No que é já quase uma tradição anual, assistimos neste passado outubro e novembro a reivindicações para o Orçamento do Estado de várias figuras do tecido cultural português - clamam por dignidade.
A 27 de outubro foi rejeitada na Assembleia da República a proposta de Lei orçamental para 2022. Neste documento a verba para a cultura representava 0,35% do total da Administração Central, ou 0,25% quando descontada a verba destinada à RTP. Pegando neste último valor, que é mais representativo das opções políticas para a cultura, vemos que a despesa consolidada ascende a 390 milhões de euros, um acréscimo de 70,1 milhões de euros ou 21,9% face a 2021.
Este notável aumento absoluto não satisfez ainda assim as pretensões de vários profissionais do setor, que fazem uma exigência de natureza percentual, já antiga - 1% para a cultura. Nas palavras de Rui Galveias, coordenador do Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculo, do Audiovisual e dos Músicos, "O 1% do Orçamento do Estado é fulcral para uma mudança da política cultural”. A verdade é que relativamente a outros programas orçamentais, a cultura vê-se renegada a uma posição de pouca importância, tendo a terceira despesa mais baixa, depois da Representação Externa e do Ministério do Mar (sem a RTP é a segunda mais baixa).
Como é que chegámos a este ponto? A evolução, em democracia, da despesa com a cultura pode ser dividida em quatro grandes fases - uma fase de crescimento até ao final dos anos 90; relativa estabilidade na primeira metade da década de 2000; acentuada queda depois de 2008; uma tendência de aumento na segunda metade da última década.
Uma breve análise qualitativa também se justifica. O panorama legislativo traduz uma diversidade de objetivos e funções: desde a conservação, criação e difusão, até à concertação com políticas de espaços mais vastos, como a União Europeia. O Estado assume-se principalmente como regulador, mas também como patrono, apoiando diretamente a criação artística com financiamento; ou ainda como regulador-empresário, papel visível na gestão de teatros nacionais.
Mas qual o mérito desta ação? A intervenção estatal na cultura, principalmente na forma de subsídios às artes, é um tema quente, com apologistas apaixonados dos dois lados da barricada. Um ponto de confusão que deve à partida ser esclarecido, para evitar linhas de pensamento falacioso, é que este não é um debate sobre a importância da cultura. Na realidade, incide essencialmente sobre as funções do Estado e sobre a eficácia das intenções expressas de certas políticas.
Em primeiro lugar, de uma perspetiva jurídica, é importante ter presente o dever constitucional, vertido no nº 3 do art. 73º da CRP, de o Estado assegurar o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural". Também na alínea e) do art. 9º se lê que "proteger e valorizar o património cultural do povo português" é uma tarefa fundamental do Estado. Se ao Estado deve caber este papel é uma questão ideologicamente fraturante - outra, talvez mais complicada, é perceber se as políticas que existem nesse sentido são adequadas.
A patronagem pública à cultura, dirão uns, contribui para a sua fruição por pessoas com baixos rendimentos e para o bem-estar social. Esta atividade vital tem dificuldade em ser lucrativa, mesmo quando tem qualidade - de tal modo, não pode ser deixada à mercê dos caprichos do mercado. Para além disso, uma cultura pujante e dinâmica tem efeitos económicos positivos - na restauração, na hotelaria, no turismo, no emprego. Outro aspeto importante é a promoção da cultura, língua e identidade portuguesas num mercado cultural profundamente globalizado (e, diga-se, dominado pelo eixo anglo-americano).
Por outro lado, é verdade que se colmata a falta de contribuições voluntárias com contribuições sob coercibilidade - os impostos. Quando se fala na necessidade de apoiar publicamente arte de qualidade, quando o mercado não o faz, fazemos dos burocratas juízes do bom gosto (em detrimento da população e com o seu dinheiro), uma atitude profundamente elitista. Aponta-se também a instrumentalização e condicionamento da cultura em função dos interesses do Estado. Mesmo o efeito das políticas é frequentemente perverso - uma não necessária redução dos preços, uma influência negativa do financiamento público na capacidade de atrair financiamento privado.
Tudo isto deve pesar no "1% para a cultura". Realisticamente, no entanto, não adivinho que esse número se verifique tão cedo - há convergência dos partidos do bloco central no que concerne a esta política (com ligeiras diferenças, naturalmente). Os únicos que ainda se batem pelo 1% são o Bloco de Esquerda e o PCP.
Resta esperar pelos resultados das eleições e pelo próximo orçamento. Se o setor cultural não gostou da proposta chumbada, é possível que goste ligeiramente menos da próxima. Se tivesse de fazer uma previsão para os próximos anos diria que, grosso modo, a verba se vai manter, com uma ou outra diferença residual. Assim, é também expectável que o setor cultural permaneça descontente e se faça ouvir por alturas de Orçamento do Estado.
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