Aos 31 anos, já ninguém consegue qualificá-lo como “emergente jovem realizador”. É jovem, certo, mas conta já com um portefólio de oito filmes da sua criação, todos eles aclamados em festivais de cinema internacionais, como o Festival de Cannes, no qual concorre há dez anos. Em 2014, Mommy, a sua quinta longa-metragem, foi galardoada com uma avalanche de reconhecimento, merecendo o Prémio de Júri do referido festival. Com 24 anos, pôde então dizer-se que Xavier Dolan cumprira a proeza de ser dos mais novos, se não o mais novo, realizador de cinema a alcançar o sucesso. Mas como descrever a carreira precoce deste irreverente e prodigioso artista?
Oriundo de Montreal, Quebéc (Canadá), Xavier começa aí a atuar em cinema e televisão aos 4 anos de idade. Desde essa altura que se dedica a observar com curiosidade o trabalho de atores, realizadores e técnicos, idealizando um futuro de criador. Na infância, assiste a inúmeras produções de animação e fascina-se com o mistério dos seus códigos e regras, prometendo vir a desvendá-los. É ainda em tenra idade que os seus pais oficializam a separação e Xavier fica a viver sob custódia da mãe, mantendo um contacto muito longínquo com o pai. Mas a relação com a sua progenitora revela-se longe de ser pacífica e esse evento marca o início de uma fase conturbada, que servirá de inspiração para os seus filmes. Com a rebeldia da adolescência, o conflito intensifica-se e cresce o sentimento de revolta contra a “ditadura monoparental”.
Xavier revela cada vez mais dificuldade em controlar as tendências hiperativas e as explosões súbitas de raiva, que lhe valem a expulsão de várias escolas – quem viu Mommy (2014), perceberá as semelhanças. A borbulhar de inspiração, acaba por expressar a sua angústia vingativa concebendo o primeiro filme. Aos 17 anos, termina o argumento de Eu matei a minha mãe (J’ai tué ma mère, 2009), que filmará dois anos mais tarde, com 19 anos. Tratando-se de um filme autobiográfico, é logo nesta primeira obra, protagonizada pelo próprio ao lado de Anne Dorval (uma das suas “atrizes fetiche”), que sobressai o seu génio criativo e o trabalho merece, entre outras, a indicação para o César de melhor filme estrangeiro.
Começa, assim, a traçar-se um notável percurso nos circuitos cinéfilos, que tem vindo sempre a surpreender. Desde então, a necessidade de criar torna-se premente, quase uma obsessão, e Xavier Dolan não coloca entraves à ambição artística. Em 2010, segue-se Amores Imaginários e, em 2012, Laurence Para Sempre (Laurence Anyways). Estes últimos projetos, incidem já não sob um ponto de vista tão pessoal, mas explorando sempre temas que lhe são próximos, como é o caso da identidade sexual e da fluidez de género. Por estes assuntos serem recorrentes nas suas obras, Xavier acabaria, aliás, por ser rotulado, contra a sua vontade, como realizador de filmes LGBT+. Em 2012, ao ser galardoado com o Queer Palm por Laurence para Sempre - um filme que trata o tema da transsexualidade e da influência dessa revelação na relação conjugal – Xavier rejeita o prémio, alegando que o simples facto de ele existir promove a segregação e a marginalização dos filmes com “temática gay ou trans”. E a verdade é que seria injusto reduzir as suas criações a uma categorização temática; com efeito, muito embora nos seus filmes estejam presentes amiúde questões conotadas com a comunidade queer, elas nem sempre constituem o núcleo essencial do argumento, mas tão só apontamentos inspirados na marca identitária do seu autor.
