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O povo roma: sobre a maior minoria da Europa

  • Foto do escritor: Beatriz Castro
    Beatriz Castro
  • 5 de mai. de 2023
  • 6 min de leitura

Com um legado cultural de séculos e uma história interminável de ostracização, o povo cigano, como é vulgarmente conhecido em Portugal, representa hoje entre 10 a 12 milhões de habitantes em toda a Europa. Mas qual terá sido a primeira casa da maior minoria europeia?


Estudos com base na sua herança linguística e genética sugerem que a origem dos roma é o noroeste da Índia, concretamente as regiões de Punjab e Rajastão. A invasão do general afegão Mahmud de Ghazni, no início do séc. XI, terá motivado a sua diáspora para o território dos atuais Paquistão, Afeganistão e Irão. É por volta do séc. XIV que o grupo se dirige à Europa, o território onde se estabeleceria maioritariamente e onde permaneceria até aos dias de hoje.


A comunidade roma subdivide-se, na verdade, em subgrupos étnicos, sendo em grande parte conhecida sob a designação de um deles, os Roma ou Rom (no singular), maioritário na Europa centro-oriental; já os Sinti são principalmente encontrados na Alemanha e nas regiões germanófonas de Itália e França, os Romnichals presentes na Inglaterra e nas ex-colónias britânicas e os Caló predominantes na Península Ibérica, mas também presentes noutros países, como o Brasil, para onde foram conduzidos especialmente no séc. XIX pela Inquisição portuguesa.


A falta de um lugar a que possam chamar de pátria, no sentido territorial da palavra, e um forte apego à sua identidade cultural motivaram o clima de suspeitas e preconceitos em torno dos roma, manifestado desde cedo em lendas e provérbios que denigrem a sua imagem social, ao ponto de católicos e protestantes os terem considerado descendentes da personagem bíblica Caim – filho de Adão e Eva, nascido do “pecado”, e que terá matado o próprio irmão – e, portanto, malditos, feiticeiros e hedonistas.


Muitas representações do povo cigano na literatura e na arte apresentam narrativas romantizadas dos poderes místicos da adivinhação, retratando o cigano com um temperamento ora irascível, ora apaixonado, um amor indomável à liberdade e um hábito de criminalidade. A mulher é, por sua vez, retratada com uma beleza exótica e um poder de sedução irresistível. Na literatura destacam-se os clássicos Carmen de Prosper Mérimée (adaptado para ópera por Georges Bizet), O Corcunda de Notre Dame de Victor Hugo, Castafiore Emerald de Hergé, A Ciganinha de Miguel de Cervantes e Lavengro de George Borrow. Os roma foram também retratados por Shakespeare nas suas emblemáticas peças de teatro Sonho de uma Noite de Verão, Como gostais, Otelo e A Tempestade.


Ao contrário do que muitos advogam, este povo revela ao longo da História grande capacidade de assimilação cultural: por regra, adota a religião local dominante e os seus costumes, danças, provérbios e músicas revelam as influências do meio em que se foram estabelecendo – é, aliás, graças à sua tradição musical que se mantêm vivas muitas das canções de folclore de algumas localidades. Veja-se o Flamenco, considerado património imaterial da humanidade, cuja música e dança têm origem cigana e mourisca, apesar da posterior influência árabe e judaica. Existem ainda estudos que sugerem a influência cigana no desenvolvimento do Fado enquanto estilo musical. O idioma da comunidade roma é o romani, uma língua indo-ariana que se divide em vários dialetos e se mistura com as línguas dominantes dos países de residência. Essencialmente oral (estima-se que existam apenas 9 livros escritos no idioma), o romani é falado por mais de dois milhões de pessoas em todo o mundo, apesar de ter o estatuto de língua oficial apenas no Kosovo e um “status oficial de minorias” na Suécia, Finlândia e Roménia.


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Amantes da liberdade e itinerantes por natureza, os ciganos foram, porém, muitas vezes forçados a partir quando a vontade era ficar, vítimas de perseguições e massacres. Não esqueçamos o extermínio da etnia sinti durante o Holocausto, comunidade que foi, além disso, sujeita a processos de esterilização compulsiva, tendo-lhe sido atribuído pelos nazis o mesmo estatuto que aos judeus em 1938. A chacina, denominada em romani “porajmos”, ceifou a vida a quase 500 000 roma, entre eles, o conhecido pugilista alemão Johann Trollman (1907-1943), cuja história impressionante havia mais tarde de ser narrada nas várias formas de Arte.


