Confesso que a necessidade de usar Mamadou Ba como resposta a críticas feitas ao senhor-cujo-nome-não-deve-ser-pronunciado-sob-pena-de-lhe-darmos-aquilo-que-ele-quer, ou de estabelecer paralelismos entre este e João Ferreira por ocasião das eleições presidenciais deste ano, ou de, em geral, culpar a esquerda pela crescente radicalização da direita é algo que me incomoda há já algum tempo. E a coisa agrava-se quando a comparação vem dos que nos governam: foi isto que fez a União Europeia quando, em setembro de 2019, numa tentativa de manipulação político-ideológica da história, colocou no mesmo patamar nazismo e comunismo. Esta equiparação é consequência direta da adoção da chamada teoria da ferradura, que nos diz que os extremos se tocam. Ora, essa teoria não podia ser mais imprecisa e – pior – perigosa.
Em primeiro lugar, a tal ferradura não passa de uma simplificação infantil da realidade e de uma impossibilidade lógica: o fascista não é igual ao antifascista, o racista não é igual ao antirracista e o inimigo da liberdade não se confunde com o democrata. Por outras palavras, afirmar que a extrema-esquerda (conceito difícil de definir na política portuguesa, já que, consoante os interesses em causa, tanto abrange o Partido Comunista Português, como abrange o Partido Socialista) é tão má quanto a extrema-direita apazigua o centrista moderado, falso detentor de todas as virtudes em democracia (nem só no meio está a virtude), permitindo-lhe dormir sem preocupações, e até lhe dá a sensação de que está a dizer muito, quando, na verdade, não está a dizer nada.
Depois, é desonesto comparar nos planos moral e teórico-político as duas ideologias: enquanto uma visa a supremacia, a segregação e o extermínio, a outra luta pelo fim da exploração do homem pelo homem, pela inclusão e por melhores condições de vida. A essência de uma é o ódio; a outra, para produzir resultados semelhantes à primeira, precisa de ser corrompida. Acrescento: não estamos no domínio da opinião, é isto que resulta da leitura das obras dos principais teóricos destes movimentos. E esclareço os mais aventureiros: referi-me em primeiro lugar ao fascismo e em segundo lugar ao comunismo.
Para desgraça das narrativas de muitos, o que se lê na teoria tem passado para a nossa prática: os comunistas e demais forças de esquerda, que lutaram contra o Estado Novo, sempre conviveram pacificamente com a democracia de abril – e, aliás, fundaram-na –, e hoje defendem perigosas propostas como o aumento do salário mínimo nacional e do investimento na saúde e na educação; por sua vez, os outros, desde que ganharam palco, e depois de anos a ceifar vidas na clandestinidade, já mandaram uma deputada para a sua terra, pediram o confinamento de minorias étnicas e defenderam a punição com pena de prisão das ofensas a magistrados (o que, diga-se, teria resultados curiosos depois do que se passou há umas semanas com a decisão instrutória da Operação Marquês) – ou seja, limitaram-se a trazer à realidade as palavras dos livros que os inspiram.
Por fim, o perigoso caminho que se trilha: comparar nazismo e comunismo é passar uma borracha sobre a história – e, portanto, expor-nos à sua repetição –, dizendo que os criadores dos campos de concentração são iguais àqueles que os libertaram; é, mais grave ainda, branquear e relativizar as atrocidades praticadas pelo fascismo alemão.
Que, em defesa da democracia, se condenem os Estados autoritários e totalitários. Mas paremos de preencher estes conceitos apelando a duas ideologias que não se confundem, quando é certo que apenas uma delas caberá invariavelmente aqui. Os comunistas são parte integrante da democracia; os fascistas, que ganham terreno com estes revisionismos históricos, temem-na.
"os comunistas e demais forças de esquerda, que lutaram contra o Estado Novo, sempre conviveram pacificamente com a democracia de abril" Se em primeira instância o autor não estava no domínio da opinião, aqui passou ao nível do factualmente despreocupado: sem desenvolver nas destrinças do Verão Quente, sem desenvolver nas rejeições às alterações da CRP1976, o 25 de novembro e as associações ao Komintern foram convenientemente ignoradas para fazer esta afirmação. "Fazer Pensar" começa por nós próprios e a verdade jornalística é da responsabilidade de todos. @PolígrafoSIC