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  • Francisco Amaral

O medo grita(-se)

Ainda não, nunca, talvez, ainda ninguém se parece ter apercebido do que fizemos, ou então, simplesmente, ninguém quer saber. 


O seco sangue jazido das costas do negro ressuscitou da outrora vida pela vergastada sentenciada. Cada vez que te ouvir gemer, levas a dobrar, e com estas palavras a lágrima contida pela esperança de viver começa a cair do olho do escravo. As cem feridas rasgadas pelo nascer do sol daquele dia deixaram a marca de um sangue esquecido pela rotina e a satisfação de um prazer criado por ela, como se de água se tratasse, Não te esqueças de regar essa planta, Não esquecerei, e não esqueceria, pois ali estava a sua vida inteira, Vira-te e cala a puta da boca. 


O terreno era um extenso descampado acachapado pelo medo, brunido por um violento polvilho acinzentado. O chão de barro lamacento refrescava os pés arrastados pelas unhas, já podres, encravadas de ocre espesso. O fedor a excremento era insuportável. O suor seboso dos homens e mulheres daquele ofício tresandava a azedo e a doenças infeciosas, a catinga da lixívia emprenhada na lama farinhenta e do sangue abundante nauseavam os olfatos recentes e quando os destinados à labuta enfraqueciam das pernas ossadas e desabavam no lodo misturado com os excrementos antigos, os senhores do medo, como serão invocados estes tais cobardes, ordenavam a sua imediata subida, Levanta-te, cabrão, se não serves morre, ainda aturdidos com a amargura argilosa a coagular-lhes a boca inteira. Em toda a parte, como se do mundo todo se tratasse, os grunhidos cruciantes dos porcos rasgados pela refeição e os berros lancinantes das vacas e bois rompidos pelas facas ensanguentadas de lucro ecoavam pelos ouvidos dos que ainda restam. Escutava-se, ao longe, as ordens de execução dos restos humanos que por ali deambulavam com a pouca vida que tinham. Os guinchos de súplica sem apelo dos homens e das mulheres, desesperados pelas adivinhadas chibatadas, fundiam-se com os berros e grunhidos de toda aquela sinfonia sôfrega. 


Apesar de tudo, o dia mostrava-se belo, radiante, a tempestade, passando, deixou na terra as suas vitaminas e a sua vida por ser através das suas gotas que se vão formando vagarosamente nos seus vários ciclos e causas naturais de existência, e são boas por serem naturais as suas razões e os seus efeitos, o sol, que alto brilha, como o mar ou toda a restante natureza, vivem intermitentemente indiferentes ao rumo que o Universo toma. Não há motivo melhor que não haver motivo algum para uma flor florir, pois assim é o real curso das coisas, para uma raiz subir à sua inteira terra desconhecida, uma terra que, incondicionalmente, cuidou e protegeu as possíveis causas de morte daquele princípio de vida, o filho concebido no ventre do mundo ao encontrar-se com a sua mãe criadora, mãe altruísta, santa toda ela, que cuida dos seus filhos sem os ver nascer e crescer, sem cuidar deles, sem saber quem são, como se isso mudasse o rumo vital ou o verdadeiro sentido da palavra conhecer, mesmo que conhecesse o que conhecia, como diria um poeta ainda não nascido, é algo para se questionar, engolindo-se a fria pergunta. Aquela mãe, pobre mãe, que nasceu, se algum dia o fez, com a vida que leva, para apenas os ver quando já é tempo de partir, Faz-te à vida, que já é tempo, vai viver, que eu fico aqui mais um dia, e assim se vai o filho desta mãe, esta sem nunca o ter conhecido, aquele sem nunca saber quem é, És o ventre do mundo, diz ele, és o mundo deste ventre, diz ela, e assim se vai fazendo o mundo.

