Doze anos depois, Luís Inácio ‘Lula’ da Silva volta a ser eleito presidente da maior potência da América do Sul – o Brasil. O candidato pelo Partido dos Trabalhadores (PT) bateu o recorde de votos conquistados (60 milhões), mas governará um país dividido, a partir de janeiro de 2023, quando tomará posse como Presidente do Brasil, uma vez que Jair Bolsonaro, o antigo presidente neste último mandato, somou 58 milhões de votos.
Foi apenas na segunda volta que se apurou o novo presidente brasileiro, após uma campanha muito conturbada e polarizada que dividiu o povo brasileiro naqueles dois candidatos: Lula e Bolsonaro. Foram contabilizados centenas de atos de violência motivados por divergências políticas nos meses que antecederam as eleições – para além de homicídios e agressões, o número de casos de assédio sexual laboral por parte dos empregadores também se generalizou. A situação no Brasil motivou a intervenção do Papa Francisco que apelou à pacificação da sociedade: “Peço a Nossa Senhora Aparecida que proteja e cuide do povo brasileiro, que o livre do ódio, da intolerância e da violência”.
No discurso de vencedor, Lula começou por agradecer a Deus e afirmou voltar à presidência “para governar o país numa situação muito difícil”, afirmando ser o momento de “restabelecer a paz” e de reconciliar “famílias divididas” num Brasil politicamente cortado ao meio. Lula disse ser tempo de pôr termo a um “permanente estado de guerra” e de “baixar armas que jamais deviam ter sido empunhadas”, garantindo que iria restabelecer contacto com governos estaduais, municípios e empresários, independentemente da cor partidária. Lula elencou o combate à fome como grande prioridade nacional, relembrando que o Brasil é o terceiro produtor mundial de alimentos e anunciando que irá restabelecer programas sociais revogados nos anos anteriores que “retiraram 37 milhões de pessoas da pobreza”. Foi neste discurso de vitória que Lula da Silva afirmou que “O Brasil está de volta”, sublinhando que “o Brasil é grande demais para ser relegado a este triste papel de pária” e que quer o Brasil a falar de igual para igual com as potências mundiais, retomando o apoio aos países mais pobres e reconstruindo relações com os Estados Unidos e a União Europeia. No final do discurso, Lula salientou que está pronto para retomar a liderança na luta contra a crise climática, tendo estabelecido como objetivo o “desmatamento zero” na Amazónia e a proteção das populações indígenas.
O resultado desta eleição evidenciou uma grande divisão entre brasileiros, identificável geograficamente: Lula ganhou quase todos os estados do Norte, enquanto Bolsonaro ganhou os estados do Sul, o que levou Lula a afirmar no seu discurso “Não existem dois Brasis. Somos um único país, um único povo, uma grande nação”.
Quase 48 horas depois de saber que não seria mais o Presidente do Brasil, Bolsonaro quebrou o silêncio e comprometeu-se a respeitar a Constituição, não deixando, no entanto, de criticar o processo eleitoral, “não deixou de reconhecer e simpatizar com o sentimento de injustiça que os seus apoiantes dizem sentir em relação à forma como decorreram as eleições”. Num discurso breve, o chefe de Estado não reconheceu a derrota nem saudou o seu adversário, Lula da Silva.
Após vários atores políticos relevantes, próximos de Bolsonaro, terem reconhecido a derrota, restava ao Chefe de Estado confiar num levante popular para causar um nível de instabilidade que abrisse margem para algum tipo de estado de exceção. De facto, após a confirmação da sua derrota, centenas de estradas foram bloqueadas pelos seus apoiantes, que se recusavam a reconhecer os resultados eleitorais (centenas de bloqueios foram registados em 23 estados brasileiros), tendo tido impacto no transporte de vários bens de primeira necessidade, afetando a distribuição de combustível e o fornecimento de supermercados e farmácias, dando origem também ao cancelamento de 25 voos, atos definidos por Bolsonaro como “fruto da indignação e sentimento de injustiça”.
Durante meses, Bolsonaro alimentou a possibilidade de vir a rejeitar uma eventual derrota contra Lula, ao fazer referência constante à suposta vulnerabilidade do sistema de voto eletrónico a fraudes, tendo chegado, também, a apresentar queixa que a sua campanha não tinha o mesmo espaço que a de Lula em rádios do Nordeste (alegações rejeitadas pelas autoridades eleitorais), tendo motivado a desconfiança dos seus apoiantes nos resultados e a contestação nas ruas pela sua derrota.
