascículos, embora fôssemos obrigados a ler, também, os fascículos oficiais das aulas. Mas se soubéssemos só isso não teríamos sabido nada.  

 

Predominava a ideologia masculina, mas houve, entre as mulheres, quem tivesse bom aproveitamento escolar. Na ditadura, houve quem entendesse que havia três géneros: os homens, as mulheres e as mulheres que estudavam e que, por isso, deixavam de ter a condição de mulher. Elina Guimarães foi uma das mulheres que se opôs a isso e lutou pelos direitos das mulheres. A título absolutamente excecional, conseguiu concluir o curso com 20 valores. Eu concluí o curso com praticamente metade disso, no entanto, este ano foi-me atribuído, pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados, o prémio Elina Guimarães 2024, em prol da defesa dos direitos das mulheres, da igualdade e dos direitos humanos. 

 

Fui fazendo os exames e ia passando com 10 ou 11, que era o suficiente. Não aconselho ninguém a ter só o 10 agora, mas eu considerava que era uma nota excelente, porque conseguia fazer o exame e passar à cadeira, sem ter de interiorizar todas aquelas teorias fascistas que estavam nos manuais, que eram de tal modo absurdas que só se fôssemos bastante estúpidos, ou geniais para lhes dar a volta, é que as decorávamos. Por isso, fui uma aluna boa nesse sentido, até ser expulsa.  

 

Aconteceu depois de ter estado presa, na altura em que tinham entrado os gorilas em Direito, vigilantes ex-comandos muito encorpados – daí o nome –, que o ministro Veiga Simão introduziu. Não havia nada para me expulsar, não tinham fundamento, então, o que fizeram foi anular-me a matrícula e era como se eu não estivesse inscrita. Como tal, não podia entrar na faculdade.  

 

Nessa altura, eu ia para a Faculdade e só levava propaganda. Há um gorila que me manda abrir o saco, eu recusei-me, ele veio atrás de mim e tentou tirar-mo. Como eu estava no cimo da Alameda da Cidade Universitária e vi uns estudantes a subir a Alameda, atirei o saco para a frente e corri atrás para o apanhar para eles perceberem que havia ali um problema. Eles correram e, aí, eu já não estava sozinha. O gorila foi-me agarrando, levou-me para dentro da faculdade e eu fui fazendo corpo morto, gritando, gritando... Ele arrastou-me e levou-me para a parte da faculdade que era do Conselho Diretivo. Os estudantes seguiram-nos e mantiveram-se junto da porta. Aí chega um professor, o professor Castro Mendes, que questionou o que era aquilo que se estava a passar. Aproveitei que o gorila olhou para ele, agarrei em tudo o que tinha dentro do saco, esvaziei-o e atirei o conteúdo para cima dos estudantes que o apanharam. O gorila ficou confuso, não sabia se me havia de agarrar a mim, se havia de agarrar os papéis e, no meio da confusão que se gerou, saí da faculdade com o saco vazio.  

 

Era este o clima da Faculdade de Direito. A Ana Gomes, por exemplo, lembro-me de ser arrastada do mesmo modo pelos corredores da Faculdade. Isto tanto acontecia a homens como a mulheres. Antes de entrarem os gorilas, praticamente todas as semanas, a polícia de choque entrava na Faculdade. Foi aí que eu aprendi a usar sempre sapatos com atacadores, porque dava mais jeito para fugir à polícia. 



  1. Numa ocasião, referiu que, por vezes, “também há injustiça na justiça”. Mencionou, inclusive, que havia uma certa posição elitista da justiça conjugada com uma falta de transparência para com os cidadãos. Houve algo a que assistiu no sistema judicial que a levou a essa reflexão? Acredita estarmos mais próximos de uma justiça realmente acessível a todos? 

 

A justiça justa é a justiça de que falava Jorge de Sena. Se a sociedade está construída de forma desigual e injusta, a justiça dos tribunais não é, nem pode ser, uma justiça justa. O direito positivo é uma espécie de superestrutura social, é uma forma de controlo e repressão que, tal como a sociedade está construída, não é igual para todos. É por isso que eu falo na falta de transparência e na falta de justiça.  

