Desde os primórdios da literatura que as mulheres têm documentado a realidade do flagelo que é o aborto clandestino e inseguro, o chamado “desmanche”, que como a sombra da morte, ceifava as vidas das mães, filhas, irmãs, amigas e conhecidas, através da raspagem e de outros métodos igualmente danosos e insalubres. Em tempos em que se volta a colocar em causa o direito à interrupção voluntária da gravidez (IVG), propondo referendá-la como se de uma temática ligeira se tratasse, convido-vos a embarcar comigo numa viagem literária pelo tempo, que atravessa memórias de quem não esquece, através das páginas de quem não perdoa.
A nossa primeira paragem vai ser nas páginas das Novas Cartas Portuguesas (1972), a obra-prima das três Marias – Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa –, em que denunciam a condição da mulher em Portugal através de uma coleção de poemas, cartas e desabafos de três mulheres que se interrogaram: “O que pode a literatura? Ou antes: o que podem as palavras?”. Naturalmente, o aborto clandestino é um tema recorrente nas palavras reunidas nesta obra, quando descrevem o que mudou na situação feminina ao longo dos tempos. Temos, aqui, descrições cruas e detalhadas de interrupções secretas, motivadas pelo desespero que provocou a brutalidade da lei e o estigma associado.
“E morreu, por fazer um aborto com um pé de salsa, morreu de septicemia, a mulher-a-dias que limpava o escritório onde trabalho, […] no banco do hospital eram tratadas com desprezo as mulheres que entravam com os seus úteros furados, rotos, escangalhados por tentativas de abortos caseiros, com agulhas de tricot, paus, talos de couve, tudo o que de penetrante e contundente estivesse à mão, e que lhes eram feitas raspagens de útero a frio, sem anestesia, e com gosto sádico, “para elas aprenderem”. Aprenderem o quê […] a contradição que a sociedade criou entre a fecundidade-exigida-do ventre da mulher e o lugar-negado-para as crianças?” (BARRENO; HORTA; COSTA, 1972)
A próxima paragem dá-se na obra “O Acontecimento” de Annie Ernaux, em que esta nos conta, num registo semiautobiográfico, a sua experiência com o aborto clandestino, na França dos anos 60, através da personagem de Annie Duchesne. Annie é uma trânsfuga de classe – a primeira da sua família de operários e pequenos comerciantes a frequentar o Ensino Superior, através do qual julga ter escapado à vida a que estaria, de outro modo, predestinada. Porém, uma gravidez indesejada, que ameaça atraiçoá-la, condenando-a ao arquétipo da jovem pobre, grávida e solteira, faz com que esta recorra ao aborto clandestino.
Mais que um romance de grande valor literário, com uma escrita concisa e extremamente lúcida, esta obra é capaz de materializar a corrente invisível que une uma mulher à outra, pela condição que nos é comum, de aprisionamento ao próprio corpo – a capacidade de carregar aquilo, mesmo que não seja essa a nossa vontade.
“A realidade da lei. Encontrava-se em todo o lado […] na vergonha das que abortavam e na reprovação das outras. Na impossibilidade absoluta de imaginar que, um dia, as mulheres pudessem livremente decidir abortar. E, como sempre, seria impossível determinar se o aborto era proibido porque era errado, ou se estava errado porque era proibido. Julgava-se em conformidade com a lei, não se julgava a lei.” (ERNAUX, 2000).
Chegámos ao fim da linha nesta viagem. Não consigo deixar de me sentir privilegiada, ao estar a ler sobre estas histórias de tempos passados. Vivo num país em que uma mulher engravidar contra a sua vontade já não é uma cruz para carregar em segredo. Para nós, mulheres do agora, o início de uma nova vida não significa o fim da nossa e é imperativo que assim se mantenha.
Beatriz Morgado
Departamento Cultural
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