Em 2005, ainda prisioneiro, Mohamedou Ould Slahi manuscreve Diário de Guantánamo, um livro de memórias que viria a ser publicado apenas em 2015, numa versão censurada pelo governo norte-americano.
Tendo-se tornado rapidamente um bestseller internacional, este ano estreou a sua adaptação para o cinema, O Mauritano. Este testemunho inédito é retratado num filme que nos poupa ao habitual «conto de fadas» da justiça norte-americana, exibindo-nos duramente a outra face da moeda. Em cena exibem-se interpretações magistrais de um elenco de estrelas, destacando-se Tahar Rahim, Jodie Foster, Shailene Woodley e Benedict Cumberbatch. Kevin Macdonald, o realizador, não esconde o propósito de dar a conhecer ao grande público o testemunho de Mohamedou, elegendo para tanto o formato de uma grande produção.
Neste artigo, proponho-me servir também esse propósito, dando-vos a conhecer um pouco da vida inspiradora deste carismático mauritano, que nunca perdeu o sentido de humor mesmo diante o maior infortúnio.
A detenção
Novembro de 2001: Mohamedou Ould Slahi é inesperadamente detido em sua casa por forças mauritanas a mando dos Estados Unidos da América.
Regressara a Nouakchott (Mauritânia) no ano anterior, depois de ter trabalhado vários anos como engenheiro eletrotécnico na Alemanha, onde permanecia desde que ganhou uma bolsa para estudar no país. Durante a viagem de regresso, em janeiro de 2000, Mohamedou seria detido por duas vezes, para ser interrogado por agentes do FBI relativamente ao chamado “Plano do Milénio” de bombardeamento do Aeroporto de Los Angeles. Tendo chegado à conclusão de que não havia motivos para crer que estivesse implicado no Plano, as autoridades libertam-no a 19 de fevereiro de 2000.
Desta vez, a CIA suspeitava do seu envolvimento nos ataques terroristas do 11 de setembro de 2001 - e baseava-se no seguinte:
1. Em 1990, Mohamedou viajara da Alemanha, onde vivia, para o Afeganistão com o intuito de lutar contra a ocupação soviética. Aí frequenta treinos em bases da Al-Quaeda, entre 1991 e 1992, ano em que deixa o Afeganistão e (alegadamente) rompe a ligação com o grupo jihadista.
2. Em 1998, regressado à Europa, receberia o telefonema de um primo pedindo-lhe uma transferência de dinheiro para a Mauritânia; acontece que o telefone de satélite utilizado para efetuar a chamada pertencia ao líder extremista Osama Bin Laden.
Associando estes factos, as autoridades norte-americanas rapidamente se lançariam no seu encalço. Após sete dias de interrogatório, Mohamedou é forçado a embarcar num avião cujo destino lhe é desconhecido.
Seria transferido pela CIA para uma prisão na Jordânia, onde o torturariam durante oito meses. Depois da Jordânia, seguir-se-ia a Base das Forças Aéreas de Bagram, no Afeganistão e, em agosto de 2002, chegaria finalmente à prisão militar da Baía de Guantánamo, em Cuba. Tudo isto, sem que os familiares conhecessem o seu paradeiro durante cerca de um ano.
Em Guantánamo, Mohamedou torna-se o prisioneiro “760”, classificado como um dos mais importantes detidos e, desse modo, confinado à zona dos ‘high value detainees’. Interrogado severamente, é submetido a uma tortura que inclui meses de isolamento extremo, uma série de humilhações físicas e sexuais, ameaças de morte, ameaças à sua família e uma simulação de rapto e de transporte. “Muitas pessoas ficaram malucas, perderam a lucidez. Eu tentei que isso não me acontecesse, mas era muito difícil”, confessa Mohamedou num documentário recente do The Guardian (My brother’s Keeper).
A luta pela Justiça
Proclamando-se inocente desde o início, com o tempo, Mohamedou ver-se-ia forçado a aceitar o seu destino de reclusão e tortura. Um fatalismo que, a pouco e pouco, faria esmorecer o seu espírito naturalmente empático, esperançoso e bem-humorado.
É então que Nancy Hollander, uma advogada norte-americana, já com uma longa carreira de sucesso, revela interesse pelo seu caso e, acompanhada das colegas Theresa Duncan, Linda Moreno e Sylvia Royce, aceita representá-lo; apesar de ciente das dificuldades que enfrentaria, nomeadamente frente à pressão da opinião pública. O que captaria a sua atenção para o caso seria o facto de, ao final de anos de detenção, não ter ainda havido julgamento, nem sequer ter sido formulada qualquer acusação contra Mohamedou.
E aí começa a verdadeira luta pela Justiça: Nancy Hollander vai desvendar um sistema cego pelo propósito de proteger uma nação ferida e repor a segurança nacional, “custe o que custar”. É precisamente esse sistema «inquestionável» que a advogada terá de enfrentar.
Em março de 2005, Mohamedou manuscreve o seu pedido de habeas corpus, que seria analisado por um juiz federal entre agosto e dezembro de 2009.