 

Não podemos esquecer o racismo estrutural em Portugal, que dificilmente não existiria, dado que Portugal foi um país colonizador. Pensar que não há racismo estrutural seria muito lírico. Existe, ainda, uma justiça no masculino, no sentido em que, mesmo quando é feita por mulheres, a justiça, com as leis e o sistema tal como estão, tende a desfavorecê-las. Por exemplo, em crimes que afetam proporcionalmente as mulheres, vemos inúmeras decisões judiciais que tratam as vítimas com desconfiança. No caso de um crime de violação, a mulher precisa de provar que não deu azo à situação, que não é “a Eva que tem a maçã”.  

 

Há preconceitos que dominam toda a sociedade e também se refletem nos tribunais, porque a justiça é feita por pessoas que vivem nessa mesma sociedade e têm a mesma formatação que as outras. Embora tenha ouvido colegas minhas afirmar que não sentem discriminação, provavelmente porque não olharam para isso com atenção. Mesmo entre magistrados e magistradas há discriminação. Basta lembrar as palavras da anterior Procuradora-Geral da República, que dizia que o problema do Ministério Público era haver mais mulheres do que homens, porque as mulheres engravidam. Se calhar, se fossem os homens a engravidar, a situação seria vista de outra forma. Falava, ainda, de licenças de maternidade, desconhecendo que existe licença de parentalidade, direito quer dos homens, quer das mulheres. Além disso, a Procuradora apontou que as magistradas têm o inconveniente de cuidar da família. Então os magistrados homens não assistem às suas famílias? Os homens na magistratura do Ministério Público são assim tão maus pais que não assistem aos filhos?  

 

Há uma clara discriminação. Discriminação esta que se nota logo nas primeiras inspeções. Mulheres em idade fértil têm frequentemente uma classificação inferior, sob o pretexto de que poderão engravidar e que, portanto, aquele desempenho que é agora um “muito bom” merecerá apenas um “bom”, porque o seu desempenho será prejudicado. Também pode acontecer uma discriminação associada ao envelhecimento: as mulheres depois de envelhecerem já não interessam a ninguém. 

 

As mulheres magistradas fazem o mesmo trabalho que os homens – muitas vezes até melhor–, porque as mulheres têm essa capacidade de ser polivalentes, de desenvolver várias atividades dentro da magistratura simultaneamente e, ainda, de cuidar da família. Talvez a educação, as dificuldades e as dores menstruais, se as tiverem, as tenham feito resolver os problemas e avançar de outra maneira. Numa sociedade de meritocracia, as mulheres teriam mais mérito que os homens. Mas a meritocracia é uma falácia e, de qualquer modo, não quero ir por aí porque as mulheres não são inimigas dos homens. As mulheres querem igualdade. 

 

Há coisas que ficam nas entrelinhas, que ninguém diz, mas há uma forma diferente de julgar pessoas de acordo com a etnia, de acordo com a cor, sobretudo se forem afrodescendentes ou se forem ciganos. Também de acordo com a riqueza e o estatuto social. A justiça que é feita reflete o padrão do homem, heterossexual e branco, valorizando-o e de certo modo, justificando comportamentos injustificáveis. Vemos isso também nas praxes académicas. As praxes, no meu entender, são sempre um ritual de submissão, sobretudo das mulheres pelos homens, mas, também, dos homens praxados aos grupos dos notáveis e doutores. São sempre uma forma de ensinar a subordinação, na minha opinião. 

 

Há discriminação tanto na aplicação da justiça, assim como na forma como se relacionam homens e mulheres quando a aplicam e a quem a aplicam. Embora isso dependa muito da forma de ser de cada pessoa e da consciência que se tem em relação aos outros. Devo dizer que – tendo exercido funções como magistrada do Ministério Público durante quase 40 anos – nunca tive que violar a minha consciência, nem fui obrigada a fazê-lo. Se tivesse sido, teria sempre oportunidade de sair. As pessoas são julgadas pelos atos que cometeram e só por esses atos é que podem ser responsabilizadas. O resto, a pessoa em si, não. Esta mantém sempre a dignidade humana que lhe é inerente.  

