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Foto do escritorRita Gomes

O Pandemicamente Criativo: Cucaternidade

A pandemia exigiu paragens e confinamentos, os convívios escasseavam e a cultura foi a primeira a parar. No meio de tantas restrições, a criatividade não foi alvo de medidas, e para estes dois colectivos portugueses parece mesmo ter proliferado.


Sem mais demoras, apresso-me a fazer solistas considerações sobre cada um dos projectos.


“Outras Maneiras”


Constituído por sete maneiras, três novas (duas de Vaiapraia e uma de Lúcia Vives) e quatro refeitas, sugeridas por membros no calor do momento (covers do Grupo de Ação Cultural – Vozes na Luta, Marco Paulo, Starlolix e Duo Ouro Negro) compõem o LP colectivo da Maternidade e companhia, gravado em Maio de 2020. O dedo aponta-se a Vaiapraia, Luís Severo, Teresa Serra Nunes, Rodrigo Castaño, Lúcia Vives, Chica, Filipe Sambado, Jasmim, Ana Farinha, April Marmara, Maria Inês Paredes, Bernardo Álvares, Catarina Olaio Marques, Duarte Coimbra e Margarida Alfeirão.

Lançado em Janeiro de 2021, o disco abre com marcante música de intervenção (“Cantiga Sem Maneiras”), mesmo a tempo das eleições presidenciais. “Betinho”, original de Vaiapraia, chegou aos trabalhos preparatórios apenas com melodia e letra, e saiu deles “senhor Beto”, irónico hino à classe média alta. Duo Ouro Negro deu-nos “Garota” em 1968, agora coralizada pela Maternidade, chega-nos como a terceira faixa do LP, afirmando-se com harmonias de invejar. “Golpe por Golpe” chega-nos como o segundo original do LP, assinado por Lúcia Vives, canção “guardada na gaveta há muitos anos”, saltou diretamente para a mesa de Outras Maneiras, trazendo consigo um maneirismo melancólico mais pesado mas que ainda assim sabe bem ouvir. Por iniciativa de Luís Severo, integra o LP severa interpretação de “Na Mesma” de Starlolix (Carolina Valente), lançada bem ao lado do carnaval de 2020. Revisitada num estilo punk-rock, “Sou Tão Feliz” de Marco Paulo fecha o LP.


Ainda sobre “Outras Maneiras”, não se pode deixar de aplaudir a arte bordada de Teresa Serra Nunes que dá cara ao LP e a protagonista “Aniko” que figura bem no centro da mesma.


“CucaVida”

“CucaVida” nasce em quarentena e distanciamento social, durante um período de dois meses, numa lógica “cadáver-esquisito virtual” que de mero nada tem e do qual jorra um álbum com dez originais. Projecto colectivo dos membros da editora Cucamonga, conta com Bisp0, Capitão Fausto (Domingos Coimbra, Francisco Ferreira, Manuel Palha, Salvador Seabra e Tomás Wallenstein), El Salvador, Ganso (Gonçalo Bicudo, João Sala, Luís Ricciardi, Miguel Barreira e Thomas Oulman), Luís Severo (o “primo do campo que veio morar para a cidade” [como põe João Sala] e se divide por ambos os colectivos), Modernos (Manuel Palha, Tomás Wallenstein e Salvador Seabra), Rapaz Ego (que também é Luís Montenegro), Reis da República (Bernardo Sotomayor, Gonçalo Bicudo, José Sarmento, Luís Ogando, Madalena Tamen e Tomás Lobão), Zarco (Fernão Biu, Gastão Reis, João Nunes, João Sala e Pedro Santos) e ainda o produtor Diogo Rodrigues (baterista de elite cujo nome é “Horse”). Não podemos deixar de notar as “cartas repetidas” entre as bandas anteriormente mencionadas; mas, compondo sets diferentes, nunca há repetição de jogadas. Cumpre ainda falar das contratações especiais para a época de “Cucavida”, entrando ainda como colaboradores Gonçalo Perestrelo, Isis Bernard, Joaquim Quadros e Constança Rosado.


“Sem Razão” introduz o mote: com um registo humorístico, é um aviso de que “Cucavida” vai começar. Segue-se “Tou na Moda”, o novo clássico de uma escola pouco tradicional, que referencia bons temas de conversa, como astrologia, servindo uma dose saudável de ironia millenial. “Escudo”, a história escrita em primeira pessoa de um “questeiro” (alguém que embarca em “quests”) que desabafa sobre os seus medievais problemas de guerreiro, debate-se sobre os porquês repetitivos de ter de acordar cedo para ir batalhar ou de morrer pela sua missão, mas ainda assim não esquece as amizades no campo de batalha. Em “Má Vontade” só há gente pessimista, um hino reprovador ao julgamento do outro e à falta de limpeza do umbigo próprio. Um dueto T2+1 dueto chega-nos com “Travessia”, em jeito de cantiga de amor socialmente distanciado, acompanhada apenas de sopros, assobios e latidos. “Liberdade” parece chegar diretamente das Caraíbas, com ritmos “loopados” e cantados em ambas as línguas ibéricas, acompanhados de guitarras e sopros que berram pela promessa de liberdade. “Proporções Bíblicas” chega-nos como um rap interminável entre amigos, uma mistura eclética de estilos, línguas e inside jokes, meramente acompanhado por uma linha rítmica assinada por “Horse” e um instrumental de batuques, timbalões e pratos. Um tom reggae é introduzido em “Se Algum Día”, com uma progressista “soprada” e “guitarrada” essencial que conduz a faixa. “Casa Andante” merece especial atenção, mais coesa e com carácter de balada centrada na auto-mudança exigida pela pandemia, mensagem bem presente nas estrofes declamadas por Gastão Reis, eterno trovador da casa. O álbum termina com “Amigos”, havendo subtis referências a astrologias e outros animais, um hino aos laços especiais de amizade que unem o grupo.