Ao levantar-se da cómoda e fácil cama e sentar-se, como era habitual, no seu extenso trono, orgulhando-se visivelmente do reino contruído pela sua vida, ignorava ser o medo o titular dele e dela. O senhor do medo, com seu manto de fraqueza e crenças disfarçadas de eras, tem aos seus ignorantes pés a destruição da humanidade. Homem por homem e mulher por mulher aquela inteira gente vai-se retornando ao animal que fora outrora, pregando-nos a nossa história às injustiças que não escolhemos ter e afastando-nos das vidas e das esperanças que o futuro delas dava. Depois de satisfeita a sua preguiça e conforto, despertando-se com a sua vontade, vê o estender do dia, igual ao de ontem e este igual a outro qualquer, no seu trono austero e magnânimo, fosse ele ao menos isso. O leão em que pousava a sua real mão cobria-se de talhas douradas rigorosamente colocadas ao longo do braço da soberania, sendo soberano também todo aquele pau preto que reveste o seu corpo, o do cadeirão, claro, com leves detalhes de arrogância e desprezo, de modo a mais confortavelmente ouvir as suadas escriturações de conquistas, da Índia as sedas e as especiarias, e tantas que são, cobre, pimenta, de Angola o ouro, do Brasil os escravos e o açúcar, também de Goa e Moçambique, os escravos não o açúcar, também daqui o ouro, os diamantes e as pérulas, da Índia também os tapetes, o algodão, o marfim, os couros dos mortos animais para dignamente se vestir El Rei desta terra, o cacau, a prata e mais ouro, e mais pimenta, e mais. Tudo ascendia e fazia crer no poder do brasão heraldicamente colocado no topo deste cadeirão que aqui se apresenta, uma casa honrada pelo seu nome, que esbelta e altiva esta insígnia, admirai, suficientemente digna para todos aplaudirem excelentíssimo El Rei que aí vem disfarçado de divindade, Afastem-se, que el rei aí vem, Aí vem el rei, não fosse todo aquele festim acabar escondido pela cabeça deste inútil idiota.


Neste campo descoberto ninguém dormiu. Bicho da esperança com seu manto de coragem, acordando com a chuva madrugadora, tem aos pés do soberano medo a sua vida, ou aquilo que ainda lhe resta. Mais um dia começou. Caminham cinco arrastados quilómetros estes que aqui estão, acompanhando-se uns aos outros pela corrente enferrujada que tanto os aproxima, acordados já pela luz do intolerante sol para iniciarem os seus duros trabalhos, os que logo se levantaram, aqueles que lá ficaram por ser mais pesada a lamentação do que o medo rapidamente viram os seus corpos marcados pela raiva afiada de uma ordem ignorada, que venham mais então, assim se passam os dias. Alguns nem se mexeram de tão pesada já ser a sua oração da morte, duravam apenas como o pó de um cigarro antigo, e talvez a tanto não falte para que pó seja, não de cigarro, mas de uma oração, talvez, de uma Revolução, quem ouse saber. Na lamina afiada da foice que trabalha naquela terra fértil de vida, fertilizada pela morte que na mão que pega vive, o sol lá brilha, alguma vida para aquela terra irá, afinal. 


Tudo quanto é miséria por aqui anda pois enquanto não se acabar quem trabalhe assim, não se acabará o trabalho, ainda agora a procissão vai na praça, e diga-se, não é pequena esta praça nem aquela procissão é curta, ainda muita aí vem e muita mais já foi, ninguém os para, parem vocês de caminhar, parem, virem costas, ergam-se que nada mais vale a pena, também no tempo que há não valerá para vocês, morram aí já que mais à frente serão mortos ou morrerão pelo cansaço ou porque a vida assim o pede, quando já nada mais há a fazer senão criticar um qualquer deus cruel, ignorá-lo, insultá-lo por ser um cobarde e fechar os olhos a tantas procissões, Ousa em olhar para esta miséria, atreve-te a sentires a culpa entranhada no desinteresse, talvez ande distraído a enaltecer quem, tantas vezes em seu nome, vos mata. Morram, mas matem, não se ousem de morrer em vão, gritem, deixem a vossa raiva nesse chão farto que mais à frente serão espezinhados por esses cabrões, mereciam morrer queimados todos eles, pisados pelo vosso desprezo, cuspidos para dentro da boca e levados para o altar, façam-se as solenes celebrações e ritos, pois livre-se de quem morra sem honra, sem guardar um bom lugar no céu, Foste bom tu por teres cumprido todas as cerimónias em meu nome, cumpriste, seja a tua vida lembrada, digna, pois a ti pertence o reino de deus, amén, Amén. Assim vai o mundo. 