 

Ainda assim, a sociedade está nos tribunais, daí que a justiça seja, sobretudo, uma justiça masculina. Por vezes, quando é aplicada por magistradas, é ainda mais masculina, porque as mulheres querem mostrar que são isentas e, como tal, fazem-no tratando mal outras mulheres. Temos visto inclusive decisões nesse sentido. Há um caso de uma senhora de pouco mais de cinquenta anos que teve um acidente e ficou incapacitada de ter relações sexuais. Perante esta situação, uma Senhora Conselheira do STJ que foi relatora, atribuiu uma indemnização pequena com o argumento de que “já não fazia assim tanto mal”, porque já não podia ter filhos. É por isso que não podemos ver as coisas apenas entre homens e mulheres: nem sempre as mulheres percebem melhor as outras mulheres. Houve, também, um outro caso, o de Bárbara Guimarães num processo contra Manuel Maria Carrilho, um professor, em que a juíza lhe dizia “Oh querida” e a ele dizia-lhe “Senhor Professor Doutor”. O “Senhor Professor Doutor” não só foi absolvido em primeira instância, como a própria vítima foi posta em causa pelo facto, irrelevante, de não ter apresentado queixa mais cedo. 

 

A justiça precisa de ser alterada, não ao nível, como muitas vezes se fala, de que o Ministério Público está a fazer política, mas pelo facto de a justiça ter a sociedade lá dentro e de a sociedade ter preconceitos que aquela reproduz. Seja relativamente à maioria, quando falamos das mulheres, seja relativamente a minorias, como é o caso das etnias.  

 


  1. Portugal sofreu inquestionavelmente muitas mudanças desde o fim do Estado Novo, em variados aspetos, mas, desde logo, no âmbito dos direitos fundamentais e da garantia dos mesmos. Quais foram na sua opinião as alterações mais importantes? E qual o papel que associações como a APMJ podem desempenhar nesse processo? 

 

Sou membro da APMJ, embora, neste momento, já não integre a direção porque, após mais de 30 anos, considerei que era necessário dar espaço às mais jovens para avançarem. Decidi recuar da direção, o que não significa que tenha abandonado as ações e atividades que desempenhava. Mantive-me envolvida, mas achei importante que fossem chamadas pessoas mais novas para tomar decisões. 

 

Na mudança da justiça, a APMJ é fundamental, especialmente na defesa dos direitos humanos das mulheres e na proposta de alterações legislativas. Para começar, a associação oferece uma visão crítica da lei, algo que nem sempre é comum, não apenas no âmbito da justiça, mas também em termos gerais. As pessoas não são ensinadas a ter uma visão crítica e o espírito de análise que permite identificar o que está bem, o que está menos bem e o que está mal. Associações como a APMJ analisam leis que estão em projeto e enviam pareceres para a Assembleia da República. Em muitas ocasiões, a APMJ é chamada a pronunciar-se sobre diferentes assuntos e mudanças necessárias, especialmente no que respeita aos direitos humanos das mulheres, mas não só. Por vezes, a própria associação toma a iniciativa de propor alterações à lei. 

 

Foram feitas, por exemplo, alterações na CRP relativamente aos direitos das crianças, com contributos importantes da APMJ. A associação também promove ações de sensibilização destinadas a juristas, magistrados e advogados. Fez, inclusive, um manual de boas práticas, disponível no site da APMJ. Entre os temas defendidos nestas ações de sensibilização, destaca-se a necessidade de garantir que, em casos de violência contra mulheres, as vítimas não estejam em posição de desvantagem. Atualmente, o arguido tem sempre o acompanhamento de advogado, ao passo que a vítima não, ficando numa posição de desigualdade em tribunal. Com um advogado a acompanhá-las, haveria perguntas inadequadas, especialmente em casos de crimes sexuais, que poderiam ser impedidas.  

 

A APMJ também teve um papel importante quando esteve em discussão a cooptação de um juiz para o Tribunal Constitucional. Este juiz tinha defendido uma posição face ao aborto e à violação com base em “experiências” efetuadas nos campos de concentração nazis, segundo a qual as mulheres violadas engravidavam menos ou não engravidavam (“brilhante” conclusão, completamente falsa, assentava na validação do estudo monstruoso, pretensamente científico que consistia em violar mulheres e verificar depois as que engravidavam ou não). Assim, a associação opôs-se à sua cooptação. A lei que descriminaliza o aborto – por opção da mulher, com requisitos e procedimentos estabelecidos – existe e tem de ser respeitada. Estar a colocar um juiz que defende uma posição contrária a esta num Tribunal Constitucional nunca seria correto.  