Genesis


Foi do convívio em era pandémica que nasceu “Cucavida”. Domingos Coimbra lançou a ideia de fazer música à distância e todos se apressaram a aderir ao jogo. A premissa foi simples: um jogo de telefone avariado passado por clips de vozes “celulares”, numa cadeia fabricada no Whatsapp. Cada “cuco” era livre de começar como quisesse e, depois disto, devia enviar a outro colega que, por sua vez, poderia fazer o que quisesse com a “celular” recebida. Proibiam-se repetições, para que todos participassem, e só no fim podiam voltar a ouvir a celular que tinham iniciado. Isto não deixou de dar azo a alguns lobbies bem-intencionados e mensagens privadas a puxar alguma batota saudável.


Réstias de alguns protótipos de celulares chegaram até nós e servem como uma espreitadela ao backstage deste que foi o processo de dar à luz (cuca)vida, surgindo “Proporções Bíblicas” como o expoente máximo deste boomerang de pergunta-resposta.


Quanto a “Outras Maneiras”, o mês era maio de 2020, mas os estúdios eram precisamente os de Cucamonga. Para este colectivo não havia uma intenção inicial de fazer um disco ou sequer de compor uma música em específico. As ruas ainda estavam fechadas, a ressaca do primeiro confinamento era forte e a vontade de convívio era grande mas consciente. Decidiram-se por um convívio no estúdio e a música nasceu pelo simples facto de haver vontade.


Foi um “quem pode vir que venha, vamos fazer música”, até elementos com menos calo apareceram para participar nesta que começou por ser uma “jam de amigos” e que acabou por ser tornar no primeiro LP colectivo do grupo.


Processum


No frankenjogo de cucamonga, as gravações foram feitas mediante os recursos de cada, alguns gozavam de privilégios e equipamento avançado, outros dependiam de um par de headphones e um computador antigo. Destes métodos pouco ortodoxos resultaram, contudo, algumas dificuldades técnicas, o que exigiu a criação de “audio janitors” responsáveis pela produção e tratamento do som. O trabalho destes janitors é notório em coisas tão pequenas como alterações na voz ou nos instrumentos, para mascarar algumas impurezas das gravações originais.


Estas alterações, no entanto, não foram feitas sem vozes diferentes se levantarem na doutrina: a escola “puritas” insurgia-se contra o processo de mistura, afirmando que corrompia a essência do jogo. Do outro lado, levantava-se a escola “progressum”, que teimava na alteração das estruturas, repetição de refrões, adição de letras, etc. Já no meio, a escola “consensus”, que aceitava algumas alterações mas que queria igual protecção da essência original do projeto. Escusado será dizer que todas tinham o superior interesse da criança em mente e, a julgar pelo resultado, nenhuma se deve ter sentido derrotada.


Diferente de “Cucavida”, “Outras Maneiras” foi gravado em live take, com posteriores acrescentos, quer ainda no estúdio, quer em casa de Luís Severo. A mistura ficou a cargo de Filipe Sambado, Luís Severo, Rodrigo Castaño e Teresa Serra Nunes, tendo, a Severo e Sambado, cabido ainda o trabalho de masterização.


Differentia


Perante a familiaridade do ambiente em que nasceram os dois projectos, e não obstante os semelhantes aspectos que os unem, o grau de parentesco acaba por ser bem mais afastado do que à primeira vista pudesse aparentar.


Desde logo, em termos de nascimento, Cucamonga parece ter exercitado um músculo provavelmente adormecido de contribuir para esqueletos de músicas sem fazer ideia de como ficaria o resultado ou que volta lhe daria o próximo músico. Ao passo que Maternidade, optou por algumas homenagens com covers de músicas de outros artistas.


Ouvir estes álbuns também não traz o mesmo tipo de sabor. “Outras Maneiras” traz um puro indie, que contrasta com a forte produção e ambiciosamente complexa instrumentalidade de “Cucavida”, que mistura rock progressivo, reggae, jazz, música popular de uma forma mais notória.


“Cucavida” tem um tom bem-disposto e oferece um mergulho nas inside jokes do grupo, um total convite a quem ouve que nos faz querer ser amigos deste grupo (como muitos o põe). Perceber que as suas piadas e partilhar o seu dialecto é meramente amizade e, simultaneamente, uma ode à vontade de voltar a uma normalidade que nos foi tirada.


“Outras Maneiras” é íntimo, traz uma saudade mais individualista e introspetiva, ao invés de uma retrospecção ou um convite, é a banda sonora que ouvimos numa manhã mais lenta, num fim de tarde parado.


Exodus


Anormalidades surgem imprevisivelmente e com a mesma tónica vivem. A arte tem a virtualidade de ser igualmente imprevisível e de cobrir qualquer adversidade. Embora haja proliferado nestes casos, nem tudo é um mar de rosas, e muitos espinhos a pandemia trouxe aos nichos criativos. Deixei dois exemplos de boa arte que está a ser feita, e convido todos a procurar mais e a apoiar os seus respectivos progenitores sempre que possível. É com uma uma nota de “oiçam de ouvidos abertos” estes projectos que me despeço; da minha quarentena para a vossa, votos de boa música.



Nota: A autora escreve com base no antigo Acordo Ortográfico

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