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Foto do escritorJosé Pedro Carvalho

O ecossistema fechado: UE v. Apple

Um dos grandes desideratos da União Europeia é construir um mercado único digital que seja aberto e justo para todos os operadores, que resulte numa otimização da concorrência e, ao fim e ao cabo, na melhoria das condições de vida das pessoas. De modo a alcançá-lo, tem promovido inúmeras iniciativas legislativas, designadamente, com o fim de regular a big tech, de forma a uniformizar padrões de indústria e a “abrir” mercados e serviços digitais à livre concorrência. É quase uma certeza de que isso será disruptivo face à atual conjuntura tecnológica. Agora, se isso perturbará os ecossistemas existentes ao ponto de se tornarem antagónicos à sua respetiva materialização sociocultural já é outra questão…


A mais recente dessas iniciativas foi o Digital Markets Act (DMA), que, parafraseando o Comissário Europeu do Mercado Interno, Thierry Breton, irá desembocar no controlo do poder económico (desenfreado) de seis gatekeepers. Adianta-se que o DMA qualifica como gatekeeper a Apple, algo que causou bastante furor mediático e, mais importante, indignação junto dos utilizadores mais ferrenhos dos seus produtos.


O DMA tem, nomeadamente, como objetivos: proibir os gatekeepers, nos mercados digitais que detenham, de favorecerem os seus próprios serviços, em detrimento dos de concorrentes; permitir a terceiros, não só o acesso à informação que têm como privilegiada, mas também a intercomunicabilidade com os próprios serviços do gatekeeper; e proibir de obrigar à utilização de certos serviços, quando haja uma clara e viável alternativa.


Como se afere, tais medidas pretendem nivelar o plano de jogo, alterando-o, o que, em prima facie, no exemplo paradigmático da visada Apple, pode mesmo ser prejudicial. Isto porque, inadvertidamente, poderá alterar “todo” o valor tecnológico-cultural que não só é proclamado pela empresa, mas que se expressa no mundo real, junto das pessoas. E basta conhecer apenas um bocadinho do mythos da Apple para se depreender os motivos para tal…


Ora, “Think Different” foi dos slogans que mais pulverizou o mundo tecnológico. Almejado por Steve Jobs a partir do virar do século (1997), sedimentou o cunho de genialidade do marketing e da construção de marca que a sua empresa sempre teve como apanágio, surgindo no marcante vídeo promocional “Crazy Ones”. É a demonstração mais imediata da filosofia preconizada pela Apple, inclusive, patente num texto redigido por Mike Markkula há quase cinco décadas… 


Nesse texto, são sumarizados os três princípios ordenadores: começa-se por enaltecer a “Empatia”, no sentido de tentar perceber as necessidades do consumidor melhor do que a concorrência; avança-se para o “Foque”, onde toda a decisão a tomar tem de ser perspetivada dentro de um sistema conceptual isolado de tudo o resto, principalmente, da concorrência; e, por fim, advoga-se por “julgar um livro pela sua capa”, só sendo essa a linha de pensamento, focada nas primeiras aparências, que consegue implantar nos consumidores os pretendidos ideais do que é um produto desejável e a desejar.


E, aparentemente, o modus operandi tem corrido bem, não sendo blasfémia nenhuma afirmar que a sua influência se entranhou tanto no nosso inconsciente coletivo, que pilares da identidade pessoal são formados a partir desse mesmo arquétipo de singularidade criativa e engenhosa de que a Apple é conhecida; para não mencionar o status social que os seus produtos, eventualmente, oferecem.


No entanto, como já severamente aludido, por forças regulatórias superiores à Apple, o decision-making por detrás dos seus produtos tem vindo a ser afetado


Aliás, já antes do DMA, os poderes instituídos impuseram aos fabricantes de smartphones uma “solução única de carregamento”, o conector “USB-C”. Algo que a própria Apple já podia ter implementado há muito tempo nos seus próprios telemóveis, visto que até ajudou no desenvolvimento desse padrão, mas não o fez (voluntariamente). Há duas razões para tal: a mais premente é o facto de que ter um conector exclusivo é economicamente mais rentável; e a segunda, e não menos importante, é o facto de que introduzir um novo standard num produto tão ubíquo como o iPhone perturba, seriamente, o dia-a-dia das pessoas – pense-se em pedir um carregador emprestado a um amigo, algo que, simplesmente, já não faria sentido, afetando a componente social que a marca exubera, principalmente, na América do Norte.  