Em virtude da originalidade que lhes subjaz, as suas obras são, na realidade, tudo menos “categorizáveis”. Quanto à abordagem criativa de Xavier Dolan, é já possível apontar traços característicos. Em todo o seu trabalho é de notar uma invulgar sensibilidade no tratamento das relações interpessoais e de intimidade - assentes geralmente em laços amorosos e familiares - que retrata com um toque profundamente humano, conjugado com uma artisticidade genial. Nas palavras de Oliver Skinner, realizador e argumentista de Ontario: “In a decade, Xavier Dolan has changed Canadian Cinema with films that are vibrant, messy and alive”. Na sua obra-prima, Mommy (2014), à semelhança de em Eu matei a minha mãe (2009), é consagrada uma relação complexa de amor-ódio entre uma mãe e um filho adolescente, onde Xavier nos transporta para uma narrativa intensa, de grande autenticidade e realismo dramático, sustentada por desempenhos arrebatadores – um filme que, apesar de não ter intuito autobiográfico, o realizador assumiu simbolizar uma espécie de reconciliação com a sua própria mãe após o primeiro filme. E isso vislumbra-se, inclusive, na sua necessidade de vincar o papel forte da mulher; algo que, aliás, acompanhará grande parte do seu trabalho, particularmente no que toca ao protagonismo da figura da mãe.
A par de um argumento e realização magistrais, próprios do estilo de Xavier, conduzirá, também, toda a criação do realizador canadiano uma extrema sensibilidade estética, refletida nos pormenores dos ângulos de filmagem e na qualidade da fotografia, que se pauta pela utilização frequente de um filtro retro e pela integração de elementos pop; traços distintivos que acabam por fazer dos seus filmes cuidadas obras de arte. Neste “mundo em construção” de Xavier Dolan, a música encontra ainda lugar de destaque como a “alma” das suas criações, ajustando-se de modo particular ao ambiente e tom de cada obra. Refletindo precisamente estes traços de realização, Tão Só o Fim do Mundo (Juste la fin du monde), de 2016, é um drama familiar que, contando novamente com interpretações fabulosas, explora ao pormenor o íntimo de cada personagem. Servindo-se de uma narrativa preenchida por uma lógica de tensão emocional permanente, adaptada de uma peça de teatro homónima de Jean-Luc Lagarce (1990), esta longa-metragem apresenta-nos a história de um jovem escritor que, após longos anos apartado da sua família, decide reatar o contacto com a mesma para anunciar a sua morte. Além de tudo o resto, Tão Só o Fim do Mundo coloca em evidência o que parece ser outro dos segredos da singularidade do trabalho de Xavier: a seleção dos atores e a forma como tira proveito do melhor da densidade interpretativa de cada um. Nos seus filmes, é frequente vermos em cena Nathalie Baye, Anne Dorval ou Suzanne Clément, atrizes poderosas que fazem jus à essência das suas personagens.
Mais recentemente, The death and life of John F. Donovan (2018) surge como uma incursão nas grandes produções cinematográficas - falado em inglês e culminando 10 anos de projeto, é estrelado por grandes nomes como Kit Harington e Natalie Portman. Já em Matthias & Maxime (2019), o mais recente filme de Xavier Dolan, o próprio realizador assume o papel de um dos protagonistas. Centrado no tema das prevalecentes “noções tóxicas” de masculinidade, pode dizer-se que este marca um regresso à sua essência enquanto artista, à forma íntima e absorvente do retrato. E a verdade é que, conseguindo cada vez mais uma projeção que facilmente o catapultaria para o universo do mainstream, Xavier, para já, admite não se sentir aliciado por Hollywood.
Apelidado pela crítica de “prodígio”, mas também de “monstro” do cinema por não gerar consenso (pois as suas obras são também alvo de críticas mordazes), o realizador mantém-se firme numa missão que considera ultrapassar a dos statements: uma criação livre e genuína, sem grandes regras ou limites, que lhe permita continuar a contar histórias com pessoas que o inspiram. Desafiador de convenções, de espírito livre e fiel a um estilo próprio de uma qualidade constante que hoje em dia é raro encontrar nas grandes produções, Xavier Dolan promete continuar a dar-nos muito e bom cinema. E nós, cá o esperamos.
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