Contudo, a verdade é que, na passada quarta-feira, Bolsonaro, através de um vídeo gravado e partilhado nas redes sociais, apelou aos seus apoiantes para a desobstrução das estradas do país – “desobstrua as rodovias. Isso daí não faz parte (…) dessas manifestações legítimas. Não vamos perder aqui a nossa legitimidade”, “o fechamento de rodovias pelo Brasil prejudica o direito de ir e vir das pessoas, está lá na nossa Constituição e nós sempre estivemos dentro dessas quatro linhas…”. Bolsonaro ainda afirmou que estava chateado e triste com os manifestantes, numa quarta-feira em que, a contar com as dezenas de manifestações a apelar a uma intervenção militar para reverter o resultado eleitoral, somaram-se enormes protestos de camionistas apoiantes de Bolsonaro que continuaram a bloquear as estradas. O presidente derrotado foi, assim, obrigado a reforçar o apelo, que de forma tímida, já tinha feito na primeira declaração após a derrota. Assim como, Ciro Nogueira, ministro da Casa Civil, declarou que será dado início ao processo de transição entre o governo cessante e o sucessor, deixando antever uma certa normalidade democrática no horizonte do Brasil.
Não obstante a grande vitória, Lula da Silva enfrentará grandes desafios, agora que é novamente presidente do Brasil:
Transição do Poder – Bolsonaro será aquele que entregará o cargo após não ter sido reeleito; porém,não deixa de haver especulações de que se irá recusar a participar na cerimónia e, mais do que um sinal negativo para o processo democrático e pacificação do ambiente político, a recusa pode significar a dificuldade de acesso a dados dos órgãos oficiais.
Montar um governo amplo – Lula evitou divulgar um plano de governo tangível para não degradar à ampla base de dez partidos que se reuniu em torno da sua campanha (desde a extrema-esquerda até aos partidos neoliberais), assim como terá de montar um governo que agrade à frente ampla que o elegeu (há a expetativa da inclusão da candidata presidencial Simone Tebet no governo).
Política Económica Inclusive – Lula manifestou o seu compromisso com a erradicação da miséria e da fome, tal como, durante a sua campanha, prometeu manter uma política de valorização do salário mínimo acima da inflação e isentar impostos sobre rendimentos até 5000 reais (964 euros), medidas que necessitarão de passar por rever a política de teto de gastos aprovada em 2016, uma decisão que deve ser negociada com o Congresso.
Construção de base de apoio parlamentar – Lula irá precisar de chegar a acordo com muitos dos partidos para conseguir aprovar muitas das medidas pretendidas, como uma mudança da regra fiscal na Constituição, pelo que os partidos que já estão com o Partido dos Trabalhadores apenas somam 24% das cadeiras parlamentares, agora resta saber se os restantes parlamentares irão apoiar Lula da Silva ou se formarão oposição face ao petista.
Relação com as forças armadas – Os militares não deram indícios de contestação do resultado das urnas, mas prometeram que iriam apresentar uma auditoria após a segunda volta, assim como Lula da Silva terá de ter em conta que há mais de seis mil integrantes das Forças Armadas em cargos políticos.
Políticas de saúde – Os cortes de orçamento desafiam a manutenção de subsídios e medicamentos e ao nível do atendimento do Serviço Único de Saúde. A situação mais grave é em campanhas de vacinação que se encontram muito atrasadas (por exemplo, a cobertura vacinal para a poliomielite, em crianças até 5 anos, encontra-se em 61%, correndo o risco de o vírus voltar a circular).
Entre outros objetivos, tais como: voltar a apostar na Educação, diminuir a dependência face à China, continuar a redução de desemprego conseguida por Bolsonaro (atualmente nos 8.7%) e impedir a destruição maciça da Amazónia.
Por todo o mundo, Lula foi felicitado após a vitória nas eleições presidenciais. Macron, Biden, Ursula von der Leyen, Maduro, Xi Jinping, Putin, entre outros, manifestaram a sua disponibilidade para começarem a trabalhar juntos, disponibilidade essa carregada de um valor simbólico: o desejo de voltar a confiar e cooperar com o gigante brasileiro, depois de quatro anos de isolamento internacional que o país viveu sob o comando de Bolsonaro. O Brasil, a maior potência do continente sul-americano, tem potencial para ser uma das maiores economias do mundo e, com um papel fundamental no equilíbrio ecológico do planeta, vai ser cobiçado, como parceiro por todos os blocos, da nova ordem mundial que está a ser criada, assim como pelas grandes corporações.
Lula só tomará novamente posse como Presidente do Brasil em janeiro de 2023. Bolsonaro reagiu de forma diferente de Trump quando este foi derrotado por Biden, ao contrário do esperado.“O Brasil parece que aceita melhor os resultados das urnas do que nós”, afirmou Bill Kristol, mas a possibilidade de algo semelhante ao pós-eleições americanas de 2020 acontecer no hemisfério sul americano não é uma ideia distante. Tal como o trumpismo não desapareceu após a derrota do Republicano, o mesmo fenómeno em torno de Bolsonaro pode ocorrer, dado à semelhança entre os dois e o que representam, assim como não se vê um fim próximo à polarização esquerda-direita que se tem vindo a sentir no Brasil – mas esse é um dos principais objetivos de Lula da Silva, o novo presidente da República Federativa do Brasil.
Duarte Nogueira
Departamento Sociedade
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