 

Por isso, a APMJ é fundamental na alteração das leis, na mudança de perspetiva na respetiva aplicação, na sensibilização, na tomada de consciência da sociedade em geral, e dos juristas em particular. Tem, assim, um papel importante em tornar a justiça justa, ou um pouco mais justa, porque sabemos que vivemos numa sociedade de classes e, como tal, uma justiça completamente justa é uma utopia, enquanto a estrutura da sociedade não mudar. 



  1. Termina o seu livro com a seguinte frase: “O mundo mudou e eu também mudei [...] Construir uma sociedade mais livre, mais justa e humana não é um objetivo tão linear quanto eu julgava aos vinte anos de idade. Sei agora que o caminho é bem mais sinuoso, não faltando em todo o lado desvios, retrocessos, desilusões, mas continuo a pensar que é possível e que vale a pena.”.


Os desafios que a Aurora enfrentou com a nossa idade e aqueles com que agora nos deparamos são certamente diferentes. Tendo em conta a sua experiência, tem alguma mensagem para os jovens que hoje lutam por um futuro melhor?

Em primeiro lugar, o que gostaria de dizer a todos os jovens e a todas as pessoas, e que, no fundo, tem guiado constantemente a minha vida, é a importância do sentido crítico, de saber quando nos estão a tentar enganar e manipular, saber distinguir as diferentes propostas e opções que nos apresentam.


Há uma coisa que nunca perdi: a esperança. De facto, houve momentos em que teria ficado na cama e não me levantaria mais, porque fico triste, sobretudo nos dias de hoje, nos tempos que correm. Não só nos Estados Unidos da América, mas no mundo inteiro e em Portugal também, vemos que estamos a viver um período muito perigoso. Muitos querem que sigamos um caminho que, na verdade, é contra nós próprios, contra todas e todos. Esse caminho já foi experimentado e não pode voltar a ser seguido. É o caminho da desumanização e os caminhos somos nós que os fazemos, ao caminhar, segundo o grande poeta espanhol António Machado. 


Por isso, a mensagem que quero passar é: distingam, vejam, tentem perceber a mentira e não caiam nela. Não caiam nesse logro do fácil, de que há de haver alguém que vos vai dar tudo. Não há. As coisas conquistam-se, e é isso que vocês vão fazer. O mundo vai mudar, e vai mudar para melhor. Eu hei de morrer, não sei se o verei como gostava que fosse, mas vou morrer a acreditar que vai ser assim. Não sei quando, mas vai ser. Pode não ser durante a minha vida, mas acredito que poderá ser na vossa.  


Temos momentos de tristeza, de lágrimas, de grande desilusão. Falando de mim em concreto, atravessei momentos difíceis – e não apenas os da tortura –, atravessei fases complicadas, mas nunca perdi a esperança. Para mim, é esse o caminho. Nós vamos mudar o mundo e podem crer – esta é a minha convicção – que as mulheres vão à frente. Sempre foram, só que lhes foi negado esse papel. Apesar disso, elas estão na primeira linha na mudança da sociedade e na mudança do mundo. E não apenas porque são as mulheres que dão à luz os filhos, mas porque elas têm o espaço exterior, têm a rua, terão poder. Serão as pessoas que hoje vivem discriminadas e subalternizadas que irão transformar o mundo. Não serão os que mandam que farão essa mudança, porque a eles só lhes convém manter o que já existe e lhes dá o poder. Quem terá de mudar são vocês, que ainda não o têm. Por isso, passo-vos o testemunho. 


Não serei eterna, nem é necessário, porque vocês vão ser muito melhores do que eu. A geração que está aí é muito melhor do que a anterior, que não vos deixou coisas muito boas. Deixou uma mudança importantíssima, mas houve coisas que ficaram por fazer e a democracia não cumpriu exatamente o que devia ter feito. Nós não construímos a democracia plena, com igualdade, mas vocês vão fazê-lo. Tenho esperança.  

As coisas são feitas com alegria. Não temos de andar a chorar pelos cantos. Às vezes choramos, sim, mas é com alegria que se ousa e se faz. 


Rita Ferreira e Vitória Ferreira Departamento Grande Entrevista

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