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Foto do escritorInês Brandão

O multiculturalismo é mau para as mulheres?

Atualizado: 13 de mar. de 2021


Foto: Fabrice Coffrini/AFP

Os suíços aprovaram no passado domingo, dia 7 de Fevereiro, através de referendo, a proibição da utilização da burca islâmica, peça de vestuário que cobre o corpo das mulheres da cabeça até aos pés, bem como a proibição da ocultação do rosto em lugares públicos. O referendo é vinculativo e propõe uma revisão constitucional que visa permitir esta proibição.


A proposta foi promovida pelo Partido do Povo Suíço (SVP, na sigla original), o partido mais conservador do espectro político suíço e que construiu sua marca condenando a imigração. O presidente do comité que organizou o referendo, e deputado do SVP, Walter Wobmann, disse inclusivamente que “na Suíça, a tradição é mostrar a cara” e que isso é “sinal das liberdades básicas”.


Para ganhar o apoio de outros partidos no espectro político, o Partido do Povo Suíço declarou que o objetivo da ação era "promover a igualdade, a liberdade e a segurança", e “libertar as mulheres da opressão religiosa de que são vítimas”, sob o argumento de que a medida impedirá mulheres de serem forçadas a esconder o rosto.


O Governo e o Parlamento suíços opuseram-se à proibição, considerando tratar-se de um fenómeno marginal na Suíça, que poderia ter efeitos negativos sobre o turismo e que, “não ajudaria realmente as mulheres afetadas”. Não obstante, com o apoio dos restantes partidos à direita, alguns grupos feministas e alguns grupos de esquerda laica, a iniciativa denominada "Sim à proibição de esconder o rosto" ganhou com 51,21% dos votos, tendo a votação contado com a participação de pouco mais da metade dos eleitores suíços.

Foto: Fabrice Coffrini/AFP

Com este resultado, a Suíça junta-se à França, à Áustria, à Bulgária, à Bélgica e à Dinamarca, que aprovaram iniciativas semelhantes. Também na Alemanha, onde a religião Muçulmana é a segunda religião no país com mais praticantes, desde 2019, conservadores da União Democrata-Cristã (CDU), o partido até há pouco encabeçado por Angela Merkel, têm pedido a adoção de uma lei similar. Julia Klöckner, Ministra da Agricultura, afirmou em agosto de 2019 que, “não se trata de um pedaço de tecido, mas de toda a imagem de gênero expressa por meio dele (...) a nossa Constituição é clara, homens e mulheres têm igual valor e direitos iguais”.


Perante este quadro, é patente que a crescente diversificação cultural das sociedades ocidentais, pela via dos fluxos migratórios ligados à globalização, trouxe novas realidades e problemas ao Direito, que ainda hoje estão por resolver. Refletir sobre o Direito é também perceber como é que este deve atuar perante uma realidade multicultural. Os problemas de justiça associados à diversidade cultural e ao reconhecimento dos grupos estão longe de ser simples. Por essa razão, foram surgindo propostas de multiculturalismo, isto é, formulações e teorias sobre quais as melhores políticas a adotar de forma a reconhecer equitativamente e proteger as diferentes culturas numa sociedade altamente heterogénea.

Contudo, face a tais propostas de multiculturalismo e de aceitação da diversidade cultural, surgem também críticas. Nomeadamente, revelou-se desde cedo uma tensão entre multiculturalismo e feminismo. Em 1999, Susan Moller Okin, feminista e filsofa política da Nova Zelândia, formulou a famosa questão: “o multiculturalismo é mau para as mulheres?”.

De acordo com Okin, até aos finais do séc. XX, era esperado que as minorias se “adaptassem” à cultura dominante. Porém, a partir dessa data, tal adaptação passou a ser considerada um meio de opressão, pois surgiram, precisamente no pólo contrário, as propostas de multiculturalismo. Para Okin, este reconhecimento cultural levanta um dilema: qual deve ser a posição do Estado e do Direito quando as minorias reclamam tradições culturais ou religiosas que contradizem as normas de igualdade de género impostas pelos Estados de Direito em sentido moderno?

