É facto assente que os direitos das mulheres, tão arduamente conquistados, são dos primeiros a serem postos em causa à mínima instabilidade. E a verdade é que ultimamente são de notar algumas instabilidades. No presente artigo debruço-me sobre o direito de interromper voluntariamente a gravidez.
Começo por relembrar a importância deste direito à interrupção voluntária da gravidez (IVG). Além de questões fundamentais que se prendem com a disposição do próprio corpo e da própria vida, da capacidade de escolher ser mãe ou não , temos também a questão da inevitabilidade do recurso ao aborto, ou seja, não é por esta prática se tornar ilegal que se vai deixar de realizar ou até realizar com menos frequência. O recurso ao aborto vai continuar a acontecer, mas sim, e aqui reside a diferença essencial, num ambiente inseguro, perigoso e desumano. Coloca-se também outra questão neste âmbito - as pessoas com maior capacidade financeira vão ter acesso a um aborto ilegal feito com melhores níveis de segurança e condições, ao passo que as que não têm os meios para aceder a estes lugares, sujeitar-se-ão às condições que forem precisas para terminarem com a gravidez. Não é portanto de admirar que, como sempre, se trate de uma questão de classe.
Entre nós, a prática por opção deixou de ser ilegal em 2007, com a lei nº16/2007 de 17 de abril, que permite à mulher ou pessoa grávida interromper a sua gravidez, por escolha sua, nas primeiras 10 semanas de gestação.
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A existência de uma lei, não é, contudo, suficiente: é preciso cumpri-la. A Entidade Reguladora da Saúde concluiu no estudo “Acesso à Interrupção Voluntária da Gravidez no Serviço Nacional de Saúde” que dos 42 hospitais acreditados para realizar IVG, em Portugal Continental, apenas 29 praticam este procedimento. É um número preocupante e que não permite a todas as mulheres aceder a esta prática facilmente, como idealmente deveria ser, já que há casos de mulheres oriundas da zona Centro e Alentejo que são necessariamente encaminhadas para Lisboa de modo a ter acesso a este procedimento. A situação agrava-se quando falamos das ilhas. Nos Açores só há um hospital que pratique a IVG, sendo que existem 3. Ou seja, num território onde vivem mais de 246 mil habitantes, só há um estabelecimento que garante a prática deste ato médico que é, teoricamente, assegurado por lei. Tendo o descrito em conta e adicionando tempos de espera longos e um período de 3 dias para uma “reflexão” sobre a decisão, é de concluir que este direito não é de todo concretizado, no plano prático, da melhor maneira.
Por cá temos, portanto, falhas substanciais e graves na aplicação da lei no plano prático. Já no plano internacional é possível verificar, nos últimos anos, um verdadeiro ataque direcionado ao direito à interrupção da gravidez, leia-se, um verdadeiro ataque às mulheres.
Começando pelos Estados Unidos da América, com a decisão historica do Supremo Tribunal, em junho de 2022, de reverter a decisão que estabeleceu o direito ao aborto: Roe vs Wade. Apesar de tal não significar uma proibição do aborto a nível nacional, a verdade é que desde o ano passado já 14 Estados americanos adotaram leis que proibem ou restringem a grande escala o acesso a este direito. Assim, é estimando que cerca de 22 milhões de mulheres em idade reprodutiva vivem num Estado onde o acesso ao aborto foi em muito dificultado com a decisão do Supremo. Números que chocam.
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No caso da Argentina, a recente eleição de Javier Milei como presidente, veio pôr em risco um direito conquistado apenas nos finais de 2020, quando a Argentina se tornou o primeiro país da América Latina a legalizar esta prática após muitas lutas por parte de movimentos feministas. Milei, figura de extrema direita que durante a sua campanha eleitoral negou a existência da violência de género e afirmou querer pôr fim ao direito ao aborto, veio por em causa todas estas lutas e representa, como é possível concluir, um verdadeiro perigo aos direitos das mulheres no futuro próximo.
Devido à minha incapacidade de colocar em palavras a minha angústia e revolta ao ver ataques intermináveis à vida das mulheres, vindos de todos os lados, a qualquer hora e em qualquer lugar do mundo, termino com uma frase que sempre achei triste mas, no fundo, fiel à verdade, da Simone de Beauvoir:
“Nunca se esqueça que basta uma crise política, económica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Terá de manter-se vigilante durante toda a sua vida.”
Frase dita pela Simone a Claudine Monteil, escritora e ex-diplomata francesa que incluiu a conversa que deu origem a esta frase no seu livro “Simone de Beauvoir et les femmes aujourd'hui”.
Cá estaremos, vigilantes.
Inês Gomes Barbosa
Departamento Fazer Pensar
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