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  • Matilde Curvão

O Nascimento

Olhando pela janela, com vista para um velho matadouro, Salete não podia deixar de sentir um certo alívio. Quando nutrido assim, o medo engorda e engorda, até nos pôr a desejar que se torne realidade. Pensava, rebelde e envergonhada: “Apanhem-me logo, não posso mais esperar!” Por fim, chegara o dia pintado das cores da sua ansiedade.


Quando a “estátua” ou os espancamentos não passavam de um mero exercício filosófico, questionava-se: “Como pode alguém, PIDE ou não, provocar tamanha dor ao seu próximo?” As noites sem sono sussurraram-lhe a verdade de que, entre todos os que reprovam a tortura, os torturadores são parte significativa. Porém, aceitavam de bom grado os interrogatórios avançados ou os grandes sustos, coisas bem distintas, que servem os interesses da nação.


O edifício marginal era governado por um conjunto peculiar de regras de conduta, que deviam ser obedecidas tanto por presos, como pelos agentes da PIDE. Por exemplo, certo dia saiu a mancar da sala de interrogações um homem esguio, de camisa branca manchada de encarnado. Regressava à sua cela, auxiliado por dois agentes, que carregavam o seu corpo gasto. O da direita exclamou: “Vá Doutor, acabamos por hoje, deite-se aqui.” O tal Dr. Preso agradeceu-lhes roucamente. Apesar de mutilado, os bons costumes são sempre bonitos. Afinal, até Jesus deixou Judas beijá-lo antes de o enviar para a cruz.


De igual modo, era impensável haver, neste país católico, homens a interrogarem mulheres, pois o processo implica proferir os mais perversos insultos e puxar e torcer todas as partes do corpo. Então, era uma agente que lhe agarrava o cabelo e a surrava de pulso cerrado sempre que se recusava a falar ou dava respostas que não satisfaziam.


Naquela manhã, despertou com um enjoo terrível, mesmo tendo o estômago vazio há vários dias. Talvez fossem os relinchares dos animais do matadouro, que enchiam aquelas primeiras horas diurnas, distintos dos sons das noites, gritos anónimos a ricochetear pelas paredes húmidas. Estes nunca se misturavam, e só assim se sabia que o tempo passava.


A mulher deixou de conseguir exprimir a sua aflição às moscas com quem partilhava a cela, como se tivesse formado ali um buraco negro, prestes a implodir sobre si mesmo. Ia tentando relatar-lhes estes novos acontecimentos, como jornalista em terra estrangeira: “Os raios estão mais prateados, sinto o colchão simples aos meus pés como nunca, ouço ao longe o som dos cavalos a partilharem o meu destino. Não é que goste de morrer, mas é bom não partir sozinha.”


Reparou que a vida não lhe passava pelos olhos, como se julga acontecer. Nada conseguiu ver do seu casamento de maio, nem da filha a cantar os parabéns. Pelo contrário, a consciência permaneceu ali, no presente, mas alargou-se, escorrendo pela porta trancada até à rua deserta. Acabou o seu percurso a uma centena de metros dali, onde uma égua doente iniciava o laborioso ato de dar á luz. Viu o pequeno potro nascer, órfão e indefeso, no breu da madrugada. Amanhã já dará os seus primeiros passos incertos. Quando o filho do lavrador encontrar o animal viscoso, balançando entre os seus condenados companheiros, anunciará as boas novas à aldeia, enquanto o corpo da resistente permanece ausente.


Matilde Curvão

Dentro da Tribuna

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