A título de exemplo, a autora refere os casos de meninas muçulmanas que usam burcas nas escolas, os casamentos poligâmicos nas comunidades africanas, os cortes genitais femininos e os casamentos forçados de crianças, entre outros. Confrontada com esta lista, Okin conclui que, precipitadamente, os Estados de Direito em sentido moderno assumiram que o multiculturalismo é algo bom e compatível com feminismo quando, na verdade, a realidade poderá não ser essa. Sob condições de total reconhecimento e proteção culturais, Okin acredita que medidas de boa fé por parte dos Estados poderão deixar membros dos grupos minoritários vulneráveis a injustiças dentro do grupo. Apesar de reconhecer que as culturas ocidentais ainda revelam variadas formas de discriminação com base no género, e que todas têm passados patriarcais, Okin denota que as culturas ocidentais liberais, neste âmbito, tiveram uma evolução mais rápida do que outras. E, assim, conclui:

Female members of "a more patriarchal minority culture" may "be much better off if the culture into which they were born were either to become extinct (so that its members would become integrated into the less sexist surrounding culture), or if the culture were "encouraged to alter itself so as to reinforce the equality of women””.


[“Pessoas do sexo feminino de uma cultura patriarcal minoritária poderiam ficar numa posição muito melhor se a cultura na qual nasceram se extinguisse (e assim os seus membros passariam integrar a cultura menos sexista que os rodea), ou se a cultura naquela onde nasceram fosse encorajada a alterar-se de modo a reforçar a igualdade de género”]


Esta posição, que se alinha com a recente decisão dos suíços quanto à proibição do uso da burca, suscitou diferentes críticas de vários ilustres filósofos-políticos, entre os quais Will Kymlicka, Bonnie Honig e Martha C. Nussbaum. A resposta mais célebre, no entanto, foi aquela de Leti Volpp, professora de Direito na Universidade da Califórnia.


Para Volpp, a tese de Okin tem uma falha fundamental: a premissa de que as mulheres são sempre vítimas de uma cultura minoritária. Segundo esta autora, as mulheres também são seres culturais, estão envolvidas numa cultura com a qual se identificam. Enquanto seres culturais, se as mulheres quiserem valorizar a sua cultura como uma dimensão da sua identidade e experiência pessoal, não devem ser impedidas de o fazer. No caso em análise, para Volpp, as mulheres devem poder escolher se usam ou não símbolos religiosos sem que sejam acusadas, pela cultura dominante, de que, pelo facto de os usarem, são seres oprimidos. Na verdade, as mulheres podem querer autodeterminar-se dessa forma.


Em contraste com Okin, Volpp afirma que a melhor forma de não paternalizarmos as mulheres é criar condições para que estas possam fazer escolhas por si, para que não se vejam forçadas a aceitar as escolhas feitas por outros (normalmente do sexo oposto), para que possam decidir a sua cultura, definir o significado que querem que essa cultura tenha para si e reivindicar os seus direitos.

Foto: Fabrice Coffrini/AFP

Em conformidade com um estudo da Universidade de Lucerna, citado pela Reuters, praticamente ninguém na Suíça usa burca e apenas cerca de 30 mulheres utilizam niqab (serão mais as que utilizam hijab). Dessas, a maioria são mulheres islâmicas que nasceram na Suíça, que se converteram ao Islão e que conscientemente escolhem usar a vestimenta.



O Conselho Central de Muçulmanos na Suíça classificou ainda o passado Domingo como um dia triste para a comunidade, alertando que a decisão “abre velhas feridas” e envia um sinal claro de “exclusão para a minoria muçulmana”.


A resposta à questão enunciada por Okin em 1999 está longe de ser clara. Ainda assim, o facto é que o Direito terá sempre de se pronunciar sobre estes assuntos, a jusante ou a montante. Ao Tribunal de Justiça da União Europeia chegam frequentemente questões, por reenvio prejudicial, com esta mesmíssima base. Por trás de cada decisão está a reflexão, que também é política, sobre qual deve ser a finalidade primordial do Direito enquanto instrumento de justiça.


Em que medida conseguiremos desenhar um Direito que seja justo e suficientemente inclusivo numa sociedade diversificada?



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