E isto importa, porque as pessoas esperam dos produtos da Apple uma tamanha estética e atenção ao detalhe, tanto no software como no hardware, que ao desembocar numa fechada integração, permite uma interoperabilidade contínua entre produtos. Tem sido criado um verdadeiro ecossistema entre todos os gadgets tecnológicos que se possam pensar… Veja-se o caso da inconveniência que seria provocada em todo o tipo de criativos e no seu workflow se não pudessem partilhar facilmente ficheiros de áudio e de vídeo do telemóvel para o portátil, usando o “AirDrop” - talvez a melhor amostra da interoperabilidade e integração já faladas.  


Em nome desse ecossistema, a Apple, propositadamente, discrimina produtos de terceiros, quer seja em relação às aplicações que se podem instalar num telemóvel, quer seja no que toca a uma mera aplicação de mensagens. Tudo isso, maioritariamente, em benefício da segurança e da privacidade, na medida em que se restringe a passagem de informações por servidores de terceiros. E é verdade, o sistema fechado propugnado é muito mais impérvio a código malicioso do que um “sistema de código público”, como é o caso do sistema operativo “Android”. 


Dito isto, é percetível o efeito que os objetivos do DMA podem ter no equilíbrio do cuidadosamente criado ecossistema e no próprio sentimento do consumidor acerca do que significa ter produtos da Apple. 


Devido à abertura do mercado digital, a Apple terá de permitir, no máximo, o sideloading, ou seja, a transferência de aplicações diretamente da internet, sem barreiras, ou, no mínimo, abrir as portas a certas empresas para criarem as suas próprias lojas de aplicações sem terem de pagar quaisquer “direitos de privilégio” a posteriori à Apple. E no que toca à obrigação de intercomunicabilidade entre plataformas de terceiros e os seus próprios serviços, quem sabe no que isso irá resultar, em termos práticos: terá o iMessage de partilhar dados com o WhatsApp ou o Signal? Tornar-se-á o iPhone o pináculo da objetividade e “Foque” em só mais um smartphone? Quererá o consumidor mesmo ter um mercado mais homogéneo, nesse aspeto? 


Ao fim e ao cabo, a história só estará mais clara quando a Apple contar a sua versão, ou seja, quando, no cumprimento do DMA, apresentar as “inovadoras” alterações que implementará nas próximas iterações dos seus produtos. Já o fez na mudança para USB-C, talvez não com tanta vaidade, como possivelmente fará no próximo ano aquando da obrigatoriedade do cumprimento com o DMA – está tudo no marketing e na perceção do consumidor do desejável e a desejar, e, se a Apple é boa a fazer alguma coisa, é a (re)construir a sua imagem


Mas a verdade é que vivemos num mundo de grandes corporações, onde, por vezes, um ataque a uma delas, ou ao que elas deveriam defender, é um ataque a nós próprios. E, sendo claro que, nesta perspetiva de justiça comercial, o comportamento da Apple não faz jus à sua renomeada filosofia, já não será tão óbvio de que todo este rebuliço não possa influir na experiência que milhões de pessoas se habituaram a ter na palma da sua mão. Os efeitos destas imposições podem, de facto, vir a ser diametralmente opostos ao que é o substrato ideológico por detrás desta empresa, transfigurando o que era o exemplo de uma forte personalidade em apenas mais um interveniente. Efetivamente, com essa troca de atitude, o Mundo perde em termos espirituais. Aludindo ao tal vídeo “Crazy Ones”: é preciso rebeldes e inadaptados que, digam o que disserem deles, como do seu desgosto por regras, a única coisa que não se pode fazer é ignorá-los


Já Thierry Breton, aos possíveis contra-argumentos da Apple, retorque que a regulação europeia alimenta inovação, sem comprometer na segurança e privacidade, parafraseando. Bem, possivelmente, estará certo, até porque se a Apple é assim tão engenhosa, arranjará, com certeza, alguma solução. 


Em todo o caso, é mais um capítulo na história de um ícone da cultura pop, provavelmente, sendo decisório ao legado do seu atual CEO, Tim Cook – quiçá, tema num futuro filme biográfico. Pois, o resultado vai definir a Apple e, no entretanto, pode ser que se alcance o propósito do mercado digital único europeu, como delineado por Andreas Schwab, membro do Parlamento Europeu: que a Europa usufrua das melhores empresas e não apenas das maiores.


P.S.: Boas festividades, caro Leitor!


José Pedro Carvalho

Departamento Cultural


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