O esquecido invisível
- Manuel Brito e Faro
- 4 de out.
- 2 min de leitura
“Termos o mundo nas nossas mãos” é hoje um fenómeno inquestionável da sociedade moderna. A omnisciência é, atualmente, elemento humano, não divino - e instrumento nunca requisitado - mas oferecido. Ninguém luta, hoje, para ter acesso a mais informação; antes, esta oferece-se de um modo tão excessivo que temos de ser nós a recusá-la, como um rei medieval que diz que já comeu demais. No entanto, em que medida é que a nossa omnisciência é hoje uma arma daqueles que não querem que nós a vejamos? E de que coisas nos esquecemos porque não as vemos?
Pode ser relativamente fácil esquecermo-nos do que vimos, mas é um trabalho extremamente árduo lembrarmo-nos do que não vimos. As causas atuais dignas de luta são aquelas que, ainda que possivelmente contestadas por uma larga maioria, são visíveis. Logo, presentes. Onde uma câmara de telemóvel hoje não chega é lugar que, para uma sociedade cronicamente online, não existe. Pior do que isso, ainda que filmados, estes eventos podem, através de uma mão invisível, ser ocultados, visto que os algoritmos escolhem, por nós, aquilo a que dirigimos a nossa atenção. Contra ou a favor, os problemas que nos assombram são problemas de um feed, de uma secção de comentários ou de um chat.
A título de exemplo, o Twitter começou recentemente a censurar palavras como “cisgénero”, no que parece ser uma tentativa de abafar conversas sobre pessoas transgénero. A censura torna-se ainda mais perversa quando não censura apenas um dos lados, mas todo um tópico. O problema deixa de ser reprimido, para se tornar inexistente. As conversas não se silenciam; antes, não se produzem, de todo.
Não pretendo com este texto invocar um tão nauseante “whataboutism” que certos senhores da Internet tanto invocam, certamente, porque desejam, ao final do dia, ser finalistas do prémio “Defensores de nada; destruidores de tudo” - pessoas que, perante um genocídio, não perdem a oportunidade de aumentar o seu ego. Não é por tantos problemas não terem voz que problemas bem reais e vivos na nossa consciência são fúteis. Pelo contrário, devemos questionar o que se esconde por detrás daquilo que vemos: quem ganha, inevitavelmente, no silêncio do abuso que causa, quem perde e, ainda, onde nós, peões num jogo em que procuramos ser moralmente justos, nos inserimos.
Manuel Brito e Faro
Departamento Crónicas
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