Em 2010, após um intenso trabalho jurídico e intermináveis anos de espera – durante os quais Nancy Hollander não deixa de visitar regularmente Mohamedou, revezando-se com as suas colegas -, o juiz ordena a libertação imediata do prisioneiro “760”. Contudo, a Administração Obama apresentaria recurso e o mauritano apenas viria a ser libertado seis anos mais tarde, a 17 de outubro de 2016.
Ao todo, havia passado 14 anos na prisão sem sequer ter uma acusação formulada contra si. Entretanto, morrera a sua mãe e o seu irmão sem que os pudesse rever.
Todavia, a relação de amizade com Nancy Hollander manter-se-ia, sendo que Mohamedou, ironia das coincidências, é hoje casado com uma advogada norte-americana.
A relação com Steve Wood, um guarda prisional
Steve Wood, militar ao serviço do exército americano, foi colocado na prisão de Guantánamo em 2004; tinha então 24 anos. Era apelidado pelos reclusos de “sargent stretch” devido à sua altura intimidadora. Durante o tempo que lá ficaria, a sua função seria “guardar” e vigiar Mohamedou.
Steve fez parte da primeira “non-torture team” em Guantánamo, isto é, a primeira equipa que não fora especificamente encarregue de torturar ou infligir dor aos prisioneiros. Muito embora, por essa altura, Mohamedou já não acalentasse grandes expectativas quanto ao tratamento que lhe seria dispensado, com esta nova equipa ele passaria a ser tratado (pelo menos) com respeito, “como todos os seres humanos devem ser tratados”, admite Steve no já referido documentário do The Guardian. “Os guardas lá eram maus, ao ponto de bastar que um prisioneiro virasse as costas para que não hesitassem em matá-lo. E ninguém lhes exigiria responsabilidade por isso”, confessa o militar norte-americano.
Steve Wood descreve assim o momento em que conheceu Mohamedou: “Vejo um homenzinho pequenino entrar na sala com um sorriso estampado na cara e, de repente, ele dirige-se a mim: ‘prazer em conhecer-te’. Eu nem conseguia acreditar, não era o que eu estava à espera. Foi o momento Matrix da minha vida”, sorri. Bastou um dia oferecer café ao mauritano e, noutro dia, perguntar-lhe se gostaria de jogar às cartas consigo e logo ali nasceria uma amizade sincera e bem temperada para a vida. “Confio nele a cem por cento e acredito firmemente que ele é inocente. Mohamedou é uma pessoa honesta”, afirma o ex-guarda de Guantánamo.
Recentemente, passados 13 anos desde a última vez em que se viram, Steve fez uma visita a Mohamedou na Mauritânia - o The Guardian captaria o reencontro no tal documentário:
Steve Wood admira o mauritano, acima de tudo, pela sua fé. Tanto, que ele próprio se converteu ao islamismo, praticando hoje a mesma religião do seu ex-prisioneiro. “O Steve foi um muçulmano desde o início, tal como todas as boas pessoas. O Islão é apenas um estilo de vida, uma forma de se ser boa pessoa”, declara Mohamedou.
Parece ser realmente a fé que move este muçulmano apaixonado pela vida, e da fé que ele retira uma paz interior que transparece na sua forma de estar. O que mais poderá surpreender quem não o conhece é ainda uma extraordinária capacidade de perdoar e o modo aparentemente leve, desprendido e sábio com que ultrapassou um período tão negro da sua vida.
Mas Steve Wood não foi o único guarda prisional em quem Mohamedou semeou simpatia: “Há guardas e ex-interrogadores que me ligam”, admite o mauritano, hoje com 50 anos de idade.
As questões que se colocam
Desde a sua abertura, passaram pelo famoso campo de detenção mais de 700 prisioneiros, aos quais nunca chegou a ser reconhecido o direito de serem presentes perante um tribunal. Atualmente, a maioria deles foi libertada.
Daqueles, são 39 os reclusos que permanecem hoje em Guantánamo, sendo que a alguns foi prometida uma liberdade que tarda em chegar. Pelo menos 12 são considerados por Washington líderes perigosos da Al-Qaeda. Após um atraso nos procedimentos legais causado em grande parte pela pandemia, foram os mesmos recentemente retomados, agora sob a Presidência de Joe Biden.
A história inspiradora de Mohamedou leva-nos a repensar questões que estão longe de serem solucionadas passados 20 anos dos ataques do 11 de setembro e da criação do temido complexo prisional em Guantánamo.
Quantas atrocidades e violações de direitos humanos não terão sido cometidas sob o pretexto da «segurança nacional»? Será o Governo norte-americano alguma vez responsabilizado por isso? Continuarão os 39 reclusos que permanecem hoje em Guantánamo a ser alvo de violações flagrantes de direitos humanos? Alguém fiscaliza? Alguém luta contra isso?
Urge, pois, refletir sobre as fragilidades do Estado de Direito e aquilo que devem ser os limites da sua atuação.
Mohamedou disse um dia:
“Eu acredito na Humanidade. Acredito que não precisamos de países ou de fronteiras: eu e o Steve somos a prova disso, de que a natureza humana transcende fronteiras, transcende estereótipos e transcende o ódio”.
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