Por mais que assim o vá, estes aqui continuam. Repare-se neste que aqui vai, afoiçado a terra de alimentos para mais um dia adiar a morte, roubando por vezes um batata, um cenoura, o que estiver à mão quando alguém não estiver a olhar, ou aquele que dá de comer aos porcos, por vezes também roubando alguma comida que nutrientes não faltam, se de cegos for uma terra um olho elege o rei, aqui não parece tão real a sua função, obrigado, se ainda houver quem não tiver arrancado os próprios olhos numa súplica inútil, a ver tudo isto, Matem-me, em todo o mundo não há espaço para a cobiça dos tronos, aqui todos tão altruístas que são, que bem que vão eles. O bicho da esperança, este dos porcos, mas não só, pois alimenta ele porcas, vacas, cabras, galinhas, e tantas outras, e não nos esqueçamos dos machos, os porcos, os bois, os bodes e os galos, que ainda hoje não cantaram, sem eles não se matarão mais filhos que advenham do prazer incontrolável de se unir o que dão elas e o que eles vêm dar, toda a sua vida é isto, sol a sol, a deles uma vida de verdadeira fornicação e descanso, pois cansa muito preencher todos os buracos que aparecerem à frente de algo, o do outro, fornecer o alimento àqueles. Nesta terra, os homens e mulheres que por ali caminhavam e viviam, se assim se pode chamar, faziam-no com os outros animais, pois ali, não existia isso dos outros, havia um nós quase de irmandade que no tempo em que há tem-se como esquecido, o que é isso de eles, apenas nós, Nós, os animais, não eles, os animais, Nós os que comemos e cagamos por ser assim toda a natureza, Nós os que somos sociais, e por isso choramos e rimos, Nós, os que fodemos à bruta por serem mais corporais as manifestações desse prazer, por ser mais suada assim a fenda que no corpo há ou a dormente perna que o corpo tem mais forte quando são elas feitas, Nós, os que somos explorados, não nós, os que exploramos e eles que o são, mas nós, animais, que nos exploramos uns aos outros sem vergonha, que somos cruéis uns com os outros sem discriminação, pois afinal, toda a natureza e a sua lei assim são. 


Olhando o negro para aquele porco, num olhar maternal, como se tivessem partilhado os passados, como se o rasto de tapete que a vida faz fosse pelos dois percorrido, e não será, veja-se só, já nem se distinguem os dois de tão mal tratados estarem, se assim se quiser escolher cautelosamente esquecer, de tão iguais serem estes dois, um cuidador e um que é cuidado, ou não será o mesmo, o que cuida e o que é cuidado, no fim ambos morrerão na sua própria solidão sem a dignidade de terem morrido, Mais um, afinal não é verdade, refutando o que mais tarde veio dizer um tal escritor, de que todos os animais são iguais, não há animais mais iguais do que outros, o que há é animais iguais e outros que se esquecem que o são, e aí vão eles, divertidos pela vida, Tem cuidado, que o precipício há de vir, Virá, Não saberemos, Somos culpados por nada termos feito, imóveis a ver o palco, por nos termos destruído sempre uns aos outros. Nós todos, brancos, pretos, rosas, rastejantes, quadrúpedes, bípedes, onde há movimento há vida, todos os que são ou hão de vir, tudo o que mexe neste mundo, tudo o que foi ou será, não sabíamos, não o queremos nem sabemos, mas merecemos ser castigados. Olhei para cima, choro, retornei, todos eles ainda ali estão. 


Francisco Amaral

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