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Foto do escritorSofia Ferreira

O Autogolpe de Estado de Castillo e o destino do Peru

Depois da destituição de Pedro Castillo e da subida ao poder de Dina Boluarte, as ruas peruanas foram palco de protestos. A nós apenas chegou a notícia de que se encontravam portugueses retidos no país, nada se dizendo sobre o contexto sociopolítico que é o atual plano de fundo. Cabe-nos agora perceber o que se passa neste país sul-americano e o que está na origem desta crise política.


Desde 2000, ano em que termina a autocracia protagonizada por Alberto Fujimori, o Peru tem tentado caminhar em direção à democracia, embora este seja um percurso muito sinuoso e atribulado.


Pedro Castillo, professor de ensino primário, é eleito, em 2021, Presidente do Peru. Filho de agricultores e natural de uma pequena província rural peruana, entra no cenário político como líder de uma greve de professores, reivindicando melhores condições de trabalho para a classe, nomeadamente um aumento salarial. O candidato do partido de esquerda “Peru Livre”, partido de orientação marxista, ao candidatar-se às eleições presidenciais, tinha como grande objetivo fazer com que “acabem as pessoas pobres num país que é rico”. Ao longo da sua campanha, fez apelo à luta contra a corrupção, fez promessas de uma reforma agrária e fiscal e de um aumento dos orçamentos da educação e da saúde (equivalente a, pelo menos, 10% do PIB). Prometera, ainda, um aumento do salário mínimo, a criação de grupos paramilitares e a militarização da juventude. A sua maior ambição fora, no entanto, a convocação de uma Assembleia Constituinte para promulgação de uma nova constituição. Castillo apelara ainda ao abandono da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, ao restabelecimento da pena de morte, afirmando ainda que questões como o aborto e os direitos LGBT não são uma prioridade.



Castillo fica em primeiro lugar na primeira volta das eleições e vence-as na segunda volta, onde defrontara Keiko Fujimori, presidente do partido “Força Popular” e filha do ex-presidente Alberto Fujimori (antigo ditador peruano).


A conjuntura presente no momento em que é eleito permite antever (e, como veremos, confirmar-se-á) que este não será um mandato fácil: iria enfrentar uma forte oposição parlamentar (uma vez que não tem maioria no Congresso), uma crise económica (intensificada pela pandemia da COVID-19) e um descontentamento popular que se tem vindo a prolongar ao longo dos anos. Consequentemente, o governo de Castillo é instável, sendo constantes as mudanças na equipa de ministros e a desorganização no executivo.


Ora, para entendermos a sucessão de eventos que levaram à destituição de Pedro Castillo, precisamos de dar um passo atrás e perceber como funciona o sistema político peruano. O Peru adotou, aquando da sua independência, o modelo presidencialista em que, ao contrário do que acontece no sistema parlamentarista (como é o caso do sistema português), o Presidente assume o poder executivo e o Congresso (constituído, no Peru, por apenas uma Câmara) assume, não só o poder legislativo, como também um poder de fiscalização da atuação dos membros escolhidos pelo Presidente (os ministros). O Congresso tem, ainda, a prerrogativa de, excecionalmente, destituir o presidente, com fundamento, por exemplo, na sua “permanente incapacidade moral”. Por outro lado, tem o Presidente o poder de dissolver o Congresso e convocar novas eleições legislativas, após duas moções de censura ao gabinete do executivo.


A 7 de dezembro de 2022, na sequência de várias alegações de corrupção, debate-se (pela terceira vez) a possibilidade de destituição do Presidente, utilizando-se a exceção de incapacidade moral como fundamento.


Acontece que Castillo se antecipa e anuncia a dissolução do Congresso e a instauração de um governo de exceção que funcionaria até novas eleições legislativas. Notemos um aspeto importante: o presidente peruano apenas tem o poder de dissolver o parlamento após duas moções de censura ao executivo. Aquilo que o Congresso faz é demitir ministros, um a um, nunca votando uma moção de censura, pelo que não haveria a possibilidade, consagrada na Constituição, de o presidente dissolver o Congresso.


Imediatamente os ministros de Castillo começaram a distanciar-se deste, demitindo-se e censurando a atuação ilegal do Presidente. Agindo contra a Constituição, Castillo escolhe o seu próprio destino, acabando por ser votado, no Congresso, a sua destituição. Assistimos, assim, a um autogolpe de Estado. O ex-presidente peruano é detido e acusado de rebelião, acusação à qual responde argumentando ser vítima de uma “vingança política”. Sucede-lhe a sua vice-presidente, Dina Boluarte, tornando-se a primeira mulher presidente no Peru.


Despoletaram protestos por todo o país, sendo múltiplas e até divergentes as reivindicações: há quem peça o encerramento do Congresso e a realização de eleições antecipadas, outros reclamam o regresso de Castillo (considerando-o uma vítima neste processo) e a destituição de Boluarte, outros pretendem a promulgação de uma nova Constituição.


As estradas foram bloqueadas e os aeroportos do sul do Peru paralisaram. As forças de segurança reagiram pela força, tendo essa reação resultado na morte de dezenas de protestantes. O principal incidente deu-se em Juliaca, a 9 de janeiro do presente ano, em que a Polícia Nacional disparou contra manifestantes, provocando 18 mortes e mais de 100 feridos, ficando esta ocorrência conhecida como o Massacre de Juliaca. Com o constante aumento de protestos por todo o país, Boluarte declara estado de emergência, redobrando as políticas de segurança.


Não está, contudo, a conseguir conter ou reprimir os protestos, mas sim a instigá-los, demonstrando indiferença (e mesmo repugnância) pelas reivindicações dos manifestantes, descrevendo estas mobilizações como “terrorismo”. A 11 de janeiro, deu-se início a uma investigação sobre a mesma (e sobre os seus principais ministros) pelos crimes de genocídio, homicídio qualificado e ofensas à integridade física graves.


O Peru, nos últimos anos, assistiu a um crescimento económico considerável, contudo, o atual quadro é cada vez mais negro: os preços dos bens essenciais estão inflacionados, o turismo paralisou e a violência causara prejuízos que ascendem a quantias exorbitantes.


Toda a conjuntura revela-se desfavorável para Boluarte, continuando esta a negar exigência, por parte do povo, de eleições antecipadas. A sua postura repercute-se no seu leque de apoiantes, que é cada vez mais restrito, não pretendendo, nem os defensores de Castilho nem os seus opositores, negociar com a atual presidente.


A questão que se coloca é a de saber como é que isto terminará, e qual a melhor maneira de retomar o caminho da democracia. Ninguém consegue prever o futuro; porém, é certo que nenhuma das previsões é promissora. Se Boluarte se demitisse, suceder-lhe-ia um dirigente de extrema-direita, sendo pouco provável que este estabeleça um espaço para o diálogo e que atenda às reivindicações populares. A opção mais razoável (embora insuficiente) é a da existência de eleições antecipadas.


O que os últimos episódios a que temos vindo a assistir nos revelam é que o sistema político peruano é frágil e desequilibrado, apresentando imperfeições essencialmente ao nível da articulação entre o Congresso e o poder executivo. Isto poderá, eventualmente, impulsionar a existência de uma reforma mais estrutural, nomeadamente a nível constitucional, que promova a estabilidade política e a representatividade da população.


Sofia Ferreira

Departamento Sociedade


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