Na madrugada de 21 de outubro de 2024, Odair Moniz foi alvejado por um agente da PSP durante uma perseguição policial no bairro da Cova da Moura, na Amadora.
A morte deste homem de 43 anos, dono de um café no bairro do Zambujal, desencadeou uma onda de descontentamento que resultou em várias noites tumultuosas na Grande Lisboa.
Com a morte de mais um morador de um dito “bairro problemático”, levanta-se a questão: o bairro mata?
O Bairro
Nos anos 90, em Portugal, foi lançado pelo Decreto-Lei n.º 163/93, de 7 de maio, o Programa Especial de Realojamento (PER). Este fazia parte de um programa mais vasto de luta contra a pobreza e previa, na cidade de Lisboa, o realojamento de 37.229 pessoas residentes nos 10.030 alojamentos precários identificados em 97 núcleos habitacionais, concentrados e dispersos.
O PER, a maior política de habitação social em democracia, legislada em 1993 e implementada sobretudo nos anos 2000, quis retirar as famílias que residiam em bairros autoconstruídos degradados e realojá-las em habitação social. O programa construiu bairros novos e realojou as famílias, mas criou uma pletora de novos problemas, muito discutidos nos anos 90 e nos anos 2000, que aparentam ter sido esquecidos por todos, exceto pelos membros das comunidades realojadas.
Separou comunidades, quebrou laços — tudo fruto das exigências do próprio plano, que visava desenvolver um ambicioso programa de identificação dos núcleos precários a erradicar, mas que colocou de lado as necessidades subjetivas dos habitantes. Não foram tidas em conta as situações sociais das famílias, os seus laços de pertença e redes de vizinhança (ótimas ajudas para ultrapassar fragilidades), considerando apenas dados quantitativos e nominais das populações a realojar, recolhidos através de levantamentos no terreno conduzidos por equipas interdisciplinares e de um intenso levantamento fotográfico das áreas abrangidas.
Além de ter separado fortes relações comunitárias já cimentadas, o PER ajudou a edificar a concessão de que os bairros e as comunidades que os integram são perigosas, e fê-lo da seguinte forma:
As famílias foram deslocadas para locais estranhos ao seu quotidiano. As novas construções criavam, de facto, melhores condições de habitação para as famílias, mas o PER ignorou a necessidade de criar infraestruturas como transportes e serviços essenciais para qualquer núcleo habitacional, isso resultou no isolamento de populações fragilizadas, segregando-as nos bairros onde habitavam, levando as populações a sentir-se marginalizadas, para além de ter fraturado as comunidades pré-PER.
Tendo em consideração o passado histórico português, a história da periferia dos bairros de Lisboa é a história de comunidades migrantes de antigos territórios colonizados, nomeadamente Angola e Moçambique, bem como de povos itinerantes — “os ciganos”.
Cita-se um artigo que representa perfeitamente as ideias de marginalização, segregação e relevância da “raça” no discurso “antiperiférico” de Mário Soares.
“Mário Soares iniciou pelo penúltimo dia de Janeiro uma Presidência Aberta na Grande Lisboa. Se existir isso a que se chama de “lisboeta médio” ele terá ficado assustado: a capital está sitiada por dezenas de “Camarates”, bairros de lata cheios de pretos, ciganos, marginais, vendedores de droga” (PÚBLICO, 1993a).
O poder estatal pode não ter procurado segregar as pessoas racializadas, mas foi isso que acabou por acontecer.
A Polícia:
Em 2016, Julia Kozma, responsável pela delegação do Comité Europeu Anti Tortura, afirmou que Portugal estava no “top” dos países do oeste europeu em casos de violência policial e que pessoas afrodescendentes estão mais em risco de sofrer este tipo de violência. Um grande número de acusações de brutalidade policial é feito por pessoas de cor provenientes de bairros periféricos como: Cova da Moura, Quinta do Mocho, Quinta da Fonte, Bela Vista, entre outros.
Em 2020, o Comité Europeu, com base em dados recolhidos em 2019, indicou que “os maus-tratos perpetrados por agentes policiais são uma realidade, e não resultam apenas de ações de alguns agentes transgressores”. Um número considerável de detidos submetidos a maus-tratos durante a detenção por parte de forças policiais (PJ, PSP ou GNR) são, na sua maioria, pessoas afrodescendentes e cidadãos estrangeiros, e identifica “bofetadas, murros e pontapés no corpo e/ou na cabeça, mas também agressões com cassetetes ou paus, insultos verbais e algemas demasiado apertadas” como práticas comuns dos oficiais responsáveis pelas detenções.
Informação retirada de:
A visita deste mesmo Comité em 2022 indicou que os maus-tratos a pessoas por oficiais da PSP e da GNR é ainda uma prática frequente.Ainda indicou que os alegados maus-tratos em causa eram primariamente “chapadas, murros,bastonadas, e pontapés ao corpo quando a pessoa já se encontrava detida”.
Neste relatório, o Comité Europeu para a Prevenção da Tortura (CPT) pede novamente às autoridades portuguesas para reforçar os seus esforços para erradicar maus-tratos policiais.
A lei de talião:
Em Portugal, o discurso sobre os bairros da periferia de Lisboa é sempre acompanhado pela ideia de marginalidade e de criminalidade, e é inegável que esta marginalidade e criminalidade existem verdadeiramente, mas também é inegável que, quanto mais fragilizadas e isoladas se sentirem as comunidades, mais violentas se tornam, violência esta exacerbada pelas forças policiais que se comprometem a “defender os direitos dos cidadãos”.
Violência gera violência, quanto mais violentas forem as forças policiais nos bairros ditos problemáticos, mais violentas serão as populações, e mais força será necessária.
É uma falácia circular e, simultaneamente, um barril de pólvora.
Filipa Santos
Departamento Sociedade
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