Passado o terror nazi, a comunidade roma viria a reconhecer a necessidade de se organizar e, na década de 70, surgem as primeiras associações ciganas na Europa, sendo também o período em que, pela primeira vez, o povo é reconhecido pelas Nações Unidas enquanto nação, ainda que sem pátria. Em 1971, no Primeiro Congresso Mundial Rom, que ocorreu em Londres, os seus participantes votam unanimemente pela rejeição do uso de todas as designações para o povo que não as específicas referentes à sua etnia, - incluindo “ciganos”, na designação portuguesa - devido às suas conotações negativas e estereotipadas. É ainda neste Congresso que se fixa um Dia Internacional dos Roma a 8 de abril (posteriormente institucionalizado pela ONU) e se estabelece a bandeira e o hino nacional roma (a canção Gelem Gelem).


No Cinema surgem filmes a retratar esta trajetória de reconhecimento, como I even met happy gypsies (1967), de Aleksandar Petrovic; Angelo my love (1983), de Robert Duvall; Time of the gypsies (1988), de Emir Kusturica e o mais recente e premiado The Ciambra (2015), de Jonas Carpignano. É ainda de referir a série Peaky Blinders (2013-2022), cuja narrativa integra a comunidade roma e inclui, a partir da segunda temporada, trechos falados em romani e atores de origem cigana.


Em agosto de 2010, emerge um grande debate no seio da União Europeia após a decisão polémica do então presidente francês Nicolas Sarkozy de deportar a comunidade cigana residente em França para os seus países de origem, a Roménia e a Bulgária, embora frisando que essa deportação seria voluntária e oferecendo ajudas de custo no valor de 300€ por pessoa expatriada. Em resultado, de janeiro de 2009 a agosto de 2010, de acordo com a imprensa europeia, quase 20 mil ciganos haviam sido deportados.


Hoje, como é de conhecimento geral, a integração deste grupo étnico nas comunidades locais onde se estabelece está longe de ser ideal: o povo roma é ainda identificado pelo cidadão comum como arreigado aos seus costumes, sem abertura à integração, “malandro” e com uma tendência para a delinquência. Mantendo a tradição nómada, os roma são vistos como estrangeiros, imigrantes e intrusos, independentemente do local no mundo onde se estabeleçam. Práticas como o casamento precoce, o impedimento das raparigas de estudar e outros rituais duvidosos à luz das conceções atuais (que, diga-se, não são exercidos por todos os membros da comunidade roma) geram censura nas populações locais e ajudam à perpetuação de um estigma ancestral, que vem sendo legitimado por partidos políticos extremistas e populistas. Tal estereótipo enraizado continua a constituir um bloqueio à inclusão do grupo nas economias nacionais e a dificultar o seu acolhimento, desde cedo, nos sistemas de ensino e universidades; tudo isto contribuindo para a perpetuação da pobreza e iliteracia dentro da comunidade num círculo vicioso de enclausuramento cultural e clandestinidade.


Dados recolhidos em Portugal em 2014, no âmbito do Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas (ENCC), em que foram inquiridas 1599 pessoas, mostram que um terço dos inquiridos nunca frequentou a escola ou não foi além do 1.º ciclo do ensino básico e apenas 2,8% possuíam um diploma do ensino secundário e/ou superior; em contrapartida, 19,2% da população portuguesa detinha o ensino secundário e 16,5% o ensino superior (Pordata, 2014). Já no ano letivo 2016/2017, segundo a publicação “Perfil Escolar das Comunidades Ciganas” da DGEEC, 47,6% dos 806 inquiridos em idade escolar estavam matriculados numa escola pública do Ministério da Educação.


Os grandes desafios atuais colocam-se em torno de fazer cessar o preconceito cultural, de forma a integrar e dar oportunidades a um povo com o qual os europeus convivem há séculos, mas que continuam insistentemente a segregar. A 7 de outubro de 2020, a Comissão Europeia divulgou um novo quadro estratégico europeu relativo à integração socioeconómica dos roma marginalizados, a vigorar até 2030. Tal programa assenta em três pilares: Igualdade, Inclusão e Participação, prestando maior atenção à diversidade entre a população roma, com o intuito de assegurar que as estratégias nacionais dos Estados-Membros respondem às necessidades específicas dos diferentes grupos, contemplando em especial as mulheres, os jovens, as crianças, os cidadãos móveis da UE, os apátridas, as pessoas LGBTI+, os roma com idade avançada, bem como as pessoas com deficiência. Resta saber se haverá real empenho por parte dos Estados, e em que medida, na concretização destas metas.


Perspetiva-se, para futuro, um caminho comum a percorrer pelos Estados e pelos roma: por um lado, promover um maior ajuste deste povo ao respeito pelos direitos humanos e a um mínimo comum de valores universalmente consagrados e, por outro, garantir que os Estados não desistem de o incluir nas suas agendas políticas, nomeadamente no setor Social e da Educação. Com certeza, ainda há muito por fazer ao nível da inclusão.



Beatriz Castro

Departamento Cultural


